Uma das vantagens de não ter bombas caindo na sua cabeça deveria ser a faculdade de pensar com um pouco mais de clareza. Toda vez que eclode mais uma rodada do conflito entre Israel e Palestina, eu me pergunto: de onde as pessoas tiraram essas opiniões, essas certezas peremptórias? A quem não foi dado nascer judeu, ou árabe, ou mesmo em um país que financia um dos lados em disputa, de onde vem essa pulsão de tomar partido? Quando o nosso alinhamento é automático, onde fica o pensamento crítico?
Se formos um pouco honestos conosco, a maioria das nossas opiniões não são pessoais; elas não são sequer pensamentos. Nossas opiniões são produto do grupo a que pertencemos ou a que queremos pertencer; elas são resultado de fidelidades que já foram definidas e rivalidades que se quer manter. A sua força motriz é o mimetismo, e não a reflexão. Elas são animadas pelo que a filósofa Simone Weil chama de "espírito de partido”.
Em um ensaio chamado “Pela supressão dos partidos políticos", escrito em 1943, Weil advoga pelo… bem, fim dos partidos. Em 1943, essa proposição era tão factível quanto é hoje, de modo que não precisamos levá-la ao pé da letra para avaliar seus méritos. O texto de Weil fala sobre os vícios da mentalidade grupal e de um modo de não-pensar que se aproxima ao dogmatismo religioso:
“A supressão dos partidos estenderia sua virtude de limpeza para bem além dos assuntos públicos. Pois o espírito de partido conseguiu contaminar tudo. (...)
Chegamos ao ponto de quase só se conseguir pensar, em qualquer campo, em termos de “a favor” ou “contra” dada opinião. Em seguida, de acordo com cada caso pelo “a favor” ou pelo “contra”. É a transposição exata da adesão a um partido. (...)
Da mesma forma, não havia grande diferença entre o apego a um partido e aquele a uma Igreja (ou à postura antirreligiosa). Era-se a favor ou contra a crença em Deus, a favor ou contra o cristianismo, e assim por diante. (...)
Até mesmo nas escolas só se sabe estimular o raciocínio das crianças convidando-as a tomar partido a favor ou contra. Citam uma frase de um autor reconhecido e perguntam a elas: "Vocês concordam ou não? Apresentem seus argumentos”. Na hora da prova, os coitados, tendo que terminar a dissertação ao fim de três horas, não podem passar mais do que cinco minutos se perguntando se estão de acordo. Seria tão fácil dizer a eles: “Meditem sobre esse texto e expressem as reflexões que lhes ocorrerem”.
Quase em todo lugar - e com frequência até para problemas puramente técnicos - a operação de tomar partido, de se posicionar a favor ou contra, substitui a obrigação de pensar.
Trata-se de uma lepra que se originou nos meios políticos e se estendeu, por todo país, à quase totalidade do pensamento.”
Se a nossa opinião a respeito de determinado assunto corresponde rigorosamente à cartilha de um grupo, nós não estamos pensando - nós delegamos o pensamento. Mas, uma pessoa pode argumentar: “Eu sou de esquerda ou de direita, conservador ou progressista, eu escolhi fazer parte desse grupo! É assim que um esquerdista ou um direitista, um conservador ou um progressista, pensa! Não é essa uma escolha racional, de um sujeito pensante?”.
Há dois problemas nesse argumento. Um pressuposto de Simone Weil é que a verdade e o bem apontam para uma única direção, para a qual é a obrigação de cada pessoa conduzir seus pensamentos. De acordo com a autora, não se pode seguir dois deuses, a verdade e o partido/grupo:
“Se reconhecermos existir uma verdade, só é permitido pensar o que é verdadeiro. Pensamos então alguma coisa não por sermos franceses, ou católicos, ou socialistas, mas porque a luz irresistível da evidência nos obriga a pensar assim, e não de outra forma.”
A adesão a um grupo nos leva a alinhamentos automáticos, por meio do mimetismo (“é assim que meus amigos pensam”) ou da submissão à autoridade (“é assim que as pessoas que respeito pensam”). Simone Weil escreve:
“Um homem que adere a um partido aparentemente identificou em sua ação e propaganda coisas que lhe parecem justas e boas, mas jamais estudou a posição do partido em relação a todos os problemas da vida pública. Ao entrar para o partido, ele aceita posições que desconhece. Assim, submete seu pensamento à autoridade do partido. Quando, paulatinamente, descobrir suas posições, ele aceitará sem analisá-las detidamente. É exatamente a situação em que se encontra quem adere à ortodoxia católica estabelecida (...)”.
O segundo problema de nos enxergamos pensantes quando reproduzimos uma opinião grupal - afinal, escolhemos esse grupo! - é que o tribalismo não costuma ser uma operação racional. A nossa filiação a um modo de pensar é resultado de uma amálgama de afetos positivos e negativos que tem mais a ver com as nossas reações emocionais do que com nossas decisões conscientes. Em sua newsletter, o escritor Alexandre Soares Silva satiriza:
“Perguntaram pro Nabokov (metade do que escrevo começa com ‘perguntaram pro Nabokov’) qual a opinião política dele, e ele respondeu que era o que quer que irritasse Bertrand Russell.
Olhando pra trás na minha vida vejo que muitas, não, todas as minhas opiniões, e nem só políticas, foram sendo formadas por oposição às idéias dos intelectuais brasileiros, que me chegavam primeiro nos jornais, depois na faculdade, e depois na internet. O que quer que eles achassem, eu achava o contrário; e nem era artificial, porque na hora que eu ouvia a opinião deles eu rearranjava a minha alma para ter de modo sincero a opinião contrária.”
A dinâmica de ação e repercussão, implícita no texto de Alexandre Soares Silva, se associa a outra característica das opiniões grupais: as tendências intelectuais seguem modismos. Tão certo quanto a morte e os impostos, é a certeza de que uma fase de boyfriend jeans vai se seguir a anos de tendência de skinny jeans. O historiador da moda Quentin Bell, sobrinho de Virgina Woolf, uma vez disse que a moda está para os estudos sociológicos como a drosophila está para os estudos genéticos - a dinâmica da moda seria um tubo de ensaio para analisar nossos processos grupais, nossas paixões coletivas, nossos meios sociais de sinalização.
Em um texto no Substack, Scott Alexander, psiquiatra que assina um dos últimos blogs realmente influentes da Internet, recentemente se baseou em Quentin Bell para falar das guerras culturais que tomam conta do mundo online. Com base na incidência de pesquisas no Google, Scott traça a ascensão e queda de 3 culturas online: Novo Ateísmo, Novo Feminismo e Novo Antirracismo. O modo como certas ideias entram e saem de voga tem uma dinâmica social que é relativamente independente de seu mérito intelectual. Usando a teoria de Bell, Scott diz que ideias também são sinalização. O ciclo das tendências intelectuais seria:
Um grupo de pessoas cool passa a se engajar com uma nova ideia, ou uma antiga ideia em nova roupagem;
Pessoas não cool percebem o sinal e começam a copiá-lo;
A ideia vira mainstream e para de servir como sinalizador de coolness,
O grupo de pessoas cool adota outra ideia como sinalizador social.
A ideia original não perde validade; ela apenas foi tão disseminada que as pessoas na fronteira da moda simplesmente mudam de tópico. Quem fica um pouco mais do que o razoável na Internet sabe exatamente do que o Scott está falando. Na medida em que feminismo e antirracismo se disseminaram culturalmente a ponto de virar itens da agenda corporativa, toma força a subcultura online que Scott chama de Novo Socialismo. O Brasil tem sua parcela de influencers da revolução. A função das ideias como sinalização fica ainda mais patente no caso brasileiro, em que a explosão do ativismo performativo coincide com o período em que se “passa a boiada” no país.
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Vivemos num mundo em que até as expressões de gênero são não-binárias, mas a opção por não tomar partido é igualmente mal vista por ambos os lados do espectro político. Os termos “isentão” e “centrão”, por exemplo, expressam o desprezo que tanto a esquerda quanto a direita sentem por quem não se alinha. Ponderação virou fraqueza de caráter. Liberdade intelectual é lida como vagueza de convicções.
Seria Simone Weil uma isentona? Weil foi uma pensadora que viveu profundamente suas convicções no mundo real. Ela não tinha opiniões sobre os assuntos da moda; ela tinha ideias que pautavam o modo como ela viveu.
Quando temos opiniões fortes sobre assuntos que não nos afetam diretamente, sobre os quais não agimos de nenhuma forma, e que saem do nosso horizonte de preocupação tão logo o media cycle se renova, estamos mais perto de Simone Weil ou do tribalismo intelectual que ela denuncia? Que os conflitos nos quais não estamos envolvidos sejam um convite à reflexão e ao exercício da nuance e da liberdade intelectual de quem não tem bombas caindo sobre a cabeça.
Referências:
Pela supressão dos partidos políticos, de Simone Weil. Editora Âyiné, 2021
Newsletter do Alexandre Soares Silva: ASS. 01 (mailchi.mp)
Blog do Scott Alexander: The Rise And Fall Of Online Culture Wars - Astral Codex Ten (substack.com)
Mais Simone Weil: Simone Weil (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
Esse texto tocou em tantos incômodos que venho tendo nos últimos tempo. Muito obrigado por ele, Ariela.