Êxodo e Revolução (15/54)
Essa newsletter tem um projeto bíblico, escrito sob a perspectiva de uma judia secular. Nesse ciclo, falo sobre a Bíblia como narrativa, como história - sem doutrinas ou dogmas. Esse é o terceiro texto sobre o Êxodo. Cada edição é independente e não assume conhecimento prévio.
Mais que os outros, esse texto é um ensaio, uma tentativa de aproximação. A ideia me martela a cabeça desde que li "Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central”, de Michael Löwy. Judeu de família vienense, sociólogo de orientação marxista, Löwy estuda a obra da primeira geração de pensadores judeus que ousou sair do gueto, aos quais a Alemanha e Áustria agradeceram com a câmara de gás e o exílio. Löwy foi orientado por um desses pensadores: Gershom Scholem, principal acadêmico da cabala e amigo próximo de Walter Benjamin. Benjamin citou Scholem em seu último ensaio, “Teses sobre o conceito da História”. Scholem dedicou seu principal livro à memória de Benjamin.
Em um texto anterior, argumentei que a Bíblia é a primeira narrativa a desafiar a ordem estabelecida, em vez de confirmá-la. O Êxodo é a história de uma revolta de escravos, contada sob a ótica dos subalternos. Nesta edição da newsletter, argumento que a maneira como o Êxodo entende a História é análoga à ideia de revolução, e um de seus maiores intérpretes foi Walter Benjamin.
Quando o Êxodo começa, o poder faraônico havia esquecido José, o ministro das finanças hebreu, e Deus também havia esquecido o seu povo: os hebreus eram escravos em terras egípcias por quatrocentos e trinta anos. O crescimento da população escrava ameaçava o faraó, que ordena a matança de todos os bebês hebreus do sexo masculino. Miriam deixa o seu bebê em um cestinho no Nilo. A correnteza arrasta-o até a filha do faraó, que salva o filho dos hebreus e o cria em sua casa. Já adulto, Moisés recebe o chamado de Deus para voltar para o seu povo e liderá-lo para a liberdade. O faraó se recusa a deixar os hebreus partirem. Pelas mãos de Moisés, Deus faz recair sobre o Egito dez pragas - cada uma delas, uma afronta específica a um deus do panteão egípcio. Segue-se um banho de sangue: da primeira praga, em que o Nilo se tinge de vermelho, à última, na qual morrem todos os primogênitos do Egito. Sob o peso do próprio filho morto, o faraó concede a liberdade aos hebreus.
Se o Deus do Gênesis é a força da criação-destruição, o Deus do Êxodo é o impulso que move a História. A História para os hebreus não é cíclica, como para os gregos; não é contínua, como para os budistas; a História como concebida pela Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento, para os cristãos) é feita de rupturas, e no rompimento mora a redenção. No Êxodo, Deus entra na arena da História para libertar os escravos. A revelação das leis divinas, as tábuas da lei, acontecem sob o pano de fundo da mudança histórica.
“Para a maioria das pessoas, na maior parte dos tempos, a História parece não ter significado. Vivemos, morremos, e é como se nunca tivéssemos existido. O universo não dá nenhum sinal de interesse em nossa existência”, escreve o rabino Jonathan Sacks. Ele continua: a Bíblia inventa a ideia de que os fatos históricos têm dimensão divina; que a História não é uma sucessão de eventos aleatórios, mas é o próprio drama da redenção. Os hebreus foram libertados e puderam encontrar Deus e receber a lei. A salvação não acontece na esfera privada e individual, mas na arena histórica e coletiva.
Quando Deus se revela a Moisés, ele se recusa a dizer seu nome. Em vez de uma resposta direta, nas traduções cristãs, Deus diz: “Eu Sou o Que Sou” (Êxodo 3:14). Deus é o absoluto. As traduções hebraicas, porém, empregam um tempo verbal diferente: “Serei o Que Serei”. Deus é o que vai se revelar, no futuro que está para ser construído. No judaísmo observante, ainda se aguarda o retorno do Messias, que redimirá o mundo da injustiça e trará o fim da História. Um segundo Êxodo, mas definitivo. Ao longo do tempo, o Messias foi reinterpretado não como um profeta isolado mas como uma Era; não como uma espera, mas como uma busca.
Na encruzilhada entre marxismo e messianismo, surgiu na Europa Central uma geração de judeus que retomou o Êxodo com um estrondo: eles viram na História o domínio da salvação. Walter Benjamin é um dos nomes centrais. Em suas notas preparatórias às Teses sobre o conceito da História, Benjamin escreve que Marx, neto de rabinos por parte de mãe e de pai, secularizou a redenção: “Marx secularizou a representação da Era Messiânica na representação da sociedade sem classes. E ele tinha razão.” Para Benjamin, escreve Michael Löwy, a revolução é a interrupção redentora da continuidade histórica.
As Teses são um texto estranho, críptico, talhado de referências religiosas. Nele, redenção e revolução são mais que sinônimos: são uma unidade histórica. O ensaio foi escrito em 1940, quando Benjamin intuía que o fim estava próximo, e contém as marcas da urgência e do desespero. Entre suas ideias centrais está a noção de que o tempo não é homogêneo, mas é feito de rupturas: “A consciência de fazer explodir o continuum da História é própria às classes revolucionárias no momento da ação.” Benjamin critica a social-democracia e sua crença no progresso contínuo, que identifica evolução tecnológica com evolução social. Escrevendo durante a Segunda Guerra Mundial, Benjamin sabia a serviço de que o progresso tecnológico poderia ser colocado. Benjamin argumenta por uma História feita pelos derrotados, forjada na “imagem dos antepassados escravizados”. “O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados.”
A geração de intelectuais do começo do século XX acreditava ser Moisés, descendo da cátedra para libertar os que sofrem. O mundo estaria às margens da redenção. Em carta a Scholem, em 1931, Benjamin prevê que a revolução operária seria iminente: “acho muito pouco provável que seja preciso esperar mais do que o próximo outono para a eclosão da guerra civil”. Não há palavras para descrever o destino dessa geração, mais atormentada que qualquer um dos profetas bíblicos. A revolução não acontece. Em seu lugar, a catástrofe. Em 1933, com amplo apoio popular, Adolf Hitler torna-se chanceler da Alemanha. Em 1940, fugindo dos nazistas, Benjamin tira a própria a vida.
Que sua memória seja uma benção.
Dedicatória de Major Trends in Jewish Mysticism, por Gershom Scholem
Angelus Novus, por Paul Klee. Citado por Benjamin, Tese 9
Com um agradecimento especial a Nadav Peretz Mals pela amizade e pela indicação do livro do Löwy. Li só depois de 15 anos.