Essa é uma edição do ciclo bíblico, escrito sob uma perspectiva judaica e não-religiosa. Cada texto é independente e não assume conhecimento prévio. O trecho a que se refere essa edição é Vayakhel ("E ele reuniu”, Êxodo 35:1-38:20).
Sing in me, Muse, and through me tell the story
Primeiro verso da Odisseia, na tradução de Robert Fitzgerald
Escrever sobre si mesmo é o ato mais vergonhoso de todos, disse Karl Ove Knausgaard, autor de seis livros sobre a própria vida. Eu gosto de Karl Ove. Eu entendo seu constrangimento. Quando, no domingo passado, eu desisti de um texto sobre Herbert Marcuse para, com atraso, escrever um texto sobre mim, eu apertei o botão de “publicar” como uma certa desonra. Naquela semana, eu não achei nenhum tema sobre o qual pensar. Acabei falando do meu umbigo, o assunto mais desinteressante de todos.
O texto recebeu algumas reações tão bonitas que a vergonha passou aos poucos; agora sinto só uma pontada. Consolei-me com a ideia de que o que deu certo no texto se deu apesar de mim, da minha vida particular e sua individualidade. A palavra ultrapassa o autor e toca em algo que é compartilhado.
Talvez uma das noções mais prejudiciais que alimentamos sobre a arte seja a do artista como gênio. Enquanto o artesão é o trabalhador manual cujo nome é apagado, a partir do Renascimento, o artista é o dono da voz especial cuja personalidade se expressa através da obra. O artista moderno, na concepção atual, é uma pessoa superior. Livros são escritos sobre sua vida. Os seus pensamentos, mesmo fora de seu campo de atuação, importam. A própria palavra “artista” soa mais como um título, uma honraria, do que a descrição de uma habilidade.
Nas sociedades tradicionais, escreve Ananda K. Coomaraswamy, não há diferenciação entre a arte e o artesanato. O artista pertence ao mundo dos comuns e é bem-sucedido quando canaliza de maneira hábil, tecnicamente eficaz, o pensamento comum. A arte tradicional é muitas vezes anônima, pois é um veículo para a libertação da vida subjetiva. O artista não expressa suas idiossincrasias, mas tenta ser o portador de uma verdade que o transcende. Quando o contador do épico evoca a Musa, ou quando o escritor religioso se diz inspirado por Deus, ele não se imagina bebendo das águas de um poço secreto; ele se afirma como difusor de uma corrente compartilhada.
Após o episódio do bezerro de ouro, no qual todos os ídolos são derrubados, a narrativa bíblica se volta para a figura do artesão - ou do artista tradicional. Na porção anterior, todos os grandes tropeçaram. Aaron se acovarda e cede à pressão da massa. A ira de Moisés se inflama e ele ordena uma matança. Deus titubeia e ameaça abandonar o povo. O poder comunitário, até então celebrado pelo Êxodo, desfaz-se na adoração de um falso ídolo.
A porção Vayakhel representa a reconstrução depois do abalo. Ela é dedicada à edificação do tabernáculo pelas mãos de Bezalel, o artesão-chefe, e seus subordinados. O texto repete palavra por palavra as instruções que são dadas em capítulos anteriores, de modo que se concretiza o plano divino. A maquete ganha vida. O povo é chamado a contribuir com donativos, tecidos e pedras preciosas, tal que as doações de ouro para a produção do bezerro são redimidas pelos donativos para a obra do tabernáculo. As figuras centrais da Bíblia, recentemente chamuscadas, ficam em segundo plano. Entra em foco o artesão, a pessoa comum, todo o homem ou mulher hábil com as mãos (wise-hearted with their hands, na tradução de Robert Alter).
Coomaraswamy, especialista em arte indiana, escreve com as tintas carregadas de nostalgia por esse artista-artesão; pela figura que não é um exibicionista, mas que coloca as suas habilidades a serviço de um entendimento comum. Esse entendimento comum, na visão de Coomaraswamy, é do domínio da religião tradicional: hinduísmo, budismo, catolicismo. Mas há alternativas para pensar esse sentimento religioso sem o saudosismo de um tempo passado e perdido. Tolstói, escrevendo em sua fase de maior fervor cristão, cunha uma definição de religião surpreendente secular:
Em cada período da história, em cada sociedade humana, existe uma compreensão do significado da vida que representa o nível mais alto a que os homens daquela sociedade atingiram – uma compreensão que define o bem supremo que essa sociedade almeja. E essa compreensão é a percepção religiosa daquele tempo e daquela sociedade.
Trecho de “O que é arte", de Tolstói
Ele continua:
A percepção religiosa de nosso tempo, em sua aplicação mais ampla e prática, é a consciência de que nosso bem-estar, tanto material quanto espiritual, individual e coletivo, temporal e eterno, reside no crescimento da irmandade entre todas as pessoas.
Nesse ensaio, Tolstói condena indiretamente a própria literatura. No auge da fama, ele abandona o palco. Tudo que celebramos hoje de Tolstói são as obras que em vida o autor rejeitou, em favor de uma visão pela qual a arte do futuro viria dos comuns.
O artista do futuro viverá a vida comum das pessoas, ganhando sua subsistência por algum tipo de trabalho. Os frutos dessa força espiritual mais elevada que passa por ele, ele tentará compartilhar com o maior número de pessoas, pois em tal transmissão dos sentimentos que surgiram nele, ele encontrará sua felicidade e sua recompensa. O artista do futuro será incapaz de entender como um artista, cujo principal deleite está na ampla difusão de suas obras, só poderia dá-las em troca de um certo pagamento.
Bezalel, o artesão, é a pessoa que se dedica à criação em um mundo sem ídolos. Bezalel não é especial. Ele é um trabalhador, um comum. Após a queda dos grandes, não sobra o vazio. Revela-se o substrato que nos une.
J. Borges, xilogravura
Nossa, pensei muitas e muitas coisas lendo esse seu texto dessa semana. Achei especialmente bonito o que o Tolstói falou do artista do futuro, não sei se entendi tudo errado, mas acho que essa coisa que temos de ter que fazer tudo em busca de um grande reconhecimento, de sermos gênios, traz muito mais sofrimento do que só uma arte mais comum, acho que limita muitas possibilidades e a criatividade de cada um. Enfim, amo tudo que você escreve
Adorei, Ariela. Na última semana fui num evento literário sobre não ficção e surgiu o tema "escrever sobre si mesmo". Uma das participantes levantou o ponto de que as mulheres quando começaram a escrever, por terem suas vidas restritas, os faziam sobre si, suas casas, suas relações. Foi tratado como banal. Acredito que todo autor, seja ficção ou não, traz nas palavras um pouco de si mesmo que seja através de personagens. Já me vi no dilema "estou sendo muito egoica ao escrever isso?", achei bom a reflexão no fim porque existe mesmo uma linha que se atravessa e se chega na banalização de nós mesmos, vulgo parte dos conteúdos de instagram. Enfim... tagarelei muito. Amei as citações de Tolstói.