O livro do protesto e da contradição (1/54)
Esse é o registro do meu ano de Torá, um ciclo de leitura que se inicia em Simchá Torá de 2021, no calendário comum, ou 5782, no calendário judaico. A porção coberta por esse texto vai da história da Criação até a introdução de Noé (Gênesis/Bereshit 1:1 a 6:8).
O desafio das coisas que conhecemos é reanimar o espírito de descoberta do primeiro encontro. Todos os anos, lê-se a Torá de ponta a ponta. Todos os anos, em Simchá Torá, começa-se de novo - uma leitura que é um retorno e uma renovação.
Chegamos viciados na história da Criação. Sabemos o que acontece e sabemos também o que pensamos sobre o que acontece. O desafio do Gênesis é sentir o fôlego de Deus pairando sobre as águas como se fosse pela primeira vez, uma respiração viva, ao mesmo tempo em que a história é antiga para nós, e antiquíssimo são os ventos que chegam dos reinos de Judá e Israel, das travessias no deserto e do exílio na Babilônia.
Enganados pela nossa familiaridade, é fácil esquecer que o Gênesis é um livro de protesto. Da tradição oral que alimentou a Torá, das gerações que a teceram na forma escrita, dos editores que formaram o arranjo final durante o exílio, recebemos as vozes de um povo minoritário, que cresceu à sombra de impérios. Esse é o seu texto e essa é a sua filosofia de mundo.
Outros povos antigos elaboraram suas histórias de origem - contos de conflito e poder, de deuses lutando por domínio e estabelecendo hierarquias. Para os babilônios, o mundo surgiu de uma batalha entre os deuses, da qual Marduk saiu vitorioso e a humanidade foi criada como escrava das divindades. Para os gregos, a história começou com uma sequência de incestos cujos frutos foram os titãs, os ciclopes e eventualmente os deuses do Olimpo. Dado o panorama histórico, quão silenciosamente revolucionário é o Deus dos hebreus que, num ato de liberdade, traz o mundo à existência pela palavra: “Deus disse: ‘haja luz’ e houve luz”. Diante da grandiosidade dos impérios e de seus mitos de criação, forja-se uma origem pelo viés da ética e não pelo da força: “Deus viu que era bom”. Em meio a sociedades estratificadas, uma promessa e um protesto: as pessoas - todas as pessoas - são criadas iguais a Deus e portanto iguais entre si; à humanidade é dado o domínio sobre tudo na Terra, exceto sobre as outras pessoas.
“Let us make a human in our image, by our likeness, to hold sway over the fish of the sea and the fowl of the heavens and the cattle and the wild beasts and all the crawling things that crawl upon the earth.
And God created the human in his image,
in the image of God He created him,
male and female He created them.”
Quanto das nossas ideias de igualdade e de liberdade não são ecos desse grito de protesto? Em que medida esses conceitos, que nos são tão caros, não são dogmas religiosos, imunes à prova racional? Muito do que já foi ciência de ponta nos últimos 200 anos dedicou-se a provar que as pessoas não são iguais - há genes que não só nos diferenciam como escolhem vencedores e criam hierarquias. Muito dos estudos sociais modernos pretende mostrar que não somos tão livres - somos produtos de estruturas, construções de processos históricos. O protesto do Gênesis é atual: somos todos iguais pois feitos à imagem de Deus, somos todos livres porque semelhantes ao Deus que cria o mundo num ato de liberdade.
Se o espírito de protesto nos parece muito distante da Torá, basta lembrarmos quem são os grandes nomes da Bíblia. Abraão discute com Deus numa tentativa de salvar Sodoma e Gomorra. Sarah, idosa e infértil, ri de Deus quando Ele lhe promete filhos. Moisés confronta Deus porque não quer ser o escolhido para salvar o povo. Os profetas clamam que não querem profetizar. Jó passa um livro inteiro atormentando Deus com perguntas até que Ele decide se manifestar. Por fim, a contradição está na própria estrutura da Torá. O segundo capítulo de Gênesis coloca em questão o capítulo anterior: primeiro, o homem e a mulher são criados simultaneamente a partir de uma matéria não identificada; em seguida, o homem é criado do barro e a mulher é feita a partir de uma costela. O quarto capítulo não é coerente com o que veio antes: Caim, filho do primeiro homem com a primeira mulher, toma uma esposa de outra tribo, que não se sabe se onde saiu. A lista é imensa - basta um Google em "contradições da Biblia”.
Uma solução simples para a existência das contradições é que a Torá foi um trabalho de composição: uma colcha provavelmente costurada no exílio babilonico (século VI AEC), com retalhos escritos até quatro séculos antes, feitos de fios que circulavam oralmente não se sabe desde quando e nem com que objetivo (a princípio, as narrativas que compõem a Torá poderiam nem mesmo ser parte de um corpo religioso, ou de algo que pudesse ser identificado como judaísmo). Quando os editores do exílio estavam dando à Torá seu formato final, porém, havia pouca dúvida de que em suas mentes estavam lidando com um texto sagrado. É de se esperar que apenas os melhores entre os melhores costuraram a Torá, apenas aos mais sábios entre os sábios deve ter sido destinado o trabalho de remendo de todos os retalhos de revelação e profecia que circulavam entre o povo hebreu. Não é razoável pensar que esses homens não perceberam que construíram um todo não coerente.
A contradição é por design: a Torá está nos ensinando como deve ser lida. Não como um vidro transparente que nos permite acessar a verdade literal, mas como um prisma que adquire cor na faceta em que jogamos luz. Não repetimos a leitura anualmente para decorar o que foi escrito, mas para descobrir novas possibilidades. A proposta de uma vida lendo a Torá é uma vida de luta com o significado da Torá. Algumas dezenas de capítulos adiante no Gênesis, durante a travessia no deserto que decide o futuro da sua família, Jacó passa a noite engalfinhando-se com um anjo. Jacó sobrevive e, nesse momento formativo, recebe um novo nome: Israel, aquele que luta com Deus. O nome de um povo, o nome de um reino e o nome de um Estado fazem referência a esse processo de luta e renovação. A tarefa do povo de Israel é lutar com a Torá, renová-la e se deixar renovar por ela.
Jacó Lutando com o Anjo, 1866 - Gustave Doré (Wikimedia)
Referências
God in Search of Man: A Philosophy of Judaism (Rabino Abraham Joshua Heschel)
“We must beware of the obscurantism of a mechanical deference to the Bible. The prophetic words were given to us to be understood, not merely to be mechanically repeated. The Bible is to be understood by the spirit that grows with it, wrestles with it, and prays with it.”
Covenant and Conversation, The Genesis of Justice (Rabino Jonathan Sacks)
The Genesis of Justice (Bereishit) - Rabbi Sacks
“What exactly is being said in the first chapter of the Torah?
The first thing to note is that it is not a stand-alone utterance, an account without a context. It is in fact a polemic, a protest, against a certain way of understanding the universe. In all ancient myth the world was explained in terms of battles of the gods in their struggle for dominance. The Torah dismisses this way of thinking totally and utterly. God speaks and the universe comes into being. This, according to the great nineteenth century sociologist Max Weber, was the end of myth and the birth of Western rationalism.”