Oi! Essa é uma continuação da série bíblica, um dos projetos desta newsletter. Se você é novo por aqui, bem-vindo! Talvez seja estranho receber um texto sobre a Torá, também conhecida como o Pentateuco entre os cristãos. Se posso te pedir uma coisa, abrace a estranheza. Minha perspectiva é judaica e um tanto heterodoxa. Os ensaios são independentes e não exigem conhecimento prévio. Com esse texto, dou continuação ao Levítico (porção Tzav, “Ordene!”, 6:1-8:36).
You gotta let me know
Are we human? Or are we denser?
My sign is vital. My hands are cold
And I am on my knees looking for the answer
Are we human? Or are we denser?
“Human”, por The Killers
Freud famosamente disse que a ciência desferiu três golpes ao narcisismo humano. O primeiro foi infligido por Copérnico, que tirou a Terra da sua posição de centralidade no desenho universal. O segundo veio de Darwin, cuja teoria nos revela que os seres humanos são animais como quaisquer outros. O golpe final, de acordo com Freud, partiu dele mesmo - a teoria psicanalítica demonstraria que uma pessoa não está nem mesmo no centro de si, e sua vida interior é governada pelas forças do inconsciente.
É uma ideia que não deixa de ter uma pontada de ironia, pois contém uma rachadura interna. Enquanto a humanidade genérica teria seu ego abalado, seus pensadores seriam elevados à condição de profetas da verdade. Este é um texto sobre a nossa dupla condição, humana e animal, portanto a ferida narcísica atribuída a Darwin me interessa especialmente. Teriam as pessoas, antes de Darwin, não intuído o nosso pertencimento ao reino animal?
Quanto mais os nossos textos arcaicos nos aproximam de uma concepção coletiva e agrária, mais presente é a pergunta: somos apenas animais, ou podemos ser algo além? A Ilíada constantemente contrapõe a guerra de Tróia à vida animal que se desenrola ao seu redor; os paralelismos criam imagens do mundo que segue seu curso apesar da matança humana, mas também contém a questão implícita: somos apenas mais um predador? O Eclesiastes, em seu lamento, coloca nossa igualdade com os animais em termos explícitos:
O destino do homem é como o dos animais; o mesmo destino aguarda os dois: como um morre, também morre o outro. Ambos têm o mesmo fôlego; o homem não tem nenhuma vantagem sobre o animal. Tudo é um mero sopro fugaz. (Ecl. 3:19)
O Levítico, livro central do Pentateuco, é curiosamente preocupado com as nossas funções biológicas - portanto, com os elementos que marcam o nosso pertencimento ao reino animal. Hoje associamos a devoção religiosa à reza, que adquiriu centralidade na prática espiritual séculos após a redação do Levítico. Os sacerdotes antigos não eram líderes de reza. Sua observância religiosa tinha relação com o que comemos, com o modo como nos reproduzimos e com os nossos sinais de doença. O seu ritual mais importante, não à toa, era o sacrifício - a morte, destino inescapável do animal, ressignificada sob a ótica do divino.
O rabino Shneur Zalman, fundador da linha judaica hassídica, ilumina o sentido do sacrifício ao atentar para uma peculiaridade gramatical do texto. As traduções usuais trazem algo como:
Fale aos filhos de Israel e lhes diga: “Quando um de vocês oferecer um sacrifício ao Senhor, o sacrifício deve ser tirado do gado, ovelha ou cabra”. (Lev. 1:2)
O hebraico original, por sua vez, contém uma inversão estranha. Onde esperamos a frase “quando um de vocês oferecer um sacrifício" (adam mikem ki yakriv), encontramos “quando oferecerem um sacrifício de vocês" (adam ki yakriv mikem). No texto sobre Levítico e ética animal, falei que o sacrifício trata o abate, comum e necessário numa sociedade pastoril, não como uma banalidade da vida, mas como aspecto central do rito. A morte do animal é elevada à condição de ato religioso. De fato, o verbo “sacrificar” tem uma conotação diferente no idioma original. Enquanto no português corrente “sacrificar” significa abrir mão de algo, a etimologia hebraica associa "sacrifício" a trazer algo para perto - o objeto sacrificial é elevado a Deus. Tendo em vista a inversão gramatical no texto, através do sacrifício ritual, qual elemento de nós o Levítico propõe que aproximemos do divino?
Num plano concreto, a sociedade pastoril oferece a Deus o seu meio de sustento. O pastor precisa executar o controle demográfico do rebanho; por meio do sacrifício, a morte do animal passa de um imperativo prático a um ato imbuído de sentido espiritual. A comunidade depende do rebanho para alimento; o sacerdote remove o abate da esfera cotidiana e o associa ao divino. O rabino Zalman, porém, oferece uma explicação mais abstrata, metafórica. De acordo com a mística judaica, os seres humanos são dotados de duas almas: a alma animal e a alma divina. A alma animal é aquela que está em ação quando nos alimentamos, quando nos reproduzimos, quando adoecemos, quando morremos; ela representa tudo que há de fisiológico em nós. A alma divina é a parte de nós que faz escolhas éticas, que ama, que produz conhecimento, que atribui significado à vida. Segundo Zalman, a oferenda do animal é uma analogia com um processo interno dos seres humanos. Nós oferecemos para Deus a nossa alma animal.
Dos textos antigos, emana a compreensão do nosso duplo pertencimento: parte do meio animal, mas com a possibilidade de sermos “pouco menos que anjos” (Salmos, 8:5). Com suas preocupações fisiológicas, o Levítico não nega o animal em nós; ele não quer o sacrifício como uma renúncia do mundo material. Mas ele pergunta: você pode se alimentar com intencionalidade? Você pode tratar os instintos sexuais com ética? Você pode achar na vida e na morte a intuição de algo sagrado? O sacrifício é uma aproximação. Podemos aproximar o animal em nós, centímetro a centímetro, do nosso potencial humano?
Este texto deve muito ao rabino Jonathan Sacks, que liderou a comunidade ortodoxa da Grã-Bretanha por mais de 20 anos. Suas prédicas podem ser encontradas aqui. Eu amo o rabino Sacks e admiro sua erudição e clareza. Porém, não recomendo para qualquer um - é uma visão religiosa no sentido tradicional.
Esse ano, o
me indicou a , que escreve a newsletter Life as a Sacred Text. Por coincidência, a rabina Danya também está começando a análise do Levítico. Ela é uma voz progressista dentro da comunidade americana, e o seu tom e preocupações são mais familiares para aqueles fluentes na política contemporânea. Por exemplo, ela defende o direito ao aborto pelo princípio de liberdade religiosa.
Gostei muito de aprender sobre essa perspectiva judaica. Na minha religião falamos sobre algo semelhante: o "homem natural", que cede aos impulsos e busca só seu próprio prazer. Falamos muito sobre abandonar o homem natural - não no sentido de abandonar o mundo material, mas no sentido de submeter nossa vontade à de Deus. Afinal, tudo no mundo material pertence a Deus. A única coisa que é verdadeiramente nossa e que podemos ofertar é a nossa vontade.