Essa é uma edição do ciclo bíblico, escrito sob uma perspectiva judaica e não-religiosa. Cada texto é independente e não assume conhecimento prévio. O trecho a que se refere essa edição é Ki Tisa ("Quando você contar”, Êxodo 30:11-34:35).
E Deus criou o humano à sua imagem,
À imagem de Deus Ele o criou,
Homem e mulher Ele os criou.
Gênesis (1:27)
Imagine um mundo coberto de ídolos. Super-pessoas, semi-deuses, imagens da glória. Um panteão completo: aquela que representa a beleza, aquele que sintetiza a força, uma outra que é a cara da inteligência. Não precisa fechar os olhos para imaginar. Essa não é a Grécia Clássica ou o Egito Antigo. Esse é o mundo em que vivemos.
Na abertura de Sexual Personae: Art and Decadence from Nefertiti to Emily Dickinson, Camille Paglia celebra que o paganismo na verdade nunca foi derrotado; ele vive na arte e na cultura pop. O cinema, a TV e os esportes - se o livro não fosse de 1990, Paglia citaria as redes sociais - incorporam os temas pagãos da Antiguidade. Adoramos pessoas excepcionais. Encaramos-as como ícones e percebemos-nos menores em comparação; contemplamos sua subida mas nos rejubilamos com a sua queda; amamo-las e odiamo-las. Pense em um cancelamento no Twitter: os seguidores não parecem estar sempre à espreita daquele escorregão que vai derrubar o ídolo, daquele tropeço que vai permitir que a turba se vingue pela humilhação diária? Paglia diria que sim: “os objetos cúlticos são prisioneiros de sua própria inflação simbólica”. Mas evoluímos: os rituais arcaicos primeiro sacrificavam pessoas, depois animais, e hoje nos contentamos com sacrifícios metafóricos.
A invenção do monoteísmo foi a revolta contra os panteões lotados. Sumérios, egípcios, gregos - um dos primeiros impulsos humanos parece ter sido elencar as excepcionalidades e cobrir o mundo de ídolos. Abraão, fundador mítico das três grandes religiões monoteístas, é considerado o primeiro a se rebelar. A história não está na Bíblia, mas é parte da literatura talmúdica e do Alcorão, cuja fonte são os comentários judaicos. Quando garoto, Abraão trabalhava na oficina de ídolos do pai, conta Gênesis Rabbah. Um dia, o pai deixou a loja de estátuas sob responsabilidade do filho. Abrahão aproveitou a oportunidade para destruir os ícones e ainda fazer troça: deixou o bastão que tinha usado para a tarefa nas mãos do único ícone intacto. Quando o pai voltou, indignado, perguntou ao filho quem tinha feito aquilo. Abraão apontou para a divindade segurando o bastão. Ao que o pai respondeu: “Isso não é possível, é só uma estátua!”.
Mas a Bíblia seria apenas uma grande estraga-prazeres se as únicas ilusões que ela fizesse em pedaços fossem as dos outros. Um dos maiores episódios da Bíblia destrói os próprios heróis. A história do bezerro de ouro passa como um trator na imagem idealizada do povo, na imagem idealizada das lideranças e na concepção idealizada do próprio Deus.
Até a antepenúltima porção do Êxodo, temos uma narrativa de triunfo. Os hebreus eram escravos no Egito, mas foram libertados. Deus entra na História para destruir a ordem imperial e abrir as possibilidades para uma vida nova. Moisés, o líder que duvidada de si mesmo, recebe as Tábuas da Lei. Aaron, escravo liberto, cobre-se com vestes sacerdotais. Temos as sementes de um protonacionalismo, a glorificação da nação e seus líderes, uma repetição do Egito em potencial. Até que o bastão que destruiu o Egito cai também sobre nós.
O primeiro elemento a cair é a ideia triunfal do povo. Moisés se ausenta por quarenta dias, para receber uma nova revelação divina, e a ansiedade se espalha entre os israelitas: no meio do deserto, eles não só tem um Deus que não conseguem enxergar, mas também um líder que desapareceu na montanha. O povo esquece o que estava construindo até então, a nova vida que estava forjando, e pede pelo retorno da velha ordem. Um ídolo à moda egípcia. Os israelitas entregam o que tem de valioso para a construção de um bezerro de ouro.
Em seguida, cai Aaron. Vice-liderança na ausência de Moisés, recém nomeado sacerdote, Aaron não segura o tranco. Ele cede à pressão popular e faz o bezerro com as próprias mãos. Quando confrontando, Aaron ainda se acovarda: “Eu lancei o ouro ao fogo e de lá saiu este bezerro!" (Êxodo 32:24).
Cai Moisés. Descendo da montanha com a palavra de Deus gravada em pedra, ele tem um surto de raiva quando encontra os israelitas em um bacanal em torno do bezerro. Ele quebra as tábuas divinas. Ele ordena a matança entre irmãos: “Cada um cinja a espada sobre o lado, passai e tornai a passar pelo arraial de porta em porta, e mate cada um a seu irmão, cada um, a seu amigo, e cada um, a seu vizinho” (Êxodo 32:27). Três mil pessoas foram executadas naquele dia.
Em uma interpretação corajosa, o rabino Jonathan Sacks fala que, naquele momento, acima de todos, errou Deus. Deus era como o pai que impõe respeito pelo medo, não pela proximidade. Sacks imagina o seguinte diálogo de Moisés com Deus:
Era como se Moisés estivesse dizendo: “Até agora, eles O experimentaram como uma força elementar e aterrorizante, distribuindo praga após praga aos egípcios, derrubando o maior império do mundo, dividindo o mar, destruindo a própria ordem da natureza. No Monte Sinai, apenas ouvindo a Tua voz, eles ficaram tão impressionados que disseram: “se continuarmos a ouvi-Lo, nós morreremos” (Êxodo 20:16). O povo precisava, disse Moisés, experimentar não a grandeza de Deus, mas a proximidade de Deus; não Deus ouvido em trovões e relâmpagos no topo da montanha, mas como uma presença perpétua no vale aqui embaixo”.
Como um pai decepcionado e evasivo, Deus fala para Moisés: “Veja como o seu povo se corrompeu” (Êxodo 32:7). Ao que o Moisés bíblico, não o imaginado por Sacks, retruca: esse é o seu povo, que eu não tirei ninguém do Egito sozinho (Êxodo 32:11). Deus diz que a decepção foi tanta que ele pode continuar com Moisés, mas vai deixar os israelitas seguirem o caminho pelo deserto por conta própria. Já recuperado da ira, Moisés se retira do acampamento e fala que não vai a lugar nenhum sem o povo. Ele pede para que Deus não os abandone. Os israelitas, Aaron, Moisés, Deus: todos seguem o caminho despedaçados.
No fim do Êxodo, não há ídolos. Cada pessoa é um fragmento falho, no entanto cada pessoa é digna de seguir para “a terra que mana leite e mel”. Quando perguntado porque a Bíblia se importa tanto com idolatria, porque se leva tão a sério a proibição a imagens cúlticas, o rabino Heschel respondeu: “É exatamente porque Deus tem uma imagem que os ídolos são proibidos. Você é a imagem de Deus. Mas o único meio pelo qual você pode moldar essa imagem é o material de toda a sua vida”. Cada pessoa, em seus sucessos e seus fracassos, é um fragmento de Deus na Terra. Qualquer representação idealizada, qualquer coisa menos que a vida completa de uma pessoa, é uma diminuição.
Quando dividimos o mundo entre ídolos e seguidores, entre os excepcionais e os comuns, entre o nosso eu real e o nosso eu ideal, diminuímos a experiência que é ser uma pessoa. Nos perdemos na imagem ideal projetada pelos outros e nos perdemos na imagem ideal que construímos para nós. O Êxodo, o livro da liberdade, termina sem ídolos, pois nada é mais libertador do que não ter uma imagem ideal para buscar.
Acho tão esclarecedor e tão inédito o modo como você traz essas temáticas, como você tem conduzido esse 'estudo'. Me sinto privilegiada a cada leitura. Obrigada!
“O Êxodo, o livro da liberdade, termina sem ídolos, pois nada é mais libertador do que não ter uma imagem ideal para buscar.”
Que coisa mais linda, Ariela. Caiu como uma luva por aqui ❤️