Oi! Essa é “A Diletante”, uma newsletter semanal de ensaios. A cada duas semanas, eu publico uma edição da série bíblica, um projeto de análise textual e reflexão pessoal na fronteira entre o secular e o sagrado. Minha perspectiva é judaica e não-religiosa. Os ensaios são independentes e não exigem conhecimento prévio. Esse é o texto que encerra o Êxodo. Se você chegou agora e está curioso, no fim do texto há os links para as outras edições. Se você não sabe bem como veio parar em uma newsletter bíblica, lê o texto e me conta o que achou? Pela primeira vez, vou abrir um fórum na quarta-feira para conversarmos.
Você não é obrigado a completar o trabalho, mas também não é livre para abandoná-lo.
Pirkei Avot (A Ética dos Pais)
É bom começar um texto com uma frase de efeito. Pensei em começar assim: "é importante ter um amigo incoveniente”. Mas não sei se é importante: sei que tenho um amigo que desafia meu raciocínio, e sei que é bom. Talvez seja minha única amizade assim. Ele me pergunta algo que acho jogo baixo, que me incomoda de um jeito especial, e que por isso revela algum tecido sensível: “Isso vai importar em três mil anos?”.
Repare na escala: ele não está falando dos próximos cinco anos, cuja perspectiva nos impede de entrar em picuinhas com colegas de trabalho. Três mil anos nos obrigam a encarar o nosso provincianismo histórico: a enormidade do passado e a imensidão do futuro, no meio dos quais a nossa vida é um instante. O que fará sentido em três mil anos: a milionésima análise de um texto ancestral, sob a perspectiva de um grupo minoritário? A Mesopotâmia, berço de impérios, é meia dúzia de ruínas. Quem veio primeiro: os sumérios ou os assírios? Nabucodonosor II ou Hamurabi? No século XXX, um aluno levanta a mão: professora, isso foi Napoleão ou Hitler*?
A escala milenar nos leva ao desespero ou à megalomania. Nada importa, ou só os excepcionais importam; só os que imaginam grande o suficiente. Mas o mundo também é implacável com os grandes, e o Eclesiastes atribui a Salomão as palavras: “Sopro dos sopros. Tudo é mero sopro. Que ganho há para um homem em todas as labutas que ele labuta sob o Sol?”**. Tudo tende a desaparecer, e ainda assim nossas vidas comuns prestam testemunho da teimosia de tudo que está vivo. Cada pessoa é uma cadeia ininterrupta de sexo e sangue. Cada palavra é um novo elo em uma corrente de texto. Cada vida é uma ponte entre o passado, que a criou, e o futuro, que ela cria, mesmo sem perceber. Principalmente sem perceber.
Os impérios caem, os ídolos são derrubados e nossas ilusões de grandeza somem como vapor: essa é a história do Êxodo. Deus entra na História para libertar os escravos, em uma fuga épica pelo Mar Vermelho. Mas a liberdade é só o começo: seremos livres para quê? O povo alforriado vaga pelo deserto, uma travessia incerta, com uma primeira constituição falha - os hebreus não abolem a escravidão, mas a regulamentam. Falhos são os seus líderes, falho é povo, falha é a representação do divino. Ainda assim o Êxodo termina em uma nota de esperança, com a construção do tabernáculo pelas mãos das pessoas comuns. De fato, metade do Êxodo refere-se à construção desse templo ambulante, morada temporária do divino. O tabernáculo é uma espécie de tenda, que os hebreus montam em seu acampamento e depois recolhem quando seguem para novas paradas. Ele é símbolo da nossa continuidade vacilante, da nossa chama trêmula - que ainda assim celebramos em toda a sua glória.
A mentalidade hebraica se equilibra na intersecção entre o divino e o mundano, o particular e o universal, o individual e o coletivo. Cada vida importa (“Qualquer um que destrói uma vida é considerado pelas Escrituras como tendo destruído um mundo inteiro; e quem salva uma vida é como se salvasse um mundo inteiro”, Sanhedrin 4:5), porque é a morada de uma faísca divina, do seu potencial criador. Nenhuma vida importa isoladamente - a Bíblia é a narrativa de gerações que se seguem a gerações, da vida que sai da vida, da esperança de que os nossos esforços individuais tragam à existência algo melhor, algo maior.
Na mentalidade tradicional, o trabalho não se encerra com a vida humana. Somos ocupantes temporários de um cargo. Ananda K. Coomaraswamy comenta que o artesão tradicional é aquele que pode morrer em paz, sabendo que seu trabalho será levado adiante por outra pessoa. (A rainha está morta, viva o rei). O trabalho de descobrir o mundo e revelá-lo é infinito. Somos pequenos e limitados. Mas o mundo vindouro é feito dos tecidos das nossas vidas.
Em “Um teto todo seu”, Virginia Woolf imagina uma irmã para Shakespeare, que nunca pôde se desenvolver em uma poeta. Ela pede que as mulheres escrevam, não com a esperança da fama e sucesso, mas para que a sua existência nasça do nosso trabalho.
Disse-lhes, no transcorrer deste ensaio, que Shakespeare teve uma irmã; mas não procurem por ela na vida do poeta escrita por Sir Sidney Lee. Ela morreu jovem — ai de nós! Não escreveu uma só palavra. Está enterrada onde os ônibus param agora, em frente ao Elephant and Castle. Pois bem, minha crença é de que essa poetisa que nunca escreveu uma palavra e foi enterrada numa encruzilhada ainda vive. Ela vive em vocês e em mim, e em muitas outras mulheres que não estão aqui esta noite, porque estão lavando a louça e pondo os filhos para dormir. Mas ela vive; pois os grandes poetas nunca morrem, são presenças contínuas, precisam apenas da oportunidade de andar entre nós em carne e osso. Essa oportunidade, segundo penso, começa agora a ficar ao alcance de vocês conferir-lhe. Pois minha crença é de que, se vivermos aproximadamente mais um século — e estou falando na vida comum que é a vida real, e não nas vidinhas à parte que vivemos individualmente — e tivermos, cada uma, quinhentas libras por ano e o próprio quarto; se tivermos o hábito da liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos; se fugirmos um pouco da sala de estar e virmos os seres humanos nem sempre em sua relação uns com os outros, mas em relação à realidade, e também o céu e as árvores, ou o que quer que seja, como são; se olharmos mais além do espectro de Milton, pois nenhum ser humano deve tapar o horizonte; se encararmos o fato, porque é um fato, de que não há nenhum braço onde nos apoiarmos, mas que seguimos sozinhas e que nossa relação é para com o mundo da realidade e não apenas para com o mundo dos homens e das mulheres, então a oportunidade surgirá, e a poetisa morta que foi a irmã de Shakespeare assumirá o corpo que com tanta freqüência deitou por terra. Extraindo sua vida das vidas das desconhecidas que foram suas precursoras, como antes fez seu irmão, ela nascerá. Quanto a ela chegar sem essa preparação, sem esse esforço de nossa parte, sem essa certeza de que, quando nascer novamente, achará possível viver e escrever sua poesia, isso não podemos esperar, pois seria impossível. Mas afirmo que ela viria se trabalhássemos por ela, e que trabalhar assim, mesmo na pobreza e na obscuridade, vale a pena.
* Posso jurar que vi o Alex Castro falando disso, mas não achei o texto. Em todo o caso, fica aqui o link para a newsletter dele.
** O leitor pode estranhar a tradução, mais conhecida em meios cristãos como “vaidade das vaidade, tudo é vaidade”. Sigo aqui a tradução de Robert Alter, que preserva a concretude do Hebraico: “Merest breath, said Qohelet, merest breath. All is mere breath. What gain is there for man in all his toil that he toils under the sun.”
Os outros textos do Êxodo:
A moda: pela glória e pelo esplendor
Cecilia Vicuña, Semear (1978)
Bonito demais, isso! ❤️
Esse texto é a definição do 8 de ouros do tarot. (Vc sempre me provocando umas conexões malucas com esse circuito bíblico hehe)