Tenho aprendido tantas coisas com essa newsletter. Uma delas: escrever é trabalho de jardinagem. É preciso primeiro arrancar o mato.
Tantas coisas crescem entre a gente e o mundo sem que percebamos. Os pensamentos óbvios, as reações mesquinhas, a política mais rasteira. Cultivar uma coisa boa é tarefa difícil. O que é ruim já cresce sem adubarmos, ou pior: cresce esmagando o que iria florescer.
Essa semana, pela segunda vez, joguei fora um texto completo. Não é agradável perceber que demos um passo em falso, mas o retorno também faz parte da estrada. Podemos não saber seguir em frente, mas ainda não estamos perdidos enquanto soubermos como voltar.
Minha questão é: eu quero que os textos revelem uma coisa bonita. Ou que ao menos mostrem uma face diferente do conhecido, que tragam um sopro remoto ao banal. Queria que a palavra revelasse que a árvore que vemos todo o dia, pela janela, parece ordinária mas é muito antiga. Que ela foi feita do cuidado dos outros e que agora é a nossa vez de jardinar.
O texto que joguei fora era uma ensaio crítico, com um tema atual. Mas o mundo não precisa de mais críticos. De fato, ele já está coberto de pesticidas e de quem escreve para incomodar, para chocar, para revelar o vazio. Parece-me bem pequenino o mérito de quem denuncia o que é feio, de quem aponta como abandonado o terreno baldio. Há uma lenda judaica que diz que quatro sábios da Torá entraram no jardim do conhecimento - Ben Azzai, Ben Zoma, Acher e Rabbi Akiva. Um morreu, um ficou maluco, um perdeu a fé. O único que viveu em paz depois da experiência foi Rabbi Akiva, que disse: quando vir a fonte da vida, não diga “Água! Água!”. Quando apresentado com a realidade, não diga o óbvio. É preciso falar para que algo novo se revele.
Estamos em um ano político e a indignação é óbvia e fácil. O mundo já está coberto por uma grossa camada de palavras, denunciando-o. Sabemos decor tudo que há de feio e errado, todas as formas pelo qual as coisas são falhas e as pessoas são presas pelas amarras da necessidade e do desespero. Se há um sentido em libertá-las, esse sentido passa por revelar algo mais bonito.
Gosto muito de um ensaio de Virginia Woolf, que já mencionei algumas vezes aqui. Embora eu seja uma escritora pequena, minúscula, penso que só vale a pena escrever o que estiver de acordo com “Um teto todo seu”. Woolf fala que a tarefa do escritor é viver em presença da realidade, germiná-la e cultivá-la para o leitor. Ao contrário do texto que escrevi e joguei fora, a realidade de Virginia Woolf vale a pena ser vivida mesmo sem público - um jardim particular.
Mas quando reexamino estas anotações e critico meu próprio fluxo de pensamentos enquanto as formulava, descubro que meus motivos não foram inteiramente egoístas. Ultrapassa esses comentários e digressões a convicção — ou será o instinto? — de que os bons livros são desejáveis e de que os bons escritores, mesmo que exibam todas as variedades da depravação humana, são ainda bons seres humanos. Portanto, quando lhes peço que escrevam mais livros, insisto em que façam algo que será para seu bem e para o bem do mundo em geral. Como justificar esse instinto ou crença eu não sei, pois as palavras filosóficas, quando não se foi educada numa universidade, são propensas a trair-nos. O que se pretende dizer com "realidade"? Parece algo muito caprichoso, muito incerto — ora encontrável numa estrada poeirenta, ora num recorte de jornal na rua, ora num narciso ao sol. Ilumina um grupo numa sala e marca algum dito casual. Esmaga-nos ao caminharmos para casa sob as estrelas e torna o mundo do silêncio mais real do que o mundo da fala — e então, lá está ela de novo, num ônibus, no tumulto de Piccadilly. Por vezes, também, parece habitar formas demasiadamente distantes para que possamos discernir qual é sua natureza. Mas, o que quer que toque, ela fixa e torna permanente. Isso é o que resta quando a carcaça do dia foi recolhida num canto; é o que resta do tempo passado e de nossos amores e ódios. Ora, o escritor, segundo penso, tem a oportunidade de viver mais do que as outras pessoas em presença dessa realidade. É sua obrigação encontrá-la e colhê-la e comunicá-la ao restante de nós. Ao menos é isso que infiro da leitura de Lear, ou Emma, ou La recherche du temps perdu. Pois a leitura desses livros parece executar uma curiosa operação germinativa nos sentidos; vê-se mais intensamente depois; o mundo parece despido de seu invólucro e provido de vida mais intensa. Invejáveis são as pessoas que vivem em maus termos com a irrealidade; e dignas de pena, as que são golpeadas na cabeça pela coisa feita sem conhecimento ou cuidado. Assim, quando lhes peço que ganhem dinheiro e tenham seu próprio quarto, estou-lhes pedindo que vivam em presença da realidade, uma vida animadora, ao que parece, quer se consiga partilhá-la ou não.
Virgina Woolf
Jardim de Giverny
Me identifico muito com esse desejo de cultivar coisas boas com a escrita (e a newsletter, em específico). Às vezes escrevo um texto todo sobre um assunto e então reescrevo tudo de novo, mudando para um posicionamento de construção ao invés de reclamação ou denúncia. Nem sempre é possível, mas quando tento geralmente sai pelo menos 1 coisa boa da indignação mesquinha.
'só vale a pena escrever o que estiver de acordo com “Um teto todo seu”' - gênia vc hehe amei.
A Vanessa Guedes ressuscitou, hoje, um trecho do seu texto: "(...) o mundo não precisa de mais críticos. De fato, ele já está coberto de pesticidas e de quem escreve para incomodar, para chocar, para revelar o vazio. Parece-me bem pequenino o mérito de quem denuncia o que é feio, de quem aponta como abandonado o terreno baldio." Assino embaixo. Mais do que nunca precisamos do cultivo à beleza para frutificar. :)