Essa newsletter tem um projeto bíblico, escrito sob a perspectiva de uma judia secular. A cada texto, eu mesma descubro o que quero dizer com isso.
Em termos práticos, o projeto consiste em publicar a cada duas semanas um texto sobre a Bíblia Hebraica (o Antigo Testamento, se você é cristão). Sigo a divisão em porções estabelecida por Maimônides, estudioso medieval. Esse é o primeiro texto sobre o Êxodo, que é o segundo livro da Bíblia. Cada edição é independente e não assume conhecimento prévio.
Aqui não reivindico o judaísmo como identidade ou como religião, mas como prática interpretativa: o que há de judaico nesta newsletter é hábito cultural de confronto com o texto. Eu leio a Bíblia com atenção e deixo o sentido emergir das palavras, sem compromisso com doutrinas ou dogmas.
O Êxodo é a história de uma revolta de escravos, escrita sob a perspectiva do subalterno. Se essa frase parece um anacronismo destinado a afagar as sensibilidades modernas, vamos dar uma olhada no que eram as narrativas de um outro povo antigo - os gregos.
No campo literário, a Grécia Antiga nos legou os épicos e as tragédias, ambas formas de expressão comprometidas com a manutenção do poder estabelecido. O épico celebra os grandes homens e seus feitos, legitimando as pretensões aristocráticas da elite grega. O material do épico clássico não é o azarão, a pessoa comum que tem sucesso contra forças poderosas; os heróis são os chefes de tribos guerreiras que, auxiliados pelos deuses, provam seu valor. As tragédias eram encenadas como parte de festivais religiosos, nos quais os assentos de honra eram destinados a membros do Estado e dignitários oficiais.
Para vermos como os gregos resolviam a tensão entre o poder do Estado e as liberdades civis, vale lembrarmos de Antígona. Na peça escrita em 441 AEC, Sófocles reconta a história dos filhos do rei Édipo. Etéocles e Polinices, os dois filhos homens, matam um ao outro em uma disputa pelo trono. Antígona e Ismene, as duas filhas, abrem a peça com o dilema: o que fazer com o cadáver de Polinices? Considerado um traidor do Estado pelo novo rei, Creonte, há uma ordem que proíbe o seu enterro. O corpo deveria ser deixado para os abutres. A quem desobedecesse, restava uma condenação à morte.
Antígona decide sepultar o irmão. Em um diálogo com Creonte, ela faz uma defesa das leis divinas, ou do código moral não escrito, sobre as leis dos homens. O imperativo moral se sobrepõe ao dever com o Estado:
Creonte:
E te atreveste a desobedecer às leis?
Antígona:
Mas Zeus não foi o arauto delas para mim,
nem essas leis são as ditadas entre os homens
pela Justiça, companheira de morada
dos deuses infernais; e não me pareceu
que tuas determinações tivessem força
para impor aos mortais até a obrigação
de transgredir normas divinas, não escritas,
inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,
é desde os tempos mais remotos que elas vigem,
sem que ninguém possa dizer quando surgiram.
A peça inteira é construída na tensão entre a razão de Antígona e a razão de Creonte. Na colisão entre duas causas justas, ambos são punidos, mas o peso maior recai sobre a heroína desobediente. Antígona morre; Creonte perde a esposa e o filho.
Aproximadamente contemporânea das tragédias gregas, como a Bíblia Hebraica representa esse conflito tão central na obra-prima de Sófocles? Saem as princesas Antígona e Ismene, entram as parteiras Sefra e Fua. A tensão insolúvel de toda uma peça se resume a um parágrafo no começo do Êxodo: o faraó manda matar os filhos homens das hebréias; as parteiras inventam uma desculpa e desobedecem; Sefra e Fua tem um final feliz.
O rei do Egito disse às parteiras dos hebreus, das quais uma se chamava Sefra e a outra Fua: “Quando ajudarem as hebreias a darem à luz, observem o banco de parto. Se for menino, matem-o. Se for menina, deixem-a viver.” E as parteiras temeram Deus e não fizeram o que o rei do Egito lhes havia ordenado, e deixaram os meninos viverem. E o rei do Egito chamou chamou as parteiras e lhes disse: “Por que fizeram isso e deixaram os meninos viverem?” E elas responderam ao faraó: “As mulheres dos hebreus não são como as egípcias, elas são fortes. Antes que as parteiras cheguem, já deram à luz.” E Deus favoreceu as parteiras, e o povo multiplicou-se e se tornou vasto. E como as parteiras temeram a Deus, Ele lhes deu também famílias.
Há algumas características que fazem deste um trecho notável. A história de Sefra e Fua é o registro mais antigo de desobediência civil. A resistência não acontece em contexto heróico e não há indício de drama moral: duas pessoas comuns, duas mulheres, simplesmente não reconhecem a autoridade do faraó e fazem o que lhes parece correto. De fato, a primeira porção do Êxodo celebra a desobediência silenciosa de uma cadeia de mulheres às quais Moisés deve a vida.
Primeiro, as parteiras se recusam a seguir as ordens do faraó, que em seguida endurece as leis contra os hebreus. A mãe de Moisés, uma escrava no Egito, desobedece a ordem imperial e esconde por três meses o bebê a que deu à luz. Quando ela não pode mais escondê-lo, Moisés é colocado em um cesto no Nilo. Miriam, sua irmã, acompanha de longe o paradeiro da criança. Ela vê quando a princesa do Egito salva o bebê da morte (“Esse é um dos filhos dos hebreus”), aborda-a e sugere a própria mãe como ama de leite. A narrativa não registra nenhum momento de hesitação ou questionamento interior. A coragem só existe quando se vê os eventos pelo retrovisor; a desobediência é um dado.
O ponto de vista sob o qual a Bíblia é escrita explica a naturalidade da desobediência civil. Cercado por impérios, o povo hebreu não era estranho à submissão e à derrota. Enquanto o teatro grego compunha um ritual religioso, um triunfo público das cidades-estado, a Bíblia Hebraica foi costurada pelos perdedores da História. De acordo com o consenso acadêmico, a redação final da Bíblia foi produzida no exílio babilônico pelos hebreus expulsos de sua terra natal. No silêncio dos escribas, eles forjaram uma rebelião. No primeiro livro, estabeleceram que todas as pessoas, não só os nobres guerreiros, são feitos à imagem divina. No segundo livro, a escória do Egito levanta-se em revolta; a Bíblia é a sua narrativa de grandeza.
Há um pensador que leu a Bíblia, entendeu-a de forma brilhante e a odiou com fervor. Esse pensador foi Friedrich Nietzsche. Na Genealogia da Moral (1887), ele identifica a inversão de valores que a Bíblia Hebraica representa, e eu aqui reproduzo em toda a sua explosão de raiva:
Tudo o que foi feito para prejudicar os grandes e poderosos desta terra parece trivial comparado ao que os judeus fizeram, aquele povo sacerdotal que conseguiu se vingar de seus inimigos e opressores invertendo radicalmente todos os seus valores, isto é, por um ato de vingança espiritual. (...) Foi o judeu que, com assustadora consistência, ousou inverter os valores aristocráticos de bom/nobre/poderoso/belo/feliz/favorecido-dos-deuses e manter, com o ódio furioso dos fracos e despreviligiados, que “só os pobres, os impotentes, são bons; apenas os sofredores, doentes e feios, verdadeiramente abençoados. Mas vocês nobres e poderosos da terra serão, por toda a eternidade, os maus, os cruéis, os avarentos, os ímpios, e assim serão amaldiçoados e condenados!”... Sabemos quem são os herdeiros desta inversão de valores judaica… Em relação à grande e indescritivelmente desastrosa iniciativa pela qual os judeus lançaram a mais radical de todas as declarações de guerra, desejo repetir uma afirmação que fiz em um contexto diferente (Além do Bem e do Mal), a saber, que foram os judeus que iniciaram a revolta moral dos escravos; uma revolta com dois milênios de história, que hoje perdemos de vista simplesmente porque triunfou tão completamente.
De acordo com Nietzsche, todos os elevados valores nobres foram gradualmente envenenados pela Bíblia. O épico foi substituído pelos escravos, pela massa, pelos comuns.
Mas o que é toda essa conversa sobre valores mais nobres? Vamos encarar os fatos: o povo triunfou - ou os escravos, a turba, o rebanho, como você quiser chamá-los - e se os judeus o fizeram, então nenhuma nação jamais teve uma missão mais universal nesta terra. Os senhores são coisa do passado, e a ética do homem comum é completamente triunfante. Não nego que esse triunfo possa ser visto como uma espécie de envenenamento do sangue, pois resultou em uma mistura de raças, mas não há dúvida de que a intoxicação foi bem-sucedida. A “redenção” da raça humana (dos senhores, isto é) está bem encaminhada; tudo está rapidamente se tornando judaizado, ou cristianizado, ou massificado - a palavra não faz diferença.
Foi a Bíblia que corroeu Roma por dentro. Foram seus “preconceitos democráticos", nas palavras de Nietzsche, que alimentaram a Revolução Francesa. Provavelmente há Biblia também na virulência com que ele fala contra os ingleses, povo que se levantou contra o rei na Revolução Puritana. Em uma rebelião de fundo religioso, os puritanos se recusaram a reconhecer a autoridade divina da monarquia. Um século depois, foi a Bíblia que semeou também a Revolução Americana. Inspirado pelo Antigo Testamento, Benjamin Franklin sugeriu "Rebelião aos tiranos é obediência a Deus” como lema oficial dos Estados Unidos. Em Redenção e Utopia, Michael Lowy investiga a origem messiânica das ideias que alimentaram também os revolucionários do século XX.
A Bíblia é muito atual ou somos nós que somos muito antigos? Quando, na gaveta de um hotel qualquer, você encontrar uma Bíblia surrada, lembre que lá há uma história de rebelião de escravos. O livro mais comum do mundo é uma narrativa de insubordinação.
Ilustração sobre revolta de escravos no século XVIII, no estado da Virgínia, EUA
Lema do estado da Virgínia no mesmo período
Notas sobre tradução:
Para Antígona, usei a tradução de Mário da Gama Kury.
Para o Êxodo, faço um mishmash da Bíblia de Jerusalém com a tradução para o inglês de Robert Alter.
Para Nietzsche, joguei a tradução para o inglês do Francis Golfing no Google Translate e dei uma ajustada. Abaixo, a versão em inglês.
Ensaio I, parte VII
“Whatever else has been done to damage the powerful and great of this earth seems trivial compared with what the Jews have done, that priestly people who succeeded in avenging themselves on their enemies and oppressors by radically inverting all their values, that is, by an act of the most spiritual vengeance. (...) It was the Jew who, with frightening consistency, dared to invert the aristocratic value equations good/noble/powerful/beautiful/happy/favored-of-the-gods and maintain, with the furious hatred of the underprivileged and impotent, that “only the poor, the powerless, are good; only the suffering, sick, and ugly, truly blessed. But you noble and mighty ones of the earth will be, to all eternity, the evil, the cruel, the avaricious, the godless, and thus be cursed and damned!”... We know who has fallen heir to this Jewish inversion of values… In reference to the grand and unspeakably disastrous initiative with the Jews have launched by this most radical of all declarations of war, I wish to repeat a statement I made in a different context (Beyond Good and Evil), to wit, that it was the Jews who started the slave revolt in morals; a revolt with two millenia of history behind it, which we have lost sight of today simply because it has triumphed so completely.”
Ensaio I, parte IX
“But what is all this talk about nobler values? Let us face facts: the people have triumphed - or the slaves, the mob, the herd, whatever you wish to call them - and if the Jews brought it about, then no nation ever had a more universal mission on this earth. The lords are a thing of the past, and the ethics of the common man is completely triumphant. I don’t deny that this triumph might be looked upon as a kind of blood poisoning, since it has resulted in a mingling of the races, but there can be no doubt that the intoxication has succeeded. The ‘redemption’ of the human race (from the lords, that is) is well under way; everything is rapidly becoming Judaized, or Christianized, or mob-ized - the word makes no difference.”
Prezada Ariela,
Não assino a sua newsletter, mas a acompanho por RSS. Como autor de newsletter sei como é importante recebermos o apoio e o feedback dos nossos leitores para continuar com o ofício duro e solitário de escrever.
Hoje, mais uma vez embevecido e embasbacado por mais um texto genial, passo aqui para lhe parabenizar e agradecer por compartilhar tanto conhecimento. Suas análises são tão ricas e interessantes que me estimularam a reler a Bíblia, algo que não faço desde o catecismo quando tinha12 anos.
Sendo assim, queria saber se recomenda alguma edição do Antigo Testamento ou da Bíblia Hebraica em português, tanto pela qualidade quanto pela fidelidade da tradução.
Mais uma vez, parabéns pelo belíssimo trabalho e pela qualidade do seu texto.
Abraços,
Lisandro Gaertner
amar um tirano
é a coisa mais comum
segundo os telejornais
de horário nobre
e notícias podres
é preciso ganhar a vida
ameaçada pela vida
de tantos outros
tão diferentes
é preciso a segurança
de mãos armadas até a boca
da noite acuada
até o fundo de nós
é preciso abrir feridas
nos sorrisos calculados
de propagandas comerciais
nos gritos de louvor
dos microfones oficiais
é preciso amar um tirano
e sua sombra a pairar
sobre nós