Na semana que passou, fiz uma coisa da qual não me orgulho: entrei em uma discussão no Instagram. O tema, porém, tem tudo a ver com o meu projeto nesta newsletter. Assim, já com os pés sujos de lama, vou me arriscar um pouco mais fundo no atoleiro da Internet. Como desculpa prévia à pessoa que escreveu o texto Jardinagem, ofereço a racionalização que, no fim, este é um ensaio sobre cultivar histórias.
Coisas horríveis aconteceram no Brasil nos últimos dias. Genivaldo de Santos Jesus, um homem negro com esquizofrenia, foi morto pela Polícia Rodoviária Federal em uma câmara de gás improvisada. Eu me arrepio de horror enquanto escrevo essas palavras. Em resposta à barbárie, muitas pessoas mobilizaram uma comparação evidente - o nazismo. É um paralelo que se sustenta em diversas frentes: na forma de assassinato, na banalidade do mal, na ideia de que certos grupos de pessoas são indignos de viver.
A comparação incomodou certas vozes do ativismo negro. Por que é necessário mobilizar nazismo para enxergar a dor das pessoas negras no Brasil?, elas perguntaram. Há um subtexto nessa pergunta: o Holocausto, que matou milhões de pessoas, dentre elas seis milhões de judeus, já seria um genocídio visível demais. Haveria diversas dores, tão profundas quanto, tão dignas de atenção por si mesmas, que parecem só ser feitas visíveis quando em comparação ao fenômeno nazista.
Vejo algo de válido nesse incômodo. De fato, as histórias sobre nazismo e Holocausto são abundantes. O trauma da escravidão negra, por sua vez, parece receber menos registro artístico. A explicação que alguns ativistas negros propõe é que as pessoas se sensibilizam com o Holocausto porque ele foi uma agressão de brancos contra brancos. Essa afirmação é falsa em muitos níveis. As vítimas do Holocausto incluíram negros e ciganos. Mesmo os judeus, a quem parece se dirigir a afirmação de que a violência nazista foi feita contra outros brancos, não eram vistos como racialmente privilegiados em nenhum sentido; a ideologia nazista marcava-os (marca-nos?) como raça inferior. Por fim, qualquer comoção pública só pode ser percebida pelo retrovisor. Por quatro anos, corpos esquálidos queimaram em fornos e suas cinzas cobriram o céu da Europa. Quem sabe os turistas ainda respirem os mortos.
Sobre o que há de verdade no incômodo: a indústria cultural europeia e norte-americana vive e revive a dor do nazismo. A Europa teve que se entender com o seu lugar no mundo: pensando-se o auge da civilização (a Alemanha de Goethe e de Wagner!), o continente europeu promoveu a barbárie em escala industrial. Os Estados Unidos, por sua vez, não só estavam do outro lado do Atlântico, do lado vencedor da guerra, como também foram o país que mais recebeu refugiados judeus. Hoje, os EUA têm a maior população judaica do mundo (12 milhões), superando até mesmo Israel (próximo de 7 milhões). Para efeito de comparação, o terceiro lugar é da França, com 750 mil judeus. No Brasil, a depender das estimativas, há 100 mil judeus. A judeidade norte-americana contou e recontou a sua história de dor. Essa história era deles para contar. Nós, brasileiros, inundados pela indústria cultural europeia e norte-americana, somos espectadores desse processamento coletivo de trauma.
Enquanto isso, onde estão as dores brasileiras? Nosso Brasil, abençoado por Deus e bonito por natureza, foi o maior beneficiário da escravidão negra no mundo. Deixe a realidade quebrar como uma onda dentro de você. O Brasil foi o país do mundo que mais recebeu pessoas negras escravizadas. O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão negra. Essa história é nossa. Esse trauma é nosso para processar.
Como judia, acho importante vincular a memória do Holocausto aos racismos de hoje: lembramos o passado para agir no presente. Como brasileira, porém, penso que devemos nos colocar mais como protagonistas da nossa própria tragédia. O brasileiro vê os eventos nos EUA e na Europa, ou a repetição de suas histórias, e de alguma forma se sente superior. Aqui, não! Na pior das hipóteses, nossa barbárie é como na Europa, como o nazismo. Não nos ocorre que o mundo todo deveria na verdade comparar: como no Brasil. Poucos dias atrás, completaram-se dois anos do assassinato de George Floyd, um homem negro desmarmado que foi sufocado por três policiais. Os Estados Unidos viveram semanas de protestos em diversas cidades. Os policiais foram julgados e condenados. O rosto de Floyd era visto por todo o país. Um brasileiro pode pensar (não sem razão): olha como os EUA são racistas. Processar o trauma expõe as nossas chagas coletivas, mas também é um caminho para a cura. No Sergipe, Genivaldo morreu e vamos seguir em frente. Mais uma chacina no Rio e é um dia normal. Na recusa de contar nossas histórias, somos melhores ou piores?
Na newsletter, falei muitas vezes do poder das histórias que compartilhamos. A série bíblica, publicada quinzenalmente, é um exercício de leitura e releitura de uma das narrativas mais populares e longevas da História. Quando falamos de Brasil e de negritude, porém, somos soterrados pelo peso das vozes silenciadas, das histórias que não foram contadas. Olhamos para o mundo e vemos que estão narrando outras dores, e que nós mesmos reverberamos o sofrimento dos outros. A dor do outro pode de fato se irmanar a nossa. Mas a história do racismo à brasileira - essa história é nossa para contar. E a história engasgada sufoca todos.
Temos que contar nossa história até que o mundo inteiro lembre, no automático: a banalidade do mal, como na escravidão brasileira, como no racismo brasileiro. Aí, então, talvez seremos livres para escrever outra história.
Natureza-morta com frutas, Agostinho da Motta
Oi!
Eu sou a Ariela. Hoje moro em Nova York, mas sou do Mato Grosso e cresci em São Paulo - primeiro no interior, depois na capital. Essa newsletter registra minhas buscas pessoais, mas que espero que também sejam úteis de se compartilhar com o mundo. A cada duas semanas, publico um texto do ciclo bíblico, sob a minha perspectiva secular. No intervalo, deixo os temas correrem de maneira mais livre.
Adorei o texto! Existe também um fator que é econômico e cultural: artistas, cineastas e autores judeus produziram filmes, livros e peças sobre o holocausto que influenciam muito a nossa forma de pensar sobre o tema. Como judia, sei bem a importância de relembrar para nunca esquecer. Isso só foi possível graças a um poder econômico que permitiu toda essa produção cultural importantíssima. Sem reparação econômica pela escravidão, fica impossível haver algum tipo de igualdade social - e os meios econômicos para a produção cultural da população negra ficam mais difíceis. Some a isso o preconceito que subsiste no País e pronto - filmes como “Medida Provisória” são a exceção, e não a regra. Há muitos fatores por trás das poucas vozes que falam sobre a escravidão que chegam até nós.
Precisamos mesmo confrontar nossos traumas coletivos, encarar nossas mazelas, reconhecer a crueldade comezinha, visceral e assustadora o racismo que nos foi legado pela escravidão. Está semana, participei da discussão de "Úrsula", um romance de 1859-60, escrito por uma mulher maranhense negra q, debaixo de uma narrativa marcada pelo convencionalismo romântico da época, figura como primeira obra a denunciar a perversidade da classe escravocrata, da voz personagens negros a narrar o próprio cativeiro e mulheres a denunciarem sua subjugação por homens violentos e poderosos. Maria Firmino foi apagada da nossa história literária e seu resgate faz parte do esforço de compreender o racismo que marca até hoje nossa vida, familiar e social.