Sempre chega gente nova aqui e eu fico pensando no que fazer para não espantar as visitas. Guardo as estranhezas lá pelo quarto ou quinto parágrafo - quem sabe até lá já conquistei pela simpatia? Sou a Ariela, tenho 32 anos. Nasci no Mato Grosso, cresci entre o interior e a capital de São Paulo e hoje moro em Nova York. Sou judia, me formei em Economia na USP e essa newsletter se chama “A Diletante” pois é meu projeto de amor. As edições saem oficialmente aos domingos, mas nem sempre. Escrevo ensaios pessoais, incluindo um ciclo de análise bíblica sob perspectiva não-religiosa. Bom te ter por aqui.
Nas últimas semanas, essa newsletter ficou silenciosa. Poderia dizer que estava ocupada com a minha festa de casamento e seria verdade, mas não a verdade completa. Eu tive uma crise de fé.
Não gosto de elucubrações sobre a escrita - os escritores têm uma tendência a enaltecer mais o ofício da escrita do que a própria realidade, de onde brota tudo o que há para ser vertido em prosa e verso. Mas vou prosseguir mesmo assim, confiando que o leitor saberá adaptar a frase para outros ofícios: escrever é um ato de fé. Talvez seja mais preciso dizer: publicar é um ato de fé. Jogo um texto no mundo na esperança de que há um interlocutor receptivo do outro lado, de que há amor à vida e às palavras, de que há uma cultura a celebrar e construir. Quando fraqueja a fé no outro, cambaleia também minha fé em mim e na minha capacidade de compartilhar algo que importe. Melhor cuidar dos centros de mesa.
A Bíblia é narrativa, lei e de vez em quando até croqui de moda e projeto arquitetônico. Mas há algo que, talvez surpreendentemente, ela não é: uma teologia explícita. A Bíblia silencia sobre a natureza do divino. Quando Moisés pergunta o nome de Deus no episódio do arbusto em chamas, Deus responde: “serei o que serei” (Êxodo 3:14). Depois da construção do bezerro de ouro, em meio a uma crise na comunidade, Moisés pede a Deus que se revele, ao que Ele responde: "você verá minhas costas, mas meu rosto não será visto” (Êxodo 33:23). Quando Jó, no auge do desespero, questiona Deus, ele recebe uma afirmação de força, não uma teologia.
Nessa recusa de definições moram as mais belas possibilidades interpretativas. O judaísmo é uma religião radicalmente monoteísta: o primeiro mandamento divino diz que “não há Deus além de mim”. Em nossa imaginação infantil, poderíamos visualizar um velhinho barbudo afirmando sua solidão no céu. Muitas pessoas escolhem não acreditar nesse Deus; eu não acredito, os cabalistas não acreditavam. Há na mística judaica uma afirmação ainda mais radical de unidade: há apenas um. Na nossa limitação, percebemos a realidade como um conjunto de dualidades: eu e o mundo, nós e eles, as pessoas e o divino. Pensamos em Deus como algo que pode existir no cosmos e que cabe a nós acreditar ou não. Na perspectiva cabalista, não há no que acreditar: o mundo existe em Deus. Não existe realidade fora de Deus. Tudo é um.
Aqui convido o leitor a entender Deus tão metaforicamente quanto quiser; “Deus” não é nome próprio. Dependendo da linha teológica, a palavra “Deus” é intercambiável com a expressão “fonte da vida” ou com diversas analogias: rei, noiva, rio. Mesmo “Javé”, que conhecemos como o nome de Deus, não é um nome próprio. A Bíblia Hebraica (Antigo Testamento, para os cristãos) registra a palavra como YHWH. Porque o hebraico escrito possui apenas consoantes, e por conta de proibições à vocalização, a pronúncia correta de YHWH foi perdida; temos uma aproximação. Há consenso entre os estudiosos, porém, a respeito de “YHWH” ser uma amálgama dos tempos verbais da palavra “ser”. Deus não é uma entidade; ele é a vida se desenrolando, é o processo que atravessa aquilo que existe.
A luz da manhã existe em Deus. O sol que se põe existe em Deus. Eu e você, quem amamos e quem odiamos - o processo de vida que nos anima é o mesmo. Uma religião é uma filosofia prática que pede que você reaja ao fragmento de verdade que encontrou. Como você vive em resposta a essa descoberta?
Um dos impulsos humanos mais comuns não é a unidade, mas a divisão em grupos. O antropólogo Gregory Bateson cunhou o termo “cismogênese” (do grego, “origem da divisão”) para descrever a tendência das pessoas a se descreverem em oposição umas às outras. Imagine que duas pessoas, A e B, entram em uma discussão com posições moderadas. À medida que o debate se aquece, e que cresce a repulsa ao outro, A e B afastam-se cada vez mais em polos opostos. Ao final da conversa, não existem mais as posições originais das pessoas A e B: existem as opiniões A e anti-A, B e anti-B, ou mesmo anti-A e anti-B: as duas pessoas passaram a se definir pela negação do outro.
A cismogênese explica a diferenciação entre povos vizinhos. O exemplo clássico contrapõe Esparta, guerreira e agrária, a Atenas, artística e ligada ao comércio: o processo de diferenciação cultural acontece não entre grupos isolados, mas entre grupos em contato que escolhem se construir pela negação dos valores de seus vizinhos. O sociólogo Marcel Maus comenta que uma cultura é uma estrutura de recusa: “As sociedades vivem do empréstimo cultural, mas elas definem a si mesmas pelo que recusam emprestar, e não pelo que aceitam”.
Dois grupos isolados são entidades independentes; eles não constroem suas identidades pela imagem invertida do outro. Dois grupos vizinhos, por sua vez, são um corpo único, faces da mesma moeda. O eu que se constrói da negação do outro é ligado irremediavelmente a ele; não há anti-X sem X. A repulsa torna-se estrutural para o indivíduo: sem o inimigo não há embate; sem o embate, eu não existo.
Considere o caso hipotético de um brasileiro que deixa o país. Na teoria, ele pode construir uma nova vida sem laço emocional com o Brasil; entra governo e sai governo, não há efeito em sua vida cotidiana. Na prática, o elo se mantém, pois a alternativa seria uma reconstrução dos marcadores de identidade. Há alguns influenciadores políticos nessa posição - escolha o seu favorito. Eles construíram carreiras na internet com base no antipetismo e, mesmo depois de se mudarem para os EUA, estão até o pescoço no atoleiro das disputas políticas brasileiras. Há uma constelação de fatores que colaboram para essa postura: algum cálculo profissional, algum comprometimento ideológico, algum apego emocional ao país de origem; gostaria de propor que há também um fator identitário: sem a rivalidade, perde-se um pouco da definição do “eu”. A identidade construída no antagonismo precisa do confronto. Mesmo no momento em que mais tentamos nos diferenciar do outro, nos ligamos irremediavelmente a ele. Somos um.
Não me coloco acima dessa dinâmica: voto contra o atual presidente e me vejo enredada na mesma trama de rivalidades. Durante o segundo turno, é difícil existir sem se colocar em oposição a algo. A mentalidade de guerra infiltra o discurso público, contamina as relações e esgarça o tecido social. Pior: por oposição, ela passa a definir quem somos.
Recusamos algo, portanto existimos como seres pensantes. Odiamos o vizinho, portanto nos afirmamos. Em um jogo de espelhos, percebemos o desprezo nos olhos do outro e devolvemos na mesma intensidade. No Levítico, cuja análise pretendo começar na semana que vem, há uma frase famosa: “Ame o seu vizinho como a si mesmo” (Levítico 19:18). Existe controvérsia na tradução da frase; o Levítico não é um livro dado a apelos emocionais, de modo que “estimar” talvez seja uma aproximação mais correta do original do que “amar”. A frase é associada a um dever com o outro, mas, em nossa situação atual, também toma as cores de um dever conosco. O ódio escraviza. Tornamo-nos a imagem invertida do inimigo. O amor liberta. Podemos nos definir nos nossos próprios termos.
Há pela frente um trabalho importante de reconstrução do discurso público. Falamos de salvar a democracia, mas não existimos nós e a democracia como entidades separadas: existimos como atores do processo democrático; a democracia existe em nós. No processo democrático, não há inimigos em guerra, há divergências em debate. Há estima pelo oponente. Existimos nós como seres propositivos, não reativos. Existe fé no outro. Essa realidade existe em nós: precisamos nos comprometer a honrá-la de novo.
Detalhe de “Quando as estrelas da manhã cantaram juntas”, por William Blake. Referência ao Livro de Jó
Para combinar com esse texto, indico aqui um vizinho de Substack que habita um local do espectro político diferente do meu. Não lembro como cruzei com o Pedro Sette-Câmara na internet, mas tenho o acompanhado de perto no Instagram e na newsletter. O Pedro fala de maneira conciliatória com um público de direita. Ele salienta a alegria e não a guerra cultural, estuda o Novo Testamento através das homilias de um padre gay e tem um projeto de comunicação que pretende fugir da rivalidade fácil.
Referências
O despertar de tudo, uma nova história da humanidade. David Graeber e David Wengrow
Judaism for the world. Arthur Green
Here all along. Sarah Hurwitz
The US empire is being driven toward war by implacable powers, who exploit these ancient mind-traps to turn us against our designated enemies,.
Ariela, que alegria receber seus textos novamente. Fiquei feliz por você, pelo casamento, pelas comemorações da vida. Costumo ter a prática de me alegrar por pessoas que não conheço. Não estranhe.
Agradeço por colocar em palavras algo tão íntimo como os nossos processos de escrita. Eu também escrevo e ainda entro em pânico toda vez que alguém me lê. Ao mesmo tempo, alcançar ao outro nas palavras, é uma dádiva. Um ato de fé, como você bem diz.
Escrevi uns versos depois que te li hoje. Compartilho a seguir:
Mistério
SER no mundo
alcançar a um outro
abraçar o que não sei
tocar ao outro com as palavras
voltar-se para a vida
entregar-se ao pouco que se sabe fazer
(escrever)