Essa newsletter tem um projeto bíblico, escrito sob a perspectiva de uma judia secular. Nesse ciclo, falo sobre a Bíblia como narrativa, sem doutrinas ou dogmas. Esse é o quarto texto sobre o Êxodo. Cada edição é independente e não assume familiaridade do leitor. Na verdade, esse é um exercício de suspender o conhecimento prévio e se deixar levar pela história, em sua brutalidade e beleza.
Na quinta-feira, enquanto pensava nesse texto, eu peguei o metrô na direção errada. Eu tinha marcado de encontrar a minha mãe na região Sul, mas meu corpo estava acostumado com o rumo habitual: para casa, para o Norte. A engenharia do nosso cérebro é desenhada de modo que um mínimo de decisões seja consciente; para sermos viáveis, as conexões neurais automatizam as nossas ações recorrentes. O cérebro quer fazer o caminho conhecido, cristalizado pela repetição. Nós somos livres para criar as primeiras conexões neurais. A partir daí, caímos na esfera do hábito ou do vício. Tornamo-nos escravos das nossas próprias criações.
A Bíblia não é estranha ao poder da repetição. Uma de suas marcas de estilo é a insistência: a recorrência das expressões, a renovação das promessas, o ato de recontar a história dentro da própria história. A repetição tem o caráter didático de martelar o conteúdo. Mas ela também tem o efeito de tornar mais relevante o momento da quebra. O instante no qual a expectativa da repetição não se completa perfeitamente - nesse intervalo entre o familiar e o novo, é aí que algo se revela.
Nos primeiros capítulos do Êxodo, variações da frase “o coração do faraó endureceu” aparecem nada menos do que vinte vezes. Os hebreus eram escravos no Egito por quatrocentos e trinta anos, quando Deus escolhe Moisés para liderar o povo rumo à liberdade. Por dez vezes, Moisés se apresenta ao faraó e lhe pede que liberte os escravos. Por dez vezes, o coração do faraó se revela duro, e ele não deixa os hebreus irem embora. Dez pragas recaem sobre o Egito, até que o faraó cede. Mas ele logo recupera os hábitos do coração e manda o seu exército recapturar os hebreus no deserto.
O rabino Jonathan Sacks nota que a ideia de endurecer o coração do faraó é uma provocação contra a teologia egípcia. O único órgão que os egípcios mantinham após a mumificação era o coração, que se acreditava ser a morada da alma. No submundo, os mortos apresentariam seu coração para pesagem, e apenas as almas mais leves que uma pena da deusa Maat seriam recebidas no paraíso. A Bíblia Hebraica repetidamente condena o faraó não apenas segundo a ótica dos escravos, mas também pela perspectiva da teologia dominante - uma alfinetada de 2.500 anos.
A pesagem do coração
Há, porém, uma quebra na repetição que intriga os comentadores faz séculos. Nas primeiras cinco pragas, o faraó tem um papel ativo: ele endurece o próprio coração. Nas cinco pragas finais, por outro lado, ele parece reduzido a uma marionete de Deus. O texto para de falar no faraó endurecer seu coração e passa a usar a voz passiva, de modo que Deus torna-se responsável. Em um livro sobre liberdade, o faraó parece perder gradualmente a sua. Se o faraó não agiu livremente, porém, o texto desmonta. A noção de que as pessoas têm que ser julgadas por suas ações pressupõe que elas podem escolher como agir. Sem livre arbítrio, não há transgressão. Afinal, não se pode culpar o céu pelo pôr do sol ou o rio pela correnteza.
Ao longo do tempo, os comentadores propuseram várias soluções para esse dilema interpretativo. O rabino Sacks, falecido em 2020, ofereceu uma explicação à luz da neurociência moderna. As pessoas são livres para agir, mas são condicionadas pelos próprios caminhos neurais que construíram ao longo da vida. Mesmo na ausência de opressões externas, como no caso do faraó, as pessoas condenam ou redimem a si mesmas pelos vícios ou hábitos de seu cérebro - ou de seu coração. O faraó teria se habituado com a dureza a tal ponto que o caminho da crueldade passou a ser escolhido automaticamente, pelo cérebro primitivo.
Da minha graduação em Economia, lembro de alguns conceitos dispersos. Um deles é a ideia de path dependence, ou dependência da trajetória. Em contraposição à teoria econômica tradicional, cujos modelos assumem indivíduos perfeitamente racionais e livres para escolher, a teoria de dependência da trajetória faz parte da nova safra de pensamento econômico, fundada tanto na racionalidade quanto na liberdade parciais. De acordo com a teoria, as instituições tendem à inércia. Não escolhemos as coisas com base em um criterioso processo de deliberação, mas somos condicionados pelas decisões - muitas vezes arbitrárias - que foram tomadas no passado. Foi assim que acabamos por digitar em teclados QWERTY, mesmo o arranjo das teclas sendo ineficiente em comparação às alternativas. Foi assim que a NASA acabou por desenhar foguetes espaciais de acordo com as medidas das carruagens da Roma Antiga.
Em inglês, diz-se que as instituições são sticky - elas grudam na História como uma gosma pegajosa. Os caminhos que criamos para nós mesmos também tendem a permanecer - e, se deixarmos, a nos escravizar. No meu texto anterior, falei sobre o meu esforço para não me deixar cair no instinto rápido da crítica, e em seu lugar cultivar um projeto de amor. Deixar-se levar é perigoso, pois as máscaras que criamos grudam na cara. No meu poema favorito, Fernando Pessoa escreve, sob o nome de Álvaro de Campos:
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Tabacaria (1928)
Temos o potencial de nos deixar prender pelo personagem de nossa própria criação. O nosso cérebro age para confirmar os caminhos estabelecidos. Se formos duros, se formos pesados, as conexões neurais que construímos vão nos empurrar para que cavemos cada vez mais fundo. A máscara que criamos torna-se indistinguível de quem somos. A liberdade está na quebra da repetição: ser livre é um exercício de criar novas conexões.
A máscara do dominó
Fala que eu te escuto
A newsletter é meu projeto de amor, mas eu realmente queria que também fosse útil para quem lê. Achou alguma coisa legal? Algo soou estranho? Se você responder esse email, vem direto para mim, e eu vou adorar saber.
Até a próxima,
Ariela
Que edição maravilhosa. Me pegou muito a ideia da quebra da repetição - o exercício da liberdade é o mais difícil de todos. Obrigada pelo texto lindo
O Hume tem uma teoria lindinha sobre o hábito, preciso revisitar. É, esse texto me fez lembrar a máxima: quem é de verdade sabe quem é de mentira (hihi).