Pare seja lá o que você está fazendo por um instante e se pergunte: tenho medo da morte porque não serei mais capaz de fazer mais isso?
Marco Aurélio, Meditações
I.
As garças levantam voo sobre os campos de cevada - você sente o movimento, mesmo sem enxergá-lo. É tempo de colheita. A água passa do tornozelo; a altura do junco bate a sua, verde e fresco por todos os lados. No fim do dia de trabalho, há em casa a certeza de pão e cerveja, família e amigos, o ronronar dos animais. Você mastiga um pouco de areia que o vento lhe enfiou pela boca. Tensiona os músculos e, a cada golpe de foice, o campo de visão se amplia às custas dos feixes de junco caídos. De um lado, o solo fértil. Do outro, o deserto. Aos seus pés, o rio Nilo, fonte da vida.
II.
O Egito Antigo foi uma civilização de 3 mil anos de história. A frase é banal, então temos que cutucar a mente para que exercite o assombro. Se contarmos desde a colonização portuguesa, o Brasil como o conhecemos tem pouco mais de 500 anos. Imagine o Brasil em constante fluxo, mas ainda assim a mesma unidade sócio-cultural que nos é familiar, no ano 4.500. Isso foi o Egito. Quando a Ilíada, a Odisseia e a Bíblia Hebraica foram escritas, os vizinhos do deserto já contabilizavam o Império Antigo, o Império Médio e Império Novo, e ainda sobravam uns bons 800 anos de troco. Isso foi o Egito. Com a morte de Cleópatra, em 30 AEC, o Egito Antigo caiu e se tornou uma província de Roma. Na linha do tempo, eu e você estamos mais próximos de Cleópatra do que ela estava da Pirâmide de Gizé, finalizada em 2560 AEC. Isso foi o Egito.
Para um testemunho tão incrível de vitalidade, não deixa de ser curioso que associemos os egípcios ao culto dos mortos. Pirâmides, múmias e sarcófagos: a adoração dos que passaram. Ou, pirâmides, múmias e sarcófagos: a esperança no mundo que virá. É como se mentalidade egípcia imaginasse sempre uma vida melhor, contanto que nunca aqui, jamais agora.
O Livro dos Mortos nos legou a jornada para a utopia egípcia do pós-morte. Ao lado de cada corpo, colocava-se um rolo de papiro com as instruções para cruzar o submundo. Os egípcios não pensavam na matéria e no espírito como elementos separados, de modo que a preservação do corpo morto era parte do rito funerário. O primeiro obstáculo do submundo era a pesagem do coração no Salão da Dupla Lei. Se o coração do falecido, emblemático da consciência, pesasse mais do que a pena de Maat, representante da lei, a pessoa morria uma segunda morte, dessa vez definitiva: ela era capturada pelo devorador de mortos e condenada à inexistência. O Livro dos Mortos, cuja origem remonta a 5 mil anos no passado, contém o primeiro registro conhecido da ideia de julgamento divino; é possível que ela tenha surgido no Egito, e depois entrado na corrente sanguínea do cristianismo e do islã pela via da religião hebraica.
Se a pessoa atravessasse o Salão da Dupla Lei, ela encontrava os portais das sete mansões, guardadas por sete deuses armados. O Livro dos Mortos trazia os hinos a serem entoados para que cada uma das divindades, híbridas de bicho e gente, liberassem o caminho. Na terra, um sacerdote segurava um instrumento metálico e abria a boca, os olhos e as narinas do cadáver; no céu, o falecido subia no barco de Rá, que navegava entre as estrelas até o Salão da Verdade. Quarenta e dois deuses, em fileira e em silêncio, aguardavam o desembarque do nosso viajante. Na fase final, ele recobrava a fala e iniciava suas quarenta e duas confissões negativas. Há alguns velhos conhecidos: não matei, não roubei, não cometi adultério. É como se estivéssemos lendo a versão integral e politeísta dos Dez Mandamentos - porque estamos. Há também algumas antigas novidades: não causei derramamento de lágrimas, não poluí a água e o solo, não tirei comida de criança. Ao fim dessa jornada fantástica, o falecido encontrava o paraíso.
III.
A primeira estrela desponta no céu: não há mais o que fazer. Guarda-se os instrumentos de criação e comércio: dinheiro e caneta, smartphone e enxada. A comida já está pronta, o fogo apagado, e todos comem sabendo que não há na pia panelas para lavar. Por um dia, o trabalho acabou. Você senta na cama e há alguém que te espera com desejo e calma. O sono vem sem dificuldade e o dia nasce sem alarme. Você desce as escadas, encontra na rua os conhecidos e entabula um papo. As crianças se reconhecem e disparam adiante, curtindo um jogo recém inventado. O caminho é curto. O tempo se expande, devagar e eterno.
IV.
Se judeus e muçulmanos têm uma complexa relação de fraternidade, as culturas egípcia e hebraica têm uma difícil relação de paternidade. No Gênesis, o Egito é o lugar no qual os doze filhos de Israel aprendem a conviver e formar um povo; ele é a primeira casa das tribos pacificadas. Já no Êxodo, a casa se tornou uma prisão; o Egito é o local de onde se quer proclamar liberdade. Em Moisés e Monoteísmo, Freud chocou a comunidade judaica ao propor que Moisés não era um hebreu criado por egípcios, mas sim, pura e simplesmente, um egípcio. Especialmente sensível aos traumas parentais, Freud cutucou a ferida: você não é o filho que se liberta; você é igual àquilo do que se ressente. Você é como o seu pai.
No Levítico, o escritor sacerdotal se propõe a fazer um corte seco em relação às religiões dos vizinhos. Em mais de uma ocasião, coloca na boca de Deus a instrução inequívoca: “vocês não farão como os egípcios”. Talvez o exemplo mais claro da fissura cultural seja a postura em relação aos mortos. Enquanto os sacerdotes egípcios participavam de sofisticados rituais funerários, seus pares hebreus foram proibidos de tocar em cadáveres. O Levítico interdita a participação dos sacerdotes em ritos de morte, à exceção dos membros da família próxima. Entre os judeus atuais de linhagem sacerdotal, os Cohen e os Levi, ainda vigora a proibição à entrada em cemitérios. Como o Deuteronômio depois articula: você tem uma escolha entre vida e morte; escolha a vida. A religião hebraica é um protesto, nem tão sutil, ao culto dos mortos.
Como uma nação que não construiu palácios ou pirâmides, os hebreus têm uma reação talvez previsível às riquezas egípcias, à opulência da casa paterna: eles desdenham. Enquanto os egípcios cultuam os mortos e constroem monumentos, enquanto concebem e desenham dezenas de deuses, enquanto se dedicam ao ideal de vida após a morte, os hebreus dizem: não. A divindade é una, imaterial e irrepresentável. Não é permitido pensar em vidas futuras; não há na Bíblia Hebraica descrição de céu ou inferno e, aliás, mesmo as videntes para adivinhar os acontecimentos da semana que vem estão proibidas. A santidade existe no tempo, não no espaço. O Levítico consagra o Shabat, o último dia da semana, como santo para todas as gerações. Ao surgimento da primeira estrela da sexta-feira, cessa todo o trabalho. O mundo já foi criado, resta descansar. O maior exemplo de arquitetura está na construção de refúgios no tempo.
V.
A TV ligada tinge a sala de luz azul-tela. É dia de desfile na Sapucaí. O volume está no mínimo; na mesa de jantar, meu pai estuda atrás de uma pilha de apostilas. Pela vista da sacada, apenas apartamentos vazios - os vizinhos somem durante o Carnaval, e só resta nossa família flutuando no escuro, pintada de azul. Devemos ter sete e nove anos quando esperamos o mestre-sala e a porta-bandeira entrarem na avenida. Minha irmã e eu pulamos do sofá. Não sei sambar: carrego um estandarte imaginário e giro, giro, giro. Minha irmã começa como mestre-sala, mas ela não quer ser o homem e logo se transforma em passista. Minha mãe ri e, encorajadas, vamos cada vez mais rápido, até cansar.
VI.
O que é um dia no paraíso? O que os egípcios encontravam do outro lado da vida?
Depois dos salões e portais, nosso viajante egípcio levava um tempo para acostumar os olhos à claridade. Atrás da último limiar, o sol fazia reflexo no Nilo. Os pés se ensopavam de água fresca, junco alto, tempo de colheita. Ao fim da jornada fantástica, tudo que os egípcios queriam era poder viver mais um dia comum de trabalho. Eles não cultuavam a morte; os egípcios amavam a vida. Tudo que eles queriam do paraíso era só mais um dia normal.
Quando a primeira estrela anuncia o início do Shabat, um dia como os outros se transforma no tempo eterno. O mais perto que a teologia judaica chega de descrever o mundo por vir é associá-lo ao mundo que já existe, é descrevê-lo como um Shabat. O paraíso é aqui. Nem tão diferente dos egípcios, os hebreus pedem mais um dia santo para viver.
Parecia uma noite comum, todo mundo estava se divertindo mais do que a gente. Um dia a mais de vida. Levanto a bandeira invisível. No momento eterno a gente gira, gira, gira.
Esta foi uma edição do ciclo bíblico, escrito sob a minha perspectiva judaica e não-religiosa. O trecho a que esse texto se refere é Emor (Levítico 21:1-24:23).
A epígrafe deste texto foi surrupiada da newsletter do
. Autor premiado, editor da Companhia das Letras, ele protege o papo que pode soar estranho atrás de paywall. Deixo aqui a primeira edição aberta das , que termina com esse trecho bonito:Existe, debaixo de tantas camadas de máculas, uma forma de escrita literária que possa ser uma reza? E, mais uma vez Benjamin, existe uma forma de literatura que abra frestas de portas para o Messias?
Obrigada pela leitura e até a próxima!
E o Egito é África. Pra gente tbm não perder essa perspectiva. Que texto, viu? Pra salvar. Beijo
que texto ótimo!