A newsletter de hoje é diferente. Talvez todo texto seja implicitamente uma contribuição a uma conversa, mas essa edição pretende tornar o papo explícito. Qual a ética que conseguimos sustentar no dia a dia? Quais são os limites da ética pessoal? Trazendo essas questões para a esfera cotidiana, para uma das nossas atividades mais corriqueiras: como pensar a alimentação como uma escolha ética? Minha interlocutora será a
, do Segredos em Órbita. A Vanessa é vegana de longa data. Eu tenho me aproximado do tema pelo viés de uma filosofia prática - para facilidade de entendimento, vamos chamá-la de “judaísmo”. Inscreva-se na newsletter da Vanessa para acompanhar esse papo. Se você acabou de chegar aqui, seja bem-vindo! Tenho dois textos que tocam no assunto e estou trabalhando em um terceiro.Vanessa,
Lembro de você ter comentado que falar publicamente sobre veganismo afasta leitores. Na hora, te respondi que não entendia o mecanismo psicológico por trás dessa repulsa. Porque uma escolha pessoal causaria essa antipatia imediata? Com um pouco mais de reflexão, porém, acho que começo a entender.
Temos a tendência a avaliar a nossa vida por comparação. As escolhas divergentes dos outros são entendidas como críticas silenciosas às nossas escolhas. Afinal, se uma pessoa poderia se comportar como eu, mas escolhe de maneira diferente, certamente ela pensa que a minha opção é inferior - por extensão, ela pensa que eu sou inferior. A acusação implícita de inferioridade fica mais acentuada quando alguém justifica seu vegetarianismo ou veganismo por motivos éticos. Uma pessoa que não gosta de carne não representa ameaça a nossa auto-imagem - quem se incomodaria com uma idiossincrasia pessoal? Já alguém que coloca a questão em termos éticos cutuca nosso instinto de inferioridade e inadequação. Nossa mente decifra que o vegano se sente mais puro, superior aos outros mortais. O gatilho da repulsa é ativado de imediato.
Eu não sou vegetariana. Eu não sei sequer se pretendo ser vegetariana. Mas eu acredito no mérito da questão: como viver uma vida ética? E eu acredito que uma vida ética não se constrói em atos grandiosos e ocasionais, mas nos momentos pequenos e corriqueiros - aqueles momentos que não são o adorno, mas o tecido das nossas vidas. De modo que sou simpática à ideia de uma ética que tenha como um dos pilares a alimentação: a comida que é uma de nossas necessidades fisiológicas básicas, uma das marcas do nosso pertencimento ao reino animal, mas também um elemento da memória afetiva, uma promotora de encontros, uma fonte de prazer.
Como você sabe, tenho estudado o Levítico. Livro central da Bíblia, o Levítico não se preocupa com nada que geralmente associamos à espiritualidade. Ele é um livro de sangue, secreções e sexo. Profundamente associado ao corpo, os sacerdotes que o escreveram pareciam lutar com a pergunta: como santificar o nosso corpo animal? Traduzindo o problema para termos seculares, poderíamos articulá-lo da seguinte forma: como ser uma pessoa que honra o seu potencial humano? O Levítico concordaria com os veganos que a alimentação é uma das respostas para essa preocupação. Ele dedica o capítulo 11 aos animais que são proibidos e permitidos para o consumo da comunidade. Esse capítulo provavelmente canonizou práticas que em muito antecederam a sua redação, assim como serviu de base para mais de dois milênios de discussão sobre os alimentos que são apropriados para um judeu (o sistema a que ele dá origem, a kashrut - “apropriado” em Hebraico - ainda é vigente em círculos judaicos).
Durante os meus estudos, o Levítico se impôs não só como um objeto de análise, mas como um acusador. Assim como um vegano, ele silenciosamente censura: você não está vivendo uma vida pura. Você come sangue. Você mistura leite e carne - o alimento do filho com o corpo morto da mãe. Você se comporta como um animal, que come por função fisiológica, e não como um ser humano, que pode usar as suas ações como oportunidades para promover justiça e significado. Ainda sob efeito dessas reprimendas sacerdotais, por sua recomendação, li o livro “Comer Animais”, do Jonathan Safran Foer. E assim comecei uma breve fase vegetariana.
É difícil lembrar o que acontece num criadouro industrial e ainda assim querer comer um frango. As galinhas que comemos são doentes e deformadas - nunca viram o sol, vivem à base de antibiótico e foram manipuladas geneticamente para ter mais carne em partes desejáveis pelos humanos. Elas vivem sob privação e stress tão severos que seus bicos são arrancados para que não se tornem canibais. Quando chega a hora do abate, é mais barato optar por eletrocutá-las em massa do que matar uma a uma. Jonathan Foer relata o processo sem sentimentalismo. A realidade prescinde de acrescimentos dramáticos.
O livro funciona porque o autor te convence sem nenhum argumento explícito. Foer apenas abre as portas da fazenda industrial: é isso aqui que você quer comer? O efeito é de embrulhar o estômago por muitos dias. Mesmo assim, aos poucos minha repulsa por carne foi arrefecendo. Senti as consequências não apenas da inércia, não somente do esquecimento, mas também de dois fatores que gostaria de compartilhar e saber a sua opinião.
O primeiro diz respeito à eficácia de nossa ética particular. O vegetarianismo exige uma renúncia pessoal que acho difícil de sustentar dados os seus efeitos limitados na realidade animal. Vivemos uma tensão entre saber que as ações só podem ser levadas a cabo por indivíduos e ter consciência de que elas apenas impactam o mundo se não se restringirem a nossa esfera privada. Em outras palavras, o vegetarianismo, como disciplina pessoal em nome da ética, aposta numa pureza em escala individual. Eu me torno ética, apesar da sociedade que me cerca. O próprio Foer percebe essa limitação e indica que o vegetarianismo e o veganismo também precisam ser ativistas para que alcancem o objetivo do bem-estar animal; eles precisam ser catequizadores. Aqui, há dois caminhos: confiar no trabalho de formiguinha ou pressionar por uma mudança nos padrões industriais de criação animal. De um lado, você diminui a demanda por carne aos poucos. De outro, você luta pela criação e abate humanizados, que inevitavelmente vão aumentar o custo da carne para todos.
O país acabou de passar por um ciclo eleitoral no qual uma das promessas mais repetidas foi a volta do churrasquinho e da cervejinha no final de semana. Não acho que pessoas que não passam por insegurança alimentar possam se esconder atrás daquelas que passam. Se a gente tem condição de comer carne duas vezes ao dia, e pode repensar essa prática por questões éticas, não faz sentido deixar de agir por um suposto elitismo que a preocupação ética revelaria. Mas acho que a promessa do churrasquinho explicita a tensão entre o individual e o coletivo. Enquanto a lógica religiosa coloca a questão em termos coletivos, de um dever comunitário, o vegetarianismo me parece ter um viés individualista. A minha pureza ética é colocada fora do contexto do que a sociedade está disposta a arcar. Acabamos em um isolamento duplo. O isolamento de quem não pode mais compartilhar a comida com os seus familiares e amigos - o alimento impõe restrições sociais e culturais - e o isolamento de uma ética que não pode ser razoavelmente demandada do resto da comunidade. Se o sonho é o churrasquinho, cabe a nós ter um padrão de obediência ética que nos afastaria a esse ponto dos outros?
O que me traz ao segundo fator que me fez abandonar minha breve experiência vegetariana: uma certa falta de nuance que, na verdade, torna o alcance dos objetivos mais difícil. O vegetarianismo e o veganismo reconhecem que somos animais onívoros, mas apostam na capacidade da nossa razão em vencer nossos instintos biológicos; um domínio total do humano sobre o animal em nós. Nesse sentido, os críticos estão certos em suas acusações de purismo. Várias sociedades já tiveram seu seleto grupo de ascetas, que estão dispostos a domar seus sentidos de maneira radical. Podemos contar com a existência desse 1%. Mas há poucas sociedades de ascetas, que contribuem com os outros 99% necessários para mudanças significativas. Se estamos comprometidos com o bem-estar animal, será que faz sentido apostar no crescimento desse 1%? Se acreditamos também que as comunidades podem ser mais éticas, será que não conseguimos imaginar uma ética que esteja ao alcance desses 99%? Na média, será que faz sentido apostarmos mais no crescimento dos zero-carne do que no da massa de pessoas dispostas a fazer ajustes incrementais?
Acho que há um consumo de carne que lembra e honra a morte que nos alimenta; que nos honra como seres humanos; que lembra e honra o animal em nós. Ele provavelmente não está na casualidade do almoço que engolimos enquanto assistimos a TV ou dedamos a tela do celular. Mas será que ele está no jantar de família às sextas-feiras, quando compartilhamos um momento de amor? Será que não está em provar um alimento que uma outra cultura nos oferece, em sua versão sem alterações para a nossa sensibilidade? Será que conseguimos ser éticos sem nos afastar do sonho comunitário do churrasquinho?
Um beijo,
Ariela
Mostrei esse texto para um amigo e ele me mandou esse artigo: We need more meat-eating animal-rights advocates. Obrigada, Robson!
Fica aqui o convite para que mais pessoas se juntem a conversas públicas sobre as questões do nosso tempo:
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Uau, que texto! É um debate que me interessa muito e sua perspectiva é muito estimulante. Me incomoda esse apagamento do animal em nós, acho que o caminho da mudança planetária de que precisamos vai na direção contrária em todas as dimensões da vida.
E fico remoendo uma impressão de que, ironicamente, muito mais que o ato de comer animais, aí está o verdadeiro especismo: nessa ideia de nós somos uma espécie tão mais evoluída que as demais que podemos simplesmente virar as costas para o animal que somos.
Só acrescentaria que o veganismo e vegetarianismo como propostas de transformação do mundo, mais que catequizadores, precisam vir acoplados a um compromisso radical com a luta anticapitalista (e antirracista, anti-imperialista, feminista), ou jamais deixarão a esfera do estilo de vida individual.
toda vez que leio seus textos fico pensando "que pessoa refinada". vc escreve bem demais!