Oi! Essa é “A Diletante”, uma newsletter semanal de ensaios. A cada duas semanas, eu publico uma edição da série bíblica, um projeto de análise textual e reflexão pessoal na fronteira entre o secular e o sagrado. Minha perspectiva é judaica e não-religiosa. Os ensaios são independentes e não exigem conhecimento prévio. Com esse texto, dou início ao Levítico (porção Vayikra, “E Ele chamou”, Lev. 1:1-5:26).
O que faz um livro ser difícil? “Guerra e Paz” tem mais de 1.200 páginas, acentuadas pelos longos trechos bélicos, que caminham pesadamente como soldados no inverno russo. “Grande Sertão: Veredas” possui não só vocabulário como gramática próprias, tal que mesmo o nativo do Português encontra-se em terras estrangeiras. “Ulisses”, de acordo com James Joyce, teria mistérios o suficiente para manter os críticos literários trabalhando por séculos.
O Levítico, terceiro livro da Bíblia, não tem nenhuma dessas características. Ele é o mais curto do Pentateuco. Ele tem um vocabulário tão repetitivo que costumava ser usado para estudantes de Hebraico em fase de alfabetização. Ele não tem narrativa ou camadas visíveis - é um livro de instruções sacerdotais. Para o leitor moderno, porém, o Levítico é um dos livros mais difíceis e indigestos da Bíblia. Depois dos personagens marcantes do Gênesis, depois do épico do Êxodo, canonizado na parte central do Pentateuco, encontramos as regras de um culto ancestral.
Os primeiros capítulos do Levítico são dedicados às regras de sacrifício animal para fins rituais. Não há introdução, não há suavização: o Levítico assume que você é um igual, um sacerdote no templo de 2.500 anos atrás, e fala com naturalidade das entranhas das cabras, do modo como se queima a gordura que reveste os intestinos, do sangue que purifica ritualmente o altar. Você sente o cheiro ocre misturado com incenso. Quem são essas pessoas? Enquanto as histórias do Gênesis e do Êxodo aproximam a distância de milênios - quem não reclamou como Sara, quem não titubeou como Moisés? - luto para encontrar os sacerdotes em mim.
O que não antecipo é que toda leitura é uma descoberta: por baixo dos sedimentos acumulados com o tempo, camada grossa de estranheza e História, encontro os sacerdotes me devolvendo o olhar. Eu estava pronta para desculpá-los; para contextualizar, diante da plateia enojada, o sacrifício ritual como uma das práticas mais comuns da Antiguidade. Um hábito disseminado e primitivo que ultrapassamos - graças a Deus! - mas que pode nos explicar algo sobre o que já significou ser humano. Mas os sacerdotes, imóveis e dignos, não me pedem desculpas. Imagino em seus olhares, na verdade, um outro tipo de embaraço. Eles pedem desculpas por mim.
O pano de fundo do Levítico é uma sociedade pastoreira, na qual a lida com os animais é um elemento central da rotina. Um rebanho era um estoque de comida, mas também um trabalho constante de cuidado. O ritmo de vida do criador é dado pelo tempo das criaturas - sua fome, sua sede, seu descanso. A sua existência se entrelaça com a do animal: ele ajuda as prenhas e os doentes. O controle demográfico é uma preocupação constante, pois a castração é proibida. O pastor é aquele que sabe da responsabilidade de ser o administrador da vida e da morte. O animal não era uma abstração na etiqueta de uma embalagem: a mão que levava a garfada à boca era a mesma que levantava o machado. Os olhos de quem senta à mesa do jantar haviam passado meses - anos! - encontrando os olhos do animal. Com nossa mentalidade moderna e urbana, podemos pensar que o sacrifício é uma crueldade que pode ser evitada, e há uma alternativa para quem se filia a esse modo de pensar: a abstenção total de carne. Em uma sociedade pastoreira, a alternativa ao sacrifício animal não era a vida - era uma morte sem significado.
No livro "Levítico como literatura”, a antropóloga Mary Douglas propõe uma interpretação do sacrifício como parte de uma ética em relação à vida animal. Em uma polêmica em relação a outros estudiosos, ela defende que o Levítico não permite abate secular - ou seja, não é permitido que se derrube sangue fora dos rituais que consagram o animal a Deus e que, no processo, não banalizam o ato de tirar a vida. Mesmo que Mary Douglas esteja errada, e que as práticas sacrificiais fossem restritas a um círculo menor, fica a realidade de um culto que se recusa a ver os bichos como dano colateral da nossa fome por carne. A sociedade pastoreira do Levítico eleva o abate à metáfora central da religião, ponto focal do rito, microcosmo de todo o universo.
Segundo Douglas, o corpo do animal passa a figurar em um sistema de analogias que o conecta à revelação no Sinai e ao tabernáculo entre o povo. O sistema de correlações é detalhado demais para que um texto curto como esse o faça justiça - vou me ater aqui à intuição da coisa, ao cheiro de incenso que escapa pelas frestas do templo. Quando o sacerdote abre o ventre do animal, quando ele retira as entranhas, quando ele separa a gordura, ele afirma que há no trato animal algo que se irmana ao sagrado. O drama do animal, sua vida e sua morte, é o nosso drama compartilhado - nós que também somos animais com uma centelha de divino. Nós a quem a vida é dada e tirada. Nós a quem o fim é certo, mas cuja vida ainda pode ter significado.
Um pensamento inconveniente cruza a minha cabeça: “para que tanta firula para justificar o abate?”. Nesse momento, os olhos do sacerdote me encontram espiando pela fresta. Vejo suas mãos salpicadas de sangue; ele vê as minhas mãos imaculadas. No entanto, aos seus olhos, me sinto suja. Por que?
Há menos de um século, a realidade da obtenção de carne era bastante semelhante ao mundo do Levítico. Os animais não eram criados em escala industrial. O caminho do abate para a mesa não era tão longo que poderíamos esquecer que a comida já esteve viva. Hoje, esquecemos. Hoje, queremos esquecer. As nossas mãos limpas nos acusam do que delegamos aos outros - não um abate santo, que se dá aos olhos da comunidade. Um abate que sabemos que é inumano, e que portanto escondemos nas fábricas. A informação sobre o que é hoje o abate animal está tão próxima - apenas alguns cliques e chegaríamos lá, mas não queremos. O Levítico está no centro da Bíblia, um livro que lembra da nossa vida animal. O abate industrial está às margens do cotidiano, um esquecimento ativo. Não queremos ver.
Um livro difícil é aquele que nos desperta de um sono do qual não queríamos ter acordado.
“Eu e a vila” (1911), Marc Chagall
Eu nunca fui vegetariana. Ainda não sou. Mas esse texto me custou um desconforto mais ou menos constante, que me pede uma resposta. No processo de escrevê-lo, li “Comer animais”, de Jonathan Safran Foer, por recomendação da Vanessa Guedes. Segue um trecho:
As pessoas se preocupam com os animais. Acredito nisso. Elas simplesmente não querem saber ou pagar. Um quarto de todas as galinhas têm fraturas por estresse. É errado. Elas são criadas corpo a corpo e não podem escapar de seus resíduos e nunca veem o sol. Suas unhas crescem ao redor das grades de suas gaiolas. É errado. Elas sentem suas matanças. É errado, e as pessoas sabem que é errado. Elas não precisam ser convencidas. Elas apenas têm que agir de forma diferente. Não sou melhor do que ninguém e não estou tentando convencer as pessoas a viverem de acordo com meus padrões do que é certo. Estou tentando convencê-las a viver pelos próprios padrões.
Uma ótima definição para um texto bom é aquele que te arranca o coração à unha de repente, para te mostrar uma grande verdade.
Eu suspeito que esse texto vai arrancar umas vísceras por aí.
Como vegana, acho importante conversar sobre essas coisas fora do momento das refeições - que é geralmente quando as pessoas querem abordar o assunto - para que se tire as amarras do ato e possa se conversar com mais profundidade e menos afetação. Amo quando não-vegetarianos olham pro tema com o carinho que você está olhando; talvez mais pessoas pensem nisso com generosidade.
Ariela, você já leu 'A Vegetariana' de Han Kang?
Eu sinto que ela trabalha a questão do sacrifício na vida de uma mulher que para súbitamente de comer carne, e que no fim, deseja se tornar uma árvore. É uma viagem onírica, um thriller, não sei dizer. É uma leitura bastante indigesta, mas recomendaria muito. Lembrei dela depois de te ler aqui.