Esse texto faz parte da série bíblica, na qual exploro a Bíblia como narrativa, sob a minha perspectiva de judia não-religiosa. Não falo de dogmas ou doutrinas. Não assumo que a Bíblia seja verdade, tampouco a trato como mera criação estética.
A Bíblia talvez seja a história mais democrática do mundo, compartilhada pelo Lord Byron da peça “Caim” e pelo frequentador da Assembleia de Deus, pelos padres medievais e pelo Freud de “Moisés e Monoteísmo”, por mim e por você. É também uma das narrativas com mais impacto no mundo real que já foram concebidas: a história que inflamou os pessoas simples do império romano e transformou Roma por dentro; a história que também justificou as cruzadas e foi usada como desculpa para a escravidão; as palavras pelas quais o pastor Martin Luther King Jr. e o rabino Abraham Heschel marcharam juntos pelos direitos civis. Essa história poderosa pertence à nossa geração agora. Que interpretação vamos cultivar?
(...) o êxodo do Egito, o evento fundamental de nossa história, não pode, segundo o místico, ter acontecido uma única vez e em um só lugar; ele deve corresponder a um evento que ocorre em nós mesmos, um êxodo de um Egito interior no qual todos somos escravos.
Gershom Scholem, em Major Trends in Jewish Mysticism
Imagine que você seja livre. Não existem mais as coisas que o seguram: os medos, os ressentimentos, as inibições. Imagine que todos sejamos livres. Em um passe de mágica, somem as condições sociais que nos limitam, a situações econômicas que nos prendem, as discriminações que nos excluem. O que acontece depois? Quem somos nós quando as correntes se quebram? Queremos a liberdade para quê?
O livro do Êxodo é a primeira narrativa conhecida sobre libertação. Depois de quatrocentos e trinta anos de esquecimento, Deus entra na História para abolir a escravidão hebraica. Os hebreus, povo descendente de Israel, abandonam o Egito e vão em direção à terra que chamarão de casa. No meio do caminho, o deserto. Os egípcios ficaram para trás, de modo que o povo não é mais definido pela opressão. O pão cai do céu, portanto não passam fome. Moisés delega a administração do povo, tal que há justiça. Somos livres. E agora?
Depois da libertação, ocorre o evento que tanto religiosos quanto acadêmicos consideram o ponto central da narrativa bíblica: a revelação no Monte Sinai. A montanha arde em chamas. O céu cobre-se de fumaça e trovoada. O som das trombetas reverbera sem interrupção. A Bíblia diz que todo o povo estava reunido aos pés do Sinai; a revelação é coletiva, não individual. Os cabalistas, praticantes da mística judaica, vão ainda mais longe. De acordo com eles, todas as pessoas, as vivas e as ainda não nascidas, estavam presentes em espírito. E o que Deus revela no Sinai? A criação de uma alternativa.
O Sinai (Wikimedia Commons)
Dez leis: três referentes ao trato com Deus (não terá outros deuses, não fará imagens, não usará o nome divino em vão), três referentes ao respeito à criação (guardará o sábado, honrará pai e mãe, não cometerá assassinato), três sobre o trato com o semelhante (não cometerá adultério, não roubará, não prestará falso testemunho) e uma lei, mais estranha e solitária, sobre não desejar ser o outro (não cobiçará). O Sinai revela uma nova legislação, própria dos hebreus, que representa a possibilidade de guiar a vida sob novos termos. O evento formativo do povo - de nós mesmos - não é achar as falhas do mundo e nos libertar. O que nos define é a construção que vem depois. É a alternativa pela qual vale a pena ser livre.
Aos escravos recém alforriados, Deus oferece a possibilidade de se tornarem uma nação de sacerdotes (Êxodo 19:6). É um vislumbre de algo muito bonito: os comuns irão santificar o mundo. A coletividade dos comuns fará da vida ordinária um campo de santidade, um lugar que justifica a luta pela liberdade. A prática religiosa (qualquer que seja a sua - alguns praticam a arte) é um olhar que cultiva sentido no mundo. A reza lembra dos milagres banais: se alimentar, descansar, acordar para viver mais um dia. De acordo com Virginia Woolf, o papel do escritor é colher o que há de real no mundo e comunicá-lo ao leitor. A literatura seria um exercício de germinação dos sentidos. Segundo o Rebe de Lubavitch, o estudo religioso não serve para elevar a alma, mas para revelar o que há de sagrado no mundo. Eles estão profundamente de acordo.
Pode parecer anticlimático que, depois do épico da libertação - as dez pragas, a fuga, o mar que se abre - venha o peso da lei. A legislação no contexto bíblico, porém, corresponde à palavra viva. Aceitar a nova lei é criar um mundo alternativo com a própria existência. Os escravos são libertados do trabalho forçado para o trabalho duro de criar uma realidade em novas bases.
Oi! Eu sou a Ariela. Depois de alguns meses escrevendo regularmente, acho que estou descobrindo o propósito desta newsletter, suficientemente genérico e ambicioso: é a minha busca pessoal por uma alternativa.
Tenho 32 anos e moro em Nova York - acho que isso soa pretensioso às vezes, e também me surpreendo com os caminhos para os quais a minha vida me levou. Eu nasci em Jaciara-MT, morei em Itapeva-SP e Sorocaba-SP, e depois cresci em São Paulo-SP. Sou formada em Economia pela USP. Cada semana me apresento de um jeito aqui e ainda não achei o formato certo. Se quiser puxar um papo, é só responder a este e-mail.
É sempre um bem receber e ler seus escritos a cada domingo. Gostei disso: que a reza lembra os milagres "banais"; e fiquei a pensar sobre os limites necessários para se viver em liberdade. Lembrou-me uma frase de Manoel de Barros numa entrevista em que ele disse: "me tranco para ser livre" (se referindo a trancar-se na biblioteca todos os dias às 7hs para escrever).
Brilhante como sempre. Me faz pensar nas leis novas que criamos a cada nova libertação interna. Em como precisamos de limites bem desenhados para vivermos em liberdade. Amei a edição!