Essa newsletter tem um projeto bíblico, escrito sob a perspectiva de uma judia secular. Nesse ciclo, falo sobre a Bíblia como narrativa, como história - sem doutrinas ou dogmas. Esse é o segundo texto sobre o Êxodo. Cada edição é independente e não assume conhecimento prévio.
Você já conheceu alguém em uma livraria? Já encontrou uma pessoa interessada no mesmo livro e trocaram impressões, talvez olhares? Comigo nunca aconteceu, ao menos no sentido romântico. O único estranho que já falou comigo em uma livraria foi assim: eu estava agachada para alcançar a primeira prateleira de uma estante, com uma pilha de bíblias no chão. Era para um curso de Bíblia como literatura. Ouvi uma voz desconhecida, cheia de compaixão demais para ser de um vendedor: Precisa de ajuda? Olhei para a cima e vi um moço na casa dos quarenta anos com uma tatuagem no rosto. O braço dele dava apoio para um senhor de óculos escuros, cego. O moço estava se recuperando do alcoolismo e fazia trabalho social - sei porque me contou, assim como me ajudou a escolher uma Bíblia. Ele assumiu que eu também era uma cristã procurando um caminho. Não tive coragem de desfazer o mal entendido.
Pensamos pouco das pessoas que admitem precisar de ajuda para viver. Lembro de quando uma colega de escola, inteligente e promissora, entrou para a ortodoxia e fez um casamento arranjado. Eu e minha amigas pensamos que era uma fuga - no começo da vida adulta, a colega teria encontrado o conforto das respostas prontas, de uma vida meticulosamente organizada pela tradição. Nas livrarias, olhamos as estantes de auto-ajuda com alguma ironia, às vezes com algum desprezo. Quem precisa de regras para a vida? Quem são essas pessoas que precisam de ajuda para viver? Os números de vendas do setor de auto-ajuda, que basicamente subsidiam o mercado editorial, não mentem: somos todos.
Nas sociedades antigas, o sentido era construído conjuntamente através de histórias compartilhadas. Os povos da Mesopotâmia tinham o Épico de Gilgamesh. Os gregos tinham a sua mitologia. Os hebreus, povo espremido entre impérios, tinham o que os cristãos conhecem hoje como o Antigo Testamento. As histórias não eram literatura como hoje a entendemos: eram chaves de leitura do mundo. Qual o sentido da experiência humana? Deixa eu te contar a história de Moisés, da linhagem de Abraão. Ouça o causo de Édipo, o rei de Tebas.
As histórias têm um componente evolutivo - uma ideia é como uma mutação da mente. De um caldo de noções existentes, surge algo novo; no começo, talvez minusculamente novo. Se a ideia é prejudicial, ela seca até desaparecer. Mas se por acaso fabricamos uma história boa - uma história que nos ajuda e nos adapta à tarefa de viver - temos uma ideia evolutivamente vencedora. Uma ideia, como um gene, não é boa ou má em termos absolutos - a ideia, em si, é inerte. O poder de uma história pode ser julgado pela sua força replicadora - o ouvinte não resiste a se tornar um narrador. A ideia se reproduz pois ajuda o seu hospedeiro a seguir em frente.
Há cerca de 2500 anos, conviviam as duas escolas de narrativa que alimentaram a nossa cultura: a grega, que desembocou em Roma, um dos maiores impérios que já existiu, e a judaica, de uma província insignificante, um fim de mundo do Oriente Próximo. A mutação judaica entrou em Roma pela via dos mais simples, dos despossuídos, e a história que ela carregava transformou o império por dentro. Nietzsche, que começou a carreira com um elogio à tragédia grega, chamou esse processo de uma das mais ardilosas contaminações culturais já realizadas, uma vitória dos escravos abjetos sobre os gloriosos greco-romanos. Em O nascimento da tragédia, porém, o próprio Nietzsche fala que a tragédia morreu de suicídio. Qual é essa diferença de sensibilidade que seca a fonte dos senhores mas toma de assalto a imaginação dos escravos? Vamos dar uma olhada nas histórias de Moisés e Édipo Rei.
Além de serem duas figuras centrais de suas respectivas tradições narrativas, Moisés e Édipo guardam semelhanças importantes, que tornam mais evidentes a diferença de seus destinos. Tanto Moisés como Édipo escapam do infanticídio. Moisés é o bebê que sobrevive à ordem faraônica de executar todos os recém-nascidos judeus do sexo masculino. Ele é salvo por uma sequência de mulheres: as parteiras que recusam o assassinato, a mãe que o esconde, a princesa do Egito que o resgata do Nilo e a irmã que oferece a mãe como ama de leite. Édipo é entregue pelo pai para ser morto, pois uma profecia previa que o bebê cresceria para assassinar o pai e casar com a própria mãe; um camponês tem piedade da criança e a entrega com vida para outro reino.
Tanto Moisés como Édipo crescem longe de sua família de origem, sem desconfiar de suas raízes. Moisés, filho de escravos, é criado como neto do faraó. Édipo torna-se príncipe herdeiro de Corinto.
Tanto Moisés como Édipo são questionadores. Quando Deus revela a Moisés que ele salvará o seu povo da escravidão, Moisés confronta Deus inúmeras vezes: eu não; eu não sou a pessoa certa; eu não falo bem em público; eles não vão me ouvir. Mas Deus tem para Moisés um plano de grandeza do qual ele não vai escapar; Deus está prestes a entrar na História não para confirmar a ordem vigente, mas para libertar os que sofrem.
Édipo aprende sobre a sua profecia infantil e, não sabendo ser adotado, foge de Corinto para evitar a sua concretização. Na estrada, ele tem um desentendimento com outro viajante e o assassina, sem saber que acabara de matar o próprio pai, rei de Tebas. Chegando em Tebas, uma esfinge o desafia a resolver um enigma, cujo prêmio seria o casamento com a rainha recém-viúva. Édipo soluciona o enigma e se casa com a própria mãe. Quando uma praga recai sobre Tebas, cabe ao rei Édipo desvendar a causa da desgraça. Ele questiona o oráculo seguidamente, que se recusa a dar uma resposta. Quanto mais Édipo questiona, mais perto está do horror da verdade. Quando o camponês que lhe salvou reconta o passado, Édipo fura os próprios olhos em desespero. O destino humano é de um terror que só se torna mais próximo quanto mais se tenta evitá-lo; a ordem do mundo é cruel e incontornável.
Em O nascimento da tragédia, Nietzsche descreve o prazer da plateia na destruição do herói:
Ele terá considerado as ações do herói justificadas e ainda assim sentirá uma exaltação ainda maior quando essas mesmas ações trouxeram sua destruição. Ele terá estremecido com os sofrimentos prestes a recair sobre o herói, e ainda assim adivinhará neles uma alegria superior, irresistível. Ele terá visto mais e mais profundamente do que nunca, porém desejará a cegueira.
O espectador da tragédia é um sádico: sua visão de mundo é pessimista e ele tem prazer quando a queda se confirma. Nietzsche teoriza que foi o otimismo de Sócrates que secou a sensibilidade trágica. Em seu livro de estreia, em 1872, a mais alta aspiração do filósofo é que a Alemanha visse renascer o espírito da tragédia grega.
A Bíblia Hebraica, por sua vez, inventa a esperança das classes baixas. A ordem vigente é injusta, mas ela será derrubada. A marca de Moisés é a dúvida, pois a verdadeira grandeza questiona a si mesma. O mundo no final será redimido pelas mãos de pessoas comuns.
Não é difícil entender como uma dessas histórias tornou-se um meme viral, enquanto a outra morreu por uma ferida auto-imposta. Neologismo inventado por Richard Dawkins, o meme é uma unidade cultural que se replica segundo a lógica evolutiva. Não são necessariamente as melhores histórias que sobrevivem: são aquelas que nos adaptam à tarefa de viver.
Friedrich Nietzsche talvez tenha sido uma das mentes mais brilhantes que já surgiram: ele tem a capacidade de estar certo mesmo quando está profundamente errado. De acordo com ele, apenas o mito - uma história - tem o poder de unificar uma cultura. A morte das religiões ocorreria quando o poder das histórias fosse sufocado pelo dogmatismo, pela ortodoxia e pelas reivindicações de veracidade factual. As histórias são as fabricações que nos ajudam a seguir em frente; elas são o sentido que construímos em conjunto. O moço do primeiro parágrafo compartilhava comigo umas palavras remotas - as ideias que fazem ele viver melhor mais um dia.
Eu saí feliz da livraria.
O Alain de Botton tem um vídeo legal sobre auto-ajuda, essa tradição muito antiga dos livros que nos ajudam a viver (em inglês): Why You Should Read Self-help Books - YouTube
Bem-vindos a todos que chegaram recentemente pela generosa indicação da Aline Valek. Eu sou a Ariela, tenho 32 anos e moro faz 5 anos em Nova York. Sou do Mato Grosso e cresci no interior de São Paulo e depois na capital. Trabalho em escritório e essa newsletter é meu projeto de amor.
Tô encantada com esse projeto! Também vim pela Aline Valek e nossa, que beleza de leitura.