Os moinhos moem as azeitonas puras
O óleo flui silenciosamente
em rios interiores e escondidos.
Antes do tempo e da matéria, existia apenas uma luz infinita. Num ato de contração, a luz se recolheu para criar um vácuo, um espaço para que o mundo finito pudesse surgir. Foi ali no ponto vazio logo após a restrição, bem no centro da luz sem fim, que um lugar foi formado. O lugar era um receptáculo à espera de conteúdo, um vaso sem água. A luz tentou encher o receptáculo com sua energia - o infinito e imaterial tentando se limitar e se fazer concreto - mas o vaso não suportou. À contração se seguiu a uma explosão, e o universo surgiu dos estilhaços.
A quebra dos vasos é a versão do rabino Isaac Luria (1534–1572) para a origem do universo. Depois da expulsão dos judeus da Espanha em 1492 e de Portugal em 1497, acompanhada pela Inquisição, um polo de eruditos se estabeleceu na cidade de Safed, no Império Otomano. No vazio criado pelo desterro, Safed transbordou de energia criativa e se tornou um marco para o pensamento judaico. A três horas de carro da atual Tel Aviv, Safed foi a antiga casa de Luria e de outros mestres da Cabala, cujas contribuições entraram para o cânone da narrativa e teologia judaicas.
Luria viveu pouco e escreveu menos ainda. Morto aos 38 anos por uma epidemia, ele registrou por conta própria apenas alguns poemas, entre eles três hinos que ainda fazem parte da liturgia religiosa. Luria deixou instruções para que os seus ensinamentos não fossem divulgados para as massas. Na origem, a Cabala é o oposto de um fenômeno pop; ela significa literalmente “conhecimento recebido”, e é associada aos segredos que foram transmitidos de sussurro em sussurro entre gerações de estudiosos. A Bíblia é a face pública da religião; a Cabala é a face oculta. Mas há dois tipos de segredo - vamos chamá-los de ilusionista e cabalístico. No ilusionismo, o componete extraordinário se desfaz com a revelação do mistério; depois que o mágico explica o truque, o mundo volta a ser o lugar das coisas ordinárias. No segredo cabalístico, o mistério não se esconde e não se esgota; há um sulco à vista de todos, e quanto mais se cava, mais profunda se mostra a fonte. Da superfície do mundo comum, irrompe um fluxo oculto.
Os verdadeiros segredos se ocultam às claras, sob a aparência de normalidade. É uma noite de sexta-feira na sinagoga. Oh, cante – louve! Adentre os portões do pomar paradisíaco e sagrado. Com a primeira estrela, anuncia-se a chegada no Shabat. Agora peça para ela entrar – vida-pão e luz, com auréolas coroadas de guirlandas, estamos prontos. Um livro de reza não deixa de ser uma peculiar antologia de poemas. Sua bela noiva, cercada à direita e à esquerda, embrulhada regiamente em joias. Com os dedos correndo as linhas, as antigas palavras de Luria são repetidas no automático. Seu marido a abraça, fundamentalmente sustentado, extaticamente esmagado. Mesmo na superfície, são versos eróticos. Rendidas são as dores, silenciados são os gritos, a alegria substitui o sofrimento. A página é virada com pressa; o serviço tem que continuar. Mesmo na sinagoga lotada, Luria permanece escondido.
Por conta da influência cristã, associamos religião à castidade. A ideia de abstinência sexual entrou em voga no século IV, pelas mãos de romanos conversos, e fincou raízes milenares. Há camadas geológicas de interpretação que obscurecem o nosso encontro com Isaac Luria e com o que ele enxergou nos textos sagrados. Do ponto de vista cultural, esse não deixa de ser um desenvolvimento curioso, dado o conteúdo adulto da Bíblia. Mas não tenhamos mais pudor do que o próprio texto. Tenhamos coragem de abrir as suas páginas virgens, tão veneradas e tão pouco desbravadas. Hidratemos o couro seco da capa com os nossos dedos oleosos. Quais segredos são guardados à vista de todos? A proximidade entre religião e sexo, na literarura antiga, é a regra, e não a exceção.
As religiões começam com as cosmogonias, que são narrativas sobre a origem do mundo. Em “Sexual Personae”, Camille Paglia escreve que todas as cosmogonias, exceto o Gênesis, são explicitamente sexuais. Na mitologia grega, o incesto acontence no atacado. Zeus e Hera são irmãos casados; isso não impede que ele engravide a própria mãe e depois a filha que teve com ela. Na mitologia egípcia, Ísis e Osíris são irmãos consortes; já Hator é simultaneamente mãe, esposa e filha do deus Ra. As narrativas em alguma medida refletiam as práticas da nobreza, que promovia casamentos entre os seus, mas a escala da imaginação sexual parece apontar para algo além da mera transposição dos costumes sociais em mito. Camille Paglia cita a história de Kepher, o deus egípcio que dá origem ao segundo estágio da existência através da masturbação:
Tive união com a minha mão, e abracei a minha sombra num abraço de amor; derramei semente em minha própria boca, e liberei de mim mesmo a forma dos deuses Shu e Tefnut.
Em contraste aos pares da época, mesmo na sua abundância de estupros, podemos concordar com Camille Paglia quando ela fala que a Bíblia Hebraica é uma versão higienizada da religião antiga. De fato, outros estudiosos apontam no texto as evidências de uma religião reformada. A antropóloga Mary Douglas, por exemplo, argumenta que o Levítico é o texto de uma religião que recentemente expurgara de sua teologia tanto a influência de demônios quanto a relevância dos reis. A higienização, porém, não foi completa: o Levítico ainda é um livro que reconhece a centralidade do sexo na vida social, sem evitá-lo ou trivializá-lo. No livro sacerdotal, a sexualidade é um mistério pronto para sair das camadas subterrâneas e emergir à superfície; ele é objeto de um respeito, ou medo, reverente.
O Levítico é estruturado por blocos de sentido, que seguem uma lógica associativa e circular. Um assunto puxa o outro, nem sempre de maneira óbvia, até que o retorno ao início mostra que se encerrou uma unidade semântica. Dos capítulos 12 a 15, o texto faz um percurso que se inicia pelo sangue do parto, depois segue para um visita prolongada à ala de doenças dermatológicas, e enfim termina com a ejaculação e o sangue menstrual. O Levítico não é um livro simpático; ele é o manual de instruções do culto, no qual a maioria das regras se refere ao que uma pessoa não pode fazer antes de entrar no Templo. Ela não pode ter dado à luz. Ela não pode ter emitido sêmen, voluntária ou involuntariamente, por sexo ou por doença. Ela não pode ter expelido sangue pela vagina, por menstruação ou enfermidade (o parto não deixa de ser um caso particular de emissão de sangue). Ela não pode apresentar uma série de males da pele, nas quais a camada que nos separa do mundo irrompe em inflamações, escamas e pústulas.
Qual o elemento comum nesse acúmulo de analogias? O que a doença de pele tem a ver com a emissão de fluídos corporais? Por que a interdição em relação ao parto aparece em paralelo à interdição por ejaculação, quando se assume comumente que a religião normativa celebra um e desconfia do outro? Os sacerdotes eram avessos à explicações, de modo que herdamos um sistema de associações poéticas, um apelo mais à sensibilidade do que à sistematização.
Uma resposta é tão boa quanto qualquer outra, respeitada a integridade do texto. Vou tentar uma própria: o Levítico distingue as experiências de fronteira, nas quais algo do eu transborda, vaza pelos contêineres que deveriam guardá-lo, rompe as barreiras entre o sujeito e o mundo. Algo tentou ser guardado em um recipiente fechado, mas explodiu. O Templo é o sagrado, a luz infinita; nós somos a sua maior criação, mas também os estilhaços. A lembrança dos estilhaços.
Os verdadeiros segredos se ocultam aos olhos de todos. Herdeiros da revolução sexual, vivemos em uma época liberada. Em menos de 200 anos, a expectativa entre as mulheres cosmopolitas passou da cobertura total dos tornozelos, essa parte do corpo que exige recato, a uma relação descomplicada e constante com a sexualidade. Antes não havia nada para ver, pois tudo estava escondido. Agora o sexo está às claras, mas isso de alguma forma gera a mesma reposta: olha só, não há nada demais para ver aqui. A ilusão foi revelada, o mecanismo foi exposto, não há mistério. Vivemos no mundo das coisas comuns. Ou será que não?
Quando rompem as nossas barreiras, o Levítico intui o movimento de águas profundas, rios interiores e escondidos. A vazão explodiu; os diques se romperam. Os receptáculos que nos continham não aguentaram. Os sacerdotes olham para os estilhaços com medo, mas também com respeito - foi assim que as coisas começaram.
As frases em itálico são citações literais de Isaac Luria.
Esta foi uma edição do ciclo bíblico, meu projeto de interpretação do Pentateuco sob perspectiva judaica e não-religiosa. O trecho a que se refere essa edição é Metzorá (Levítico 14:1-15:33).
Eu intercalo um texto do projeto bíblico com um ensaio livre. O último foi sobre identidade e opressão. Caso tenha curiosidade sobre como o projeto começou, a primeira edição está aqui.
Até a próxima!
Muito bom!!!Adorei!Estudei a Cabala durante algum tempo e visitei Safed,mas nunca ninguém havia me esclarecido alguns pontos como vc fez .Obrigada pelo texto ☺️