Esse texto talvez só faça sentido para quem é um tantinho online demais.
Estamos acostumados com a ideia de uma dieta para o corpo. Somos matéria - a substância da qual alimentamos nosso corpo importa, improvável combinação que somos de tecidos e hormônios. Mas também temos algo de imaterial que precisa de nutrição.
Na semana que passou, eu gastei uma quantidade de tempo irrazoável em assuntos online. É um pouco vergonhoso admitir, mas talvez eu tenha passado tempo demais pensando num influencer que apresenta podcast bêbado e num comentarista político ex-BBB cuja existência eu havia acabado de descobrir. Há um lado de mim que gostaria de dizer que isso é se engajar nas questões do nosso tempo. Quando encarei a página em branco no final de semana, porém, precisei confessar o que a bagunça das minhas ideias denunciava: eu passei a semana consumindo junk food mental.
Suspeito que eu não esteja sozinha no hábito de usar o celular como um enchimento para qualquer espaço vazio. Enquanto espero o metrô, eu rolo o feed do Twitter. Quando faço um intervalo no trabalho, eu checo o Instagram. Tenho vergonha de abrir o aplicativo que contabiliza as horas que esse hábito, pouquinho a pouquinho, me rouba do dia. São momentos em que eu deliberadamente estou entulhando a minha cabeça de informação mal processada. De pensamento de manada. De questões que não são minhas, de respostas formuladas para perguntas que não me incomodam. Várias vezes, em vez de me divertir, passo raiva ou indignação. E ainda chamo isso de entretenimento. Ou, pior, confundo todo esse ruído com informação.
Na minha experiência limitada, um texto se forma aos poucos. Eu passo uma semana escrevendo o texto na minha cabeça. Quando as coisas dão certo, por algum milagre das sinapses, um mosaico de ideias e leituras se junta numa formação interessante e - bum! - você tem um texto. Mas isso não acontece se você passa a semana fortalecendo as conexões cerebrais mais superficiais. As ideias talvez interessantes, talvez originais, talvez apenas úteis para os outros, simplesmente não se formam. Também porque nada de bom cresce da raiva e do ressentimento, que são as moedas correntes da economia digital.
Em um ensaio lindo, do qual gosto muito, Virginia Woolf fala da liberdade mental necessária para escrever. De acordo com ela, o trabalho criativo pede uma mente incandescente, que consome e elimina os elementos que lhe são estranhos. A liberdade a qual Woolf se refere é interna - uma mente livre dos ódios e dos ressentimentos. “Todo o desejo de protestar, de pregar, de proclamar alguma injúria, de desforrar-se de algo, de fazer o mundo testemunhar algum revés ou injustiça foi descarregado e eliminado”. É difícil alcançar algo parecido com esse estado de espírito quando se pratica indignação recreativa nas redes sociais.
Uma maneira que encontrei de criar uma relação mais positiva com a cultura da Internet é apoiar quem se dedica a produzir conteúdo independente. Nesse espírito, passei a acompanhar mais de perto a Aline Valek. Ela começa sua última newsletter falando de alienação, que em latim “tem o sentido de tornar-se um Outro, um estrangeiro. É quem não entende, quem está de fora, quem não fala a mesma língua nem compartilha das mesmas referências”. A Aline está se referindo a quem decide se abster do ciclo de notícias, mas eu fiquei pensando que o nosso modo de consumo midiático também é uma forma de alienação. Talvez seja até mais pernicioso, pois tendemos a racionalizá-lo como algo positivo, quase um dever cívico. Atulhar nossa mente de informação mal digerida não é se instruir. Ocupar-se com a notícia do dia não é se engajar com o mundo, é se deixar pautar pela gritaria do momento. Mais que isso, é permitir que a nossa mente se torne um outro, uma subsidiária de interesses que nos são estranhos.
Mesmo para coisas boas, nossa capacidade de digestão é limitada. O espaço mental é o que temos de mais íntimo e inalienável. Essa semana, minha meta será escolher do que me alimentar - uma nutrição não do corpo, mas do espírito. No próximo domingo volto com mais um texto do projeto bíblico :)
O ensaio da Virgina Woolf chama-se “Um teto todo seu”: Um Teto Todo Seu | Amazon.com.br
A newsletter da Aline Valek:
Vertumnus, por Giuseppe Arcimboldo (1591)
"Ocupar-se com a notícia do dia não é se engajar com o mundo, é se deixar pautar pela gritaria do momento." Perfeito!
Quando recebo o relatório semanal das horas que passo no celular, sinto que perdi um tanto de saúde naquelas horas online. Tirar o twitter do telefone me ajudou muito nessa auto-regulação, mas é foda a gente tem que se cuidar num mundo que nos afoga em todos os lados.
Não conhecia sua news, assinei!