Esse texto faz parte do ciclo bíblico, escrito sob uma perspectiva judaica. A cada ensaio, descubro um pouco do que estou fazendo aqui. Espero que você descubra também.
As edições da newsletter são independentes e não assumem conhecimento prévio. Esse é o sétimo ensaio sobre o livro do Êxodo. O trecho a que ele se refere é Terumá (“Doações”, 25:1-27:19).
Eu sou o arquiteto, não o construtor. (…) Porque as pequenas construções podem ser terminadas pelos arquitetos que as começaram. As grandes, as verdadeiras, sempre deixam a cúpula para a posteridade.
Moby-Dick, de Herman Melville. Capítulo 32
O que um artista vê quando olha uma obra de arte? Essa é a pergunta por trás do Artist Project, do museu Metropolitan. Em uma série de vídeos curtos, artistas contemporâneos falam sobre suas peças favoritas do acervo e o que enxergam nelas. Algumas respostas são inspiradoras, outras menos. Gosto dessa série porque ela sugere uma mudança de foco: e se não olharmos para o mundo como consumidores? E se interagirmos com as coisas como participantes ativos, como criadores? Em que língua elas vão nos responder?
Alguns anos atrás, comecei a desenhar. Não desenho bem. Tampouco desenho muito. Mas, nas minhas fases mais ativas de prática, eu vou aos museus em busca das formas dos outros. Eu reparo nas ilustrações dos livros e nos cartões do supermercado. Eu fico alerta para as linhas que se revelam nos objetos e nas pessoas. A realidade se cobre de potencial criativo.
No texto bíblico anterior, comentei que, na metade do Êxodo, Deus toca a bola para as pessoas. Presença criadora no Gênesis, força libertadora no começo do Êxodo, a figura de Deus gradualmente se afasta da narrativa. No momento em que a lei é entregue, estabelece-se um marco de responsabilidade, mas também uma abertura de caminho: a partir daqui, é com vocês. Deus é o arquiteto, não o construtor.
O livro do Êxodo divide-se em uma porção épica, uma porção legislativa e uma longa descrição arquitetônica. O tabernáculo, espécie de templo móvel, é detalhado minuciosamente. Assim como as elucubrações biológicas de Melville interrompem a história de Moby-Dick, um bloco de texto sacerdótico-arquitetônico pesa sobre o Êxodo. Por que?
O tabernáculo, por Gerard Hoet (1648–1733)
A resposta mais simples é que a Bíblia é uma costura, uma criação de tamanho impensável, que passou por inúmeras mãos ao longo de mil anos. De vez em quando, os remendos aparecem. Robert Alter, estudioso e tradutor da Bíblia, comenta, porém, que esse bloco de texto não teria sobrevivido aos editores se ele não tivesse uma função narrativa. Haveria um sentido escondido na obra. E os intérpretes da Bíblia se encarregaram de desvendar (criar?) esse sentido.
De acordo com o rabino Jonathan Sacks, até a construção do tabernáculo o povo de Israel tinha papel passivo na narrativa - um espectador sobre o qual recaem bênçãos e desgraças. Havia um traço que caracterizava o povo, que se repetia a cada episódio: ele reclamava. Moisés clamou pela libertação dos escravos, mas o faraó não ouviu. O povo reclamou: o trabalho tinha piorado desde que Moisés resolveu se meter. O mar se abriu e os hebreus chegaram ao outro lado, livres. O povo reclamou: na outra margem, os vizinhos não eram amigáveis e haveria guerra. A guerra foi vencida, mas não havia comida para todos. O povo reclamou, até que o pão começou a cair dos céus. Enquanto a coletividade não tinha papel ativo, a fonte da insatisfação não secava.
Às vezes olhamos para uma obra de arte contemporânea e pensamos: eu poderia ter feito isso aqui. Enquanto nos colocamos como espectadores, essa afirmação é sempre feita em tom crítico. Há algo de quase ofensivo em um artista ter sucesso com algo que poderíamos ter criado nós mesmos, mas não o fizemos. É no momento que nos pensamos com criadores que a realidade se revela em suas dificuldades e potências. Quem já desenhou sabe como é difícil a firmeza do traço mais simples; como, para existir, tudo depende de um pequeno milagre. Quando rabiscamos nós mesmos algumas linhas tortas, quão mais bonito não nos parece o resultado? Quando nos colocamos na posição de criar e portanto falhar, de tentar e portanto nos frustar, de nos expor e arriscar o ridículo, quão mais misericordiosos não somos com os outros que também estão tentando e falhando?
Na porção Terumá, as pessoas são chamadas pela primeira vez a contribuir. O povo doa os materiais que tem para a construção do tabernáculo. As instruções são cuidadosas e exaustivas. Em um texto econômico, cujos personagens principais tem a morte anunciada em uma linha, a criação do tabernáculo ocupa vários capítulos. Robert Alter nota que o estilo literário é similar ao da primeira narrativa da Criação, que abre o Gênesis. Jonathan Sacks diz que não há no texto bíblico uma indício de que Deus, após tantos milagres sem recompensa, precisava de um altar. Mas havia sinais de que o povo precisava da dignidade de um papel ativo. As pessoas precisavam se pensar como criadoras.
Lembro de aprender esse trecho da Bíblia no colégio judaico e sentir uma falta irreparável. O tabernáculo um dia existiu e foi perdido para sempre. Tantos detalhes, tanto investimento, para nada. Mas o texto talvez já tenha sido escrito sem que o tabernáculo existisse ou sem que nunca tivesse existido. Nada foi perdido, porque o texto é a planta da obra. Para quem lê, o tabernáculo toma forma em um lugar da imaginação que é impossível de derrubar. Os detalhes estão lá para que o recriemos em nós.
Das paredes dos museus, os artistas mortos sussurram suas instruções. As obras acabadas são uma ilusão. Se as suas ambições forem grandes o suficiente, elas dizem: continuem.
já anotei umas frases tuas para começar a criar a próxima cartinha. o didi-huberman tem um livro maravilhoso chamado Cascas. nele, ele meio que aborda como as coisas também falam com a gente e nos transformam. a partir de cascas de árvores, ele reflete sobre holocausto, sobre o que as coisas nos dizem. vale a pena ler.
“Das paredes dos museus, os artistas mortos sussurram suas instruções. As obras acabadas são uma ilusão. Se as suas ambições forem grandes o suficiente, elas dizem: continuem.“
Sua perfeita! Amei ❤️