Sobre se colocar em testemunho
Um complemento a “Um regime da mente”, publicado há duas semanas
Talvez esse texto seja prematuro, mas vou deixá-lo vir ao mundo assim como está: chamuscado pelo calor dos eventos.
Na semana em que o Monark e o Adrilles pareciam o assunto mais urgente do Brasil, essa newsletter falou da importância de não se deixar contaminar pelo ciclo de notícias. Durante a última eclosão do conflito Israel-Palestina, falei da armadilha que é confundir lógica de partido com pensamento crítico. Enquanto tomo a decisão de terminar esse texto com um não-irônico "Glória à Ucrânia" (o leitor está avisado!), ensaio uma versão da Oração da Serenidade: peço sabedoria para distinguir sinal de ruído, ponderação para diferenciar as situações que pedem nossa atenção daquelas que apenas a distraem, e fibra moral para chegar a uma conclusão quando necessário.
Foi nos dado viver em tempos interessantes. Podemos escolher atravessá-los como espectadores ou como testemunhas. Um espectador assiste aos eventos se desenrolarem como num filme ruim, ou numa maratona de TV - com a mente embotada. Uma testemunha está presente com todos os sentidos humanos; ela pode contar a história.
Sou um produto distante da guerra na Europa. Minha família materna veio de quatro cantos da zona de influência russa, como parte do Império ou da União Soviética: Romênia, Ucrânia, Bessarábia (atual Moldávia) e Rússia Branca (Bielorússia). Uma das minhas bisavós nasceu em Kyiv. Mas eu não sou especial. Milhões de pessoas são filhas e netas e bisnetas do século mais mortal da história do mundo, o período que Eric Hobsbawn chamou de “a era da catástrofe”. Vinte milhões morreram só no front oriental durante a Segunda Guerra. Onze milhões tornaram-se refugiados. Essa é a sombra de guerra na Europa.
A maioria dos brasileiros não conhece a guerra e não conhece a resistência; a geopolítica é algo que se lê no jornal ou no Twitter. Enquanto os ucranianos estão entocados no metrô, enquanto estão cruzando a fronteira, enquanto estão se armando, há quem ache que ser inteligente é atirar uns amendoins na Globonews e soltar uns perdigotos: e os Estados Unidos? e as guerras no Oriente Médio e na África? e a OTAN? Enquanto um vizinho mais fraco é invadido por uma potência militar. Enquanto o mundo é colocado na imobilidade pela ameaça nuclear. Enquanto uma democracia - problemática, como tantas - é esmagada por um autocrata.
No meu regime da mente, não há espaço para quem segue uma condenação por um “mas”. Talvez essa seja a primeira guerra que tem streaming online pelo ponto de vista da vítima. Podemos ver os seus rostos. Podemos ouvir as suas histórias. Podemos saber o que pensam. As vidas ucranianas não são exercícios mentais.
Tantas das vozes do “se fere a minha existência, serei resistência” estão silenciosas. A neutralidade nos coloca na irrelevância moral. Vamos entrar em uma semana confusa, de informação conflitante. Na solidão e intimidade de nosso gabinete mental, que tenhamos espaço para nos colocar como testemunhas da luta de uma nação livre, que não cairá de joelhos.
Glória à Ucrânia.
(Havia prometido um texto sobre artistas e criação, mas fica para uma próxima)
(Um texto do Celso Rocha de Barros sobre os buracos em que se meteram algumas alas do debate público brasileiro: Invasão da Ucrânia é má notícia para a esquerda e motivo de confusão na direita - 27/02/2022 - Celso Rocha de Barros - Folha (uol.com.br) ou Invasão da Ucrânia é má notícia para a esquerda e motivo de confusão na direita (outline.com))
Kyiv
Lindo como sempre! Há esperança! ❤️