Essa é uma edição do ciclo bíblico, escrito sob uma perspectiva judaica e não-religiosa. Cada texto é independente e não assume conhecimento prévio. O trecho a que se refere essa edição é Tetzaveh ("Você deve comandar”, Êxodo 27:20-30:10).
Não devemos pensar no ornamento como algo acrescentado a um objeto que poderia ter sido feio sem ele. A beleza de qualquer coisa sem adornos não é aumentada pelo ornamento, mas tornada mais eficaz por ele. Ornamento é caracterização; ornamentos são atributos. (...) é geralmente por meio do que agora chamamos de decoração que uma coisa é ritualmente transformada e feita para funcionar tanto espiritual quanto fisicamente.
Ananda K. Coomaraswamy, em “Por que exibir obras de arte?”
De todos os arrependimentos possíveis, o que mais me atormentou durante a pandemia, quando fiquei mais de um ano sem ver a minha mãe, tinha relação com a Marshalls e a Homegoods. Para os não iniciados nos meandros do varejo norte-americano, essas são duas cadeias de produtos baratos, pechinchas, achados. Bule de cerâmica em formato de galinha por $10. Araras intermináveis de blusinhas. Cosméticos saindo de linha.
As blusinhas são testemunha da má vontade com a qual tantas vezes andei por aqueles corredores. Decoração e moda: o mundo das coisas pequenas. Como é fácil, para quem tem algum interesse em livros e ideias, colocar-se em lugar ridiculamente superior. Como é natural que, para quem cresceu tendo as roupas como sinônimo de conformidade e olhar masculino, a moda se torne algo destinado a outro tipo de mulher. Vemos quadros no museu e isso é Arte. Lemos historinhas ficcionais e isso é Literatura. Mas o impulso decorativo, já presente entre as pessoas neolíticas, seria algo supérfluo. Fútil.
Ano passado, eu estava no museu com a minha mãe, quando ela parou do lado de um bule, na Galeria Britânica: isso é exatamente o que você não me deixa comprar na Homegoods. Rimos e seguimos em frente. Próxima exibição: se estivesse na Marshalls, você iria falar que é brega. No que tive que admitir que a sabedoria materna se estende aos potes de galinha e às cerâmicas em formato de animais de modo geral: durante a maior parte do tempo, na maior parte do mundo, não havia distinção entre belas artes e artesanato, entre arte utilitária e Grande Arte. Mais do que isso, a arte não era algo que se consumia no tempo livre, quando deixamos para trás as obrigações e as miudezas da vida: a beleza, o objeto transformado em significativo, era vista como parte do tecido da vida.
Bule de chá, 1755. Galeria britânica, Museu Metropolitan, Nova York
O livro do Êxodo é metade libertação, metade construção da alternativa. O povo hebreu rompe as correntes com o Egito, e depois vaga sozinho no deserto, auto-criando-se como nação independente. Novas lideranças, novas leis, novos costumes. O Êxodo contém narrativas de organização civil, porções de legislação, descrições arquitetônicas, e, chegando ao capítulo 28, um croquis em palavras - todo o capítulo é dedicado a uma descrição das vestes sacerdotais de Aaron. Irmão de Moisés, até então com pouco espaço na narrativa, Aaron e sua descendência são designados como líderes espirituais do povo. O texto não dá indicativo dos méritos especiais de Aaron e seus filhos; tampouco explica o fato de Moisés, líder dos hebreus, ser preterido. A porção Tetzaveh dedica-se aos rituais pelos quais um homem comum se transforma, aos seus olhos e aos demais, em algo diferente. Quando Aaron veste seus trajes sacerdotais, tecidos “pela glória e pelo esplendor" (Êxodo, 28:2), não ocorre uma transformação sobrenatural. O juiz não se faz pela toga e a bailarina não se consagra pelo tule. Mas as vestes são a lembrança diária do papel que se espera que ele desempenhe. O personagem tem que se mostrar à altura do figurino. Aaron, o homem, tem que crescer até ocupar o espaço de Aaron, o sacerdote.
Representação das vestes de Aaron
Junto com a minha mãe, Ananda K. Coomaraswamy foi um dos responsáveis pela mudança na forma como entendo arte. Especialista em arte indiana, Coomaraswamy defende que uma obra só faz sentido como objeto útil mas não utilitário: uma lembrança do que somos ou do que queremos ser, uma pergunta, a busca por uma solução. A cultura, como a religião, não existe como passatempo. Ou a integramos na vida, ou ela é um esnobismo sem propósito. O adorno do artefato não é uma superficialidade; as pessoas não precisam apenas de pão. A decoração atribui sentido ao banal e constrói significado na rotina. E o significado não é um luxo para os compradores de arte ou uma tarde de visita ao museu. O sentido é construído nas escolhas do cotidiano.
Exibição “Corpos celestiais”, 2018, Museu Metropolitan, Nova York
Talvez já tenha saído de moda, mas eram comuns as críticas ao modelo brasileiro de inclusão pelo consumo. O argumento era que as classes baixas, agora com dinheiro para gastar, recebiam um lustre de dignidade, sem que nada estruturalmente fosse alcançado. Mas talvez a primeira etapa para a recuperação da dignidade seja se conceber à altura de provar suas vestes. Somos construções da nossa imaginação e do nosso meio. Quão difícil é se imaginar diferente sem a confirmação externa do nosso valor? Quão básica é a necessidade de, com uns tapetinhos de cozinha e umas roupinhas na gaveta, construir um mundo pessoal?
Galeria britânica, Museu Metropolitan, Nova York
Aaron era um homem comum. O texto bíblico não faz nenhum esforço de retratá-lo como nada além de um homem comum. O processo de tecimento das vestes é ao mesmo tempo a construção do sagrado e sua negação: com o tabernáculo e a instauração de uma linhagem de sacerdotes, a Bíblia está narrando a formação da religião organizada; ao mesmo tempo, vemos o funcionamento da engrenagem. O mágico mostra o truque. Não precisava ser Aaron - é o processo que faz o sacerdote.
As artes aplicadas são o lembrete diário da nossa construção. De acordo com Coomaraswamy, a verdadeira arte sempre foi funcional. As obras são a manifestação material de uma necessidade abstrata. Que as estantes se cubram de badulaques e as roupas de índigo e ouro - em nome da construção da vida, pela glória e pelo esplendor.
Walk, walk, fashion baby
Além de roupas e decoração, sempre desprezei um tanto os cuidados com o corpo como futilidade. Desconsiderando que esse cérebro só existe num corpo que precisa de cuidados e manutenção e, por que não?, de adornos que tornem o habitar nele mais prazeroso =)
Mais uma edição tremenda. Obrigada por trazer inspiração e beleza às minhas manhãs!