E o Eterno disse a Moisés: “Escreve isto para a lembrança no livro, e leva aos ouvidos de Josué, pois apaguarei totalmente o nome de Amaleq sob o céu.” (Êxodo, 17:14)
Na região central de Manhattan, há um arranha-céu com uma falha de engenharia famosa. Construído em 1978, o prédio ocupa um quarteirão inteiro na Avenida Lexington. Hoje ele ocupa a modesta vigésima quinta posição entre os mais altos da cidade; em 11 de Setembro de 2001, ele não só era um dos mais altos da cidade, como também era um símbolo do capital americano, e foi evacuado por precaução.
A história do Citicorp Center se confunde com o mito. Conta-se que a falha estrutural foi descoberta de maneira independente por dois estudantes universitários, que usavam o edifício como um estudo de caso para TCC. Os estudantes fizeram algumas perguntas, se formaram, seguiram a vida. Enquanto isso, o engenheiro responsável ficou com a pulga atrás da orelha e refez os cálculos - de fato, com uma ventania acima da média e num ângulo desfavorável, a estrutura inteira podia vir abaixo. O prédio já estava ocupado por milhares de funcionários. O engenheiro contemplou o suicídio - o silêncio eterno - mas decidiu por trabalhar na surdina para corrigir o problema. Com o conhecimento de meia dúzia de pessoas, a firma de engenharia reforçou as estruturas à noite, enquanto os funcionários de escritório trabalhavam normalmente durante o dia. No meio da reforma, o furacão Ella ameaçou passar por Nova York, mas desviou a rota antes de atingir a cidade. O caso veio a público mais de duas décadas depois.
Eu conheço essa história por um motivo: eu trabalho nesse prédio. Quando venta, ainda se ouvem uns estalos. Na frente do computador, a luz branca e a caixa de entrada lotada embotam os sentidos. Mas é só ir para a solidão do banheiro que o barulho está lá, uma lembrança da luta do prédio contra si mesmo para manter o centro de gravidade. Ventou bastante na semana passada. Eu estava tendo um dia normal, por trás de uma fachada envidraçada comum, num dia nublado. Mas eu fui ao banheiro e lá estava aquele barulho - sob a superfície do mundo esperado, uma fratura.
A fratura é o que deixa as coisas interessantes. Numa tarde ordinária, um ruído te lembra de uma tragédia evitada. Num rosto de outra forma comum, é alguma coisa estranha na distância entre os olhos, ou será que é no formato do queixo?, que o torna memorável. Um romance todo amarradinho é fadado ao esquecimento; o livro que fica é aquele que nos impõe um problema que não se resolve, uma tensão que não conseguimos aliviar. O momento em que um elemento estranho surge no texto e o deforma: lá está a chance de um bom texto se tornar grande.
Tomemos Virginia Woolf como exemplo. “Um teto todo seu” provavelmente é o texto que eu mais citei nessa newsletter depois da Torá. Considerado um ensaio proto-feminista, sua tese central em geral é resumida com a citação: “Dê-lhe um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe-a abrir sua mente e liberar metade do que agora a ocupa, e ela escreverá um livro melhor em algum dia desses”. Ou seja, dê às mulheres a independência financeira e o espaço privado para se concentrar em sua escrita, assim como os homens historicamente tiveram, e teremos grandes escritoras. O ensaio invoca Judith, uma irmã fictícia de Shakespeare, e nos faz imaginar como o seu talento foi desperdiçado, como ela foi enterrada numa encruzilhada sem ter escrito uma linha, e convida as mulheres a trabalharem em seus escritos até que de sua linhagem surja uma nova Judith Shakespeare:
Quanto a ela chegar sem essa preparação, sem esse esforço de nossa parte, sem essa certeza de que, quando nascer novamente, achará possível viver e escrever sua poesia, isso não podemos esperar, pois seria impossível. Mas afirmo que ela viria se trabalhássemos por ela, e que trabalhar assim, mesmo na pobreza e na obscuridade, vale a pena.
Uma tese amarrada, um texto estruturalmente sólido, uma celebração poderosa da voz feminina. Certo? Mas há trechos menos citados, rachaduras que se guardam nas sombras:
É fatal para uma mulher colocar a mínima ênfase em qualquer ressentimento; advogar, mesmo com justiça, qualquer causa; de qualquer modo, falar conscientemente como mulher.
Talvez o leitor suspeite que o trecho foi tirado de contexto. Pois bem, ele continua:
E fatal não é uma figura de retórica, pois qualquer coisa escrita com essa tendenciosidade consciente está condenada à morte. Deixa de ser fertilizada. Por brilhante e eficaz, poderosa e magistral que se afigure por um ou dois dias, deve fenecer ao cair da noite; não consegue crescer na mente de outrem.
Seguindo o poeta Coleridge, Woolf defende que o artista precisa cultivar uma mente andrógina:
(...) é fatal, para quem quer que escreva, pensar em seu sexo. É fatal ser um homem ou uma mulher, pura e simplesmente; é preciso ser masculinamente feminina ou femininamente masculino. (...) É preciso haver um perfeito entendimento, na mente, entre o lado feminino e o masculino antes que a arte da criação possa realizar-se.
Por fim, nos parágrafos de encerramento, publicados há quase 100 anos, Virginia Woolf encaixa um elegante “qual é a sua desculpa?”:
(...) permitam-me lembrar-lhes que existem pelo menos duas faculdades para mulheres na Inglaterra desde 1866; que, a partir de 1880, a mulher casada foi autorizada, por lei, a possuir sua própria propriedade; e que em 1919 — e já se vão aí nove anos inteiros! — ela obteve o direito do voto. Será que posso também lembrar-lhes que a maioria das profissões está aberta a vocês há quase dez anos? Quando refletirem sobre esses imensos privilégios, a extensão de tempo em que eles vêm sendo desfrutados e o fato de que deve haver, neste momento, umas duas mil mulheres capazes de ganhar mais de quinhentas libras por ano de um modo ou de outro, vocês hão de concordar em que a desculpa da falta de oportunidade, formação, incentivo, lazer e dinheiro já não se aplica.
Eu amo o ensaio por essas rachaduras. Eu amo a genialidade e a coragem de terminar o texto não com uma síntese, mas como uma explosão da tese - pois me custa acreditar que Woolf, já no auge de seus poderes, não sabia o que estava fazendo. “Um teto todo seu” tem um dano estrutural irremediável: num texto que celebra a voz feminina, Woolf termina dizendo que é fatal escrever com a lembrança do seu gênero; num ensaio que denuncia a opressão das mulheres, ela alerta que os antigos empecilhos já não servem de guarida. A fenda que Woolf talhou no próprio texto não está escondida, mas é como se todos desviassem o olhar; é como se estivessem embotados demais para ouvir o som da espinha dorsal se quebrando.
Sinto que a ambivalência de Woolf toca em algo difícil de dar nome - uma pontada que se faz presente no Dia Internacional da Mulher, uma amargor quando descubro que o Museum of Jewish Heritage é na verdade um memorial do Holocausto. Ser definido como sujeito oprimido, aos poucos aceitar a definição e celebrar resistências - que jeito agridoce de existir no mundo. Não é à toa que Woolf termina a sua exposição das dificuldades da artista mulher não só minimizando os empecilhos como negando a desejabilidade de falar como mulher - afinal, quem quer se definir pela opressão? Sobre a opressão, Virginia Woolf parece dizer: relembre e apague o seu nome.
A frase impossível está no Êxodo. Após os israelitas saírem da escravidão no Egito, eles vagam pelo deserto entre tribos hostis. A primeira nação a declarar guerra contra um bando de escravos libertos foram os amalequitas. O estilo bíblico, em vez de soltar um xingamento contra os filhos de Amaleq, condena o seu nome simultaneamente à memória e ao apagamento (“Escreve isto para a lembrança no livro, e leva aos ouvidos de Josué, pois apaguarei totalmente o nome de Amaleq sob o céu”). A instrução é dúbia: lembrar e condenar ao desaparecimento, registrar e esquecer.
Por analogia, a tradição judaica associa Amaleq às tentativas de genocídio. No Livro de Ester, o oficial persa que tenta exterminar o povo hebreu é um herdeiro distante de Amaleq. Na festa de Purim, em que se lê anualmente o Livro de Ester, o costume dita que se faça tanto barulho à menção do seu nome que seja impossível discernir a palavra. Onde surgir a tentativa de matança, paira o espectro de Amaleq. De maneira metafórica, Hitler é considerado um amalequita.
Na comunidade judaica americana, a segunda maior do mundo, a lembrança do Amaleq nazista foi seguida como um mandamento. Há quase 100 memoriais do Holocausto espalhados por 31 estados. Em pedra ou em aço, as palavras grafadas ou invisíveis são: never forget. Mas a lembrança sem apagamento tem o seu custo: perguntados sobre o que faz deles judeus, o antissemitismo surge como um traço de identidade do judeu americano. Não é novidade que o judeu seja o arquétipo do “outro”. Na peça “O mercador de Veneza”, Shakespeare faz do judeu Shylock um vilão, em comparação ao qual os demais personagens percebem que não são tão melhores quanto pensavam. Em “Ulysses”, quando James Joyce quer construir um personagem que seja estrangeiro na sociedade irlandesa, ele faz de Leopold Bloom um judeu. A novidade é a introdução de uma identidade pessoal negativa, pautada pela opressão. Por milhares de anos, em face da tormenta, os judeus se definiram - de maneira delirante, desafiadora, desconectada com a realidade, mas eficaz - pelo amor que o filho primogênito recebe do pai. Quando ele passa a se definir como o alvo de ódio, quando a sensação de irmandade vem do infortúnio comum, quando a experiência formativa é a exclusão, você tira a opressão, e sem ela sobra pouco da identidade.
O rabino Jonathan Sacks foi um dos pensadores que se debruçaram sobre as conexões entre identidade e opressão no século XXI. Analisando a identidade judaica, ele se pergunta porque, nos países mais multiculturais do mundo, os judeus decidem se assimilar - ou seja, deixar escorrer pelos dedos a sua identidade judaica, abandoná-la como um traje antiquado, que não lhe serve mais. A conclusão a que ele chega é que, para muitos judeus, ser judeu é ser historicamente um perseguido, e a opressão cria uma identidade fraca. Ninguém quer ser definido pelo seu estigma. Ninguém quer transmitir um estigma para sua descendência. Você só tenta perpetuar aquilo que você ama. Se não há uma identidade positiva, os grilhões dos quais você se liberta são também uma condenação à morte. Ser judeu significaria pouco sem a exclusão.
Nos últimos tempos, com o crescimento do antissemitismo nos EUA, parece que todos os criadores judeus nas mídias sociais viraram ativistas contra o ódio. Há um duplo processo de subordinação: o preconceito em si e o ato de se deixar pautar pelo preconceito, de deixar que ele se aloje em você. A lembrança da opressão sem o seu apagamento do seu nome reforça o processo de minorização - de se pensar como minoria. Uma vez que, no mundo atual, "minoria oprimida” é um pleonasmo, a lembrança serve à construção de uma identidade negativa, que gravita em torno da opressão. No lugar de, sei lá, amar o legado de texto e de interpretação do seu povo, você lambe as suas feridas de expulsão e violência. Confrontado entre a lembrança da morte e da vida, você escolhe a morte.
No Dia Internacional das Mulheres, é comum ouvir que o dia "não é sobre flores”, é sobre luta. A cada frase dessa, fico com mais vontade de receber uma rosa. A lembrança de ser mulher vem com a lembrança da violência, do desencaixe. De maneira análoga, quando alguém consome algum produto cultural sobre judeus, em 80% das vezes posso apostar que é um livro ou filme sobre o Holocausto (nas outras vezes, em geral é alguma série da Netflix que retrata os judeus ortodoxos como um “outro”, uma curiosidade antropológica). Quando queremos elevar algum grupo minorizado, quantas histórias na verdade são sobre violência? Quanto da lembrança da identidade não é uma identificação negativa? Em “Um teto todo seu”, depois de Virginia Woolf passar dezenas de páginas mapeando o desarranjo da mulher escritora, só lhe resta achar um lugar para falar que não se defina pelo processo de exclusão, por tudo que lhe foi negado; Woolf concebe uma mente incandescente, nem homem nem mulher, mas uma sensibilidade andrógina.
É tarde e estou atrasada para o trabalho. Saio do metrô meio atrapalhada. Passo pelo pátio no qual recentemente plantaram os primeiros narcisos da primavera. A luz tem um dourado bonito e paro, mão na bolsa ainda procurando o crachá, diante do prédio de sempre - um gigante sobre as suas perninhas. Nunca entrei, mas sei que a Igreja de São Pedro está lá, quase no subsolo, fruto de um acordo com a construtora na década de 1970. As outras pessoas passam por mim fazendo bufos de impaciência. O prédio é interessante, com ou sem a fratura.
Talvez seja meio boba minha referência, mas fiquei pensando em como o Larry David fez um bom trabalho em contar histórias a partir da perspectiva de judeus, sem ser exclusivamente pautado pelo ângulo da opressão.
Ah, e fiquei chocada com a história da fratura do prédio! Me fez perceber que viver numa cidade grande é todos os dias confiar imensamente no trabalho de desconhecidos e nem se dar conta disso!
Mais um baita texto, mulher!
Texto incrível. Me pergunto se o que chamamos de fratura não é apenas a singularidade de criadores e suas criações que esperamos que se adequem sempre às nossas expectativas.
Se não correspondem, é natural ignorarmos essas "falhas" para reafirmar nossas crenças, mas deveríamos mesmo abraçar o diálogo com o texto em toda a sua admirável "imperfeição".
Afinal, quando os contextos mudam, as criações sempre se tornam mais frágeis, a exemplo do prédio, construído sem se considerar a questão de ventos mais fortes. Ele não estava errado nem certo, apenas foi construído atendendo a outros contextos e expectativas, assim como o texto de Virgínia Woolf.