Esse texto faz parte do ciclo bíblico, escrito sob uma perspectiva judaica. A cada ensaio, descubro um pouco do que estou fazendo aqui. Espero que você descubra também.
As edições da newsletter são independentes e não assumem conhecimento prévio. Esse é o sexto ensaio sobre o livro do Êxodo. O trecho a que ele se refere é Mishpatim (“Leis”, 21:1-24:18).
There are five incomplete phenomena or unripe fruits. The incomplete experience of death is sleep; an incomplete form of prophecy is dream; the incomplete form of the world to come is the Sabbath; the incomplete form of the heavenly light is the orb of the sun; the incomplete form of heavenly wisdom is the Torah.
Abraham Heschel
Há uma frase famosa de Rousseau que diz que o homem nasce livre, mas que por toda parte encontra-se acorrentado. Haveria uma utopia perdida, um paraíso do qual fomos expulsos: o passado, a infância. O futuro seria a busca por um retorno ao que foi esquecido. Porém, qualquer um que estuda História pode ver que as roupas eram bonitas, mas o enredo não foi lá essas coisas. A infância pode nos ser querida, mas ela também é o momento no qual fomos menos livres.
A narrativa judaica, ao colocar o Êxodo como a origem do povo e celebrar anualmente sua lembrança, afirma: recorde, mas não queira voltar. Não há nada lá. No passado, você era escravo no Egito. Nosso coração é duro - nossa biologia é construída de tal forma que queremos percorrer o caminho conhecido, as conexões neurais já estabelecidas. Nascemos e crescemos em um mundo que herdamos, e precisamos inventar a alternativa. Ao custo da própria vida, o povo judeu insistiu em uma compreensão de mundo segundo a qual o messias ainda não chegou, o mundo ainda não foi redimido e segue incompleto. O melhor ainda está por vir. A liberdade é uma construção humana que mira sempre o futuro.
Na porção Mishpatim, temos que lidar com as minúcias da construção. As dez pragas passaram, o mar se abriu e a montanha já tremeu com a revelação dos Dez Mandamentos. Os capítulos que se seguem são conhecidos como o Livro da Aliança, a primeira codificação das leis hebraicas - a Constituição do povo independente. A grandeza do épico dá lugar ao comezinho da vida. Ou: a promessa de grandeza do épico só se justifica e se realiza quando traduzida no cotidiano da vida humana.
E como são cotidianas as preocupações do Livro da Aliança, como se imiscuem na vida prática das pessoas de três mil anos atrás. Se um boi chifrar uma pessoa, em que cenário o dono é responsável (21:28-32)? Se um animal cair em uma cova deixada aberta por acidente, o que fazer (21:33-34)? Se alguém ferir uma mulher grávida, tal que ela aborte, qual a pena (21:22)? É uma lista curiosa, que guarda relações com outras leis da região, como o Código de Hamurabi. De início, porém, mesmo descontando os milhares de anos que separam a nossa sensibilidade contemporânea da dos redatores do texto, fica um desconforto. A lei que abre o Livro da Aliança diz respeito à escravidão entre hebreus (“Se comprares um escravo hebreu, seis anos servirá; mas, ao sétimo, sairá forro, de graça.”). Dentro da narrativa, o Egito acabou de ser posto abaixo pelo crime de subjugar um povo mais fraco. Em seguida, livres, os hebreus regulam a escravidão entre irmãos.
Só podemos especular sobre o que se passava na cabeça dos primeiros contadores das histórias bíblicas, ou na de seus primeiros relatores. É tentador olhar para essa primeira lei, porém, como uma desculpa prévia, uma admissão de falha. Quando começamos a contar uma história que pode não nos colocar sob uma luz positiva, tratamos de logo incluir algum elemento que nos perdoe antecipadamente, ou que atenue a percepção da nossa culpa. No caso, a escravidão continuou, mas era mais benigna: os escravos eram libertados a cada sete anos, no ano sabático. Fico pensando que o contador dessa história não estava inventando os próximos capítulos conforme ia narrando; ele sabia como a história continuava. Os hebreus em breve iriam cair em desgraça e venerar um falso ídolo. Eles vagariam por quarenta anos no deserto. Saindo dessa história arcaica e olhando para os lados, imagino que esse narrador também percebesse as suas falhas e as do mundo que o cercava. A libertação do Êxodo era uma promessa não realizada. Um fruto verde.
O fim do épico e o começo da lei marcam uma mudança de jogo: Deus toca a bola para as pessoas. O rabino Jonathan Sacks comenta que Deus planta as condições para abolir a escravidão (o sabático gera o hábito da liberdade), mas só às pessoas cabe cultivar a semente até o estado maduro. Deus criou o mundo uma vez, mas as pessoas têm que criá-lo todos os dias. Deus libertou o povo uma vez, mas a liberdade é uma construção diária. Recebemos o mundo na forma incompleta e cabe a nós consertá-lo. O épico é dos deuses; a lei é das pessoas.
O texto que codifica o judaísmo como o conhecemos não é a Bíblia, mas o Talmud. O Talmud é um compêndio de milhares de páginas, cujos textos foram escritos entre os anos 200 e 500 da Era Comum, e que detalham o entendimento rabínico sobre as leis, a filosofia e os costumes judaicos. Por exemplo, no trecho Mishpatim, a Bíblia proíbe que se cozinhe um animal no leite da mãe. O Talmud é responsável por explicar e expandir essa regra, de modo que chegamos ao entendimento atual de que um judeu observante não come ceasar salad, pois o prato mistura frango e queijo.
Consta no Talmud uma história interessante, conhecida como O forno de Akhnai (original aqui). O causo é mais ou menos assim:
Quatro rabinos estão discutindo sobre o formato de um forno. Três deles, liderados pelo rabino Yehoshua, estão convencidos de que o forno não é compatível com as leis dietéticas judaicas. O rabino Eliezer, por sua vez, acredita fervorosamente que o forno é adequado. Ele não consegue convencer seus colegas rabinos pela lógica e pela letra da lei, de modo que pede intervenção divina.
- Se eu estou correto, que essa árvore sirva de evidência! - diz o rabino Eliezer.
De repente, a árvore se desenraiza do solo, caminha sobre o campo e depois volta a se instalar na terra. Os rabinos ficam sem palavras por um momento.
Finalmente, um deles rompe o silêncio:
- Isso foi impressionante, mas não vejo o que a árvore tem a ver com o forno.
Os outros dois rabinos acenam com a cabeça e dizem:
- De fato, não prova nada.
O rabino Eliezer prosseguiu:
- Se a minha opinião está correta e de acordo com a lei, o rio servirá de evidência!
E assim o fluxo do rio muda de direção, sob os olhos espantados dos rabinos.
- O rio não tem voto, Eliezer! São três contra um. Você não tem argumentos, está errado - diz o rabino Yehoshua.
Ao que o rabino Eliezer se exaspera e clama para os céus:
- Se a minha opinião estiver correta, que Deus prove!
Uma voz estrondosa grita dos céus:
- Eliezer está certo!
Yehoshua levanta-se e esbraveja de volta:
- A lei não está no céu!
Deus, abençoado seja Ele, sorri e diz:
- Meus filhos triunfaram sobre mim. Meus filhos triunfaram sobre mim!
No Êxodo, a lei atravessa a narrativa pois a história só faz sentido se servir ao propósito de elevar a vida humana. Não se separa a arte da vida, não se separa a narrativa da lei: a lei é a palavra viva. O épico é a visão divina; a lei é a execução humana. E, como qualquer um que já tentou alguma coisa sabe, a execução de um plano fica sempre muito aquém de nossa imaginação. Nada nasce sem uma falha; tudo é incompleto. E ainda assim nossa tarefa é cultivar esses frutos verdes.
O mundo nos é apresentado em sua forma não acabada. Não há nada para trás a ser recuperado, pois não se sente nostalgia das sementes. Os rabinos do Talmud libertam-se do Pai e constroem um mundo de acordo com a própria interpretação. Nascemos presos e precisamos construir a liberdade.
se o mundo estivesse completo, para que agir? se as histórias nos dessem as respostas certas, para que viver? os volumosos volumes do talmud são o testemunho das tentativas e erros com que a humanidade caminha pela história. seu ensaio é instigante, ariela. como o talmud levanta questões sobre questões e me lembrou esta conversar aqui: <https://oestadodaarte.com.br/o-talmud/> obrigado!
Que texto!!! Estou curtindo MUITO sua sequência!!! Destaco essa parte:
"Deus criou o mundo uma vez, mas as pessoas têm que criá-lo todos os dias. Deus libertou o povo uma vez, mas a liberdade é uma construção diária."
Eu cresci imersa em conhecimentos religiosos cristãos bíblicos, e ao longo dos anos fui me dirigindo a esse tipo de leitura que você apresenta, mais histórica e isenta, também muito interessante! Mas, inevitavelmente, eu ainda tenho muitas mesclas de referências antigas, de outros contextos, e ler algo tão diferente do que eu costumo ter contato e ao mesmo tempo que está tão de acordo com tudo que eu leio está sendo incrível!!!