Amid the beauty, I see broken pieces everywhere.
I.
Não há verdade a portas fechadas. Três pessoas entram numa sala com seus medos, seus ressentimentos, suas aspirações. Ouve-se os gritos e depois o silêncio. Você aproxima o ouvido da entrada, mas escapam apenas frases entrecortadas. Quem mente? Quem morre? Quem conta a história?
A Cúpula de Camp David aconteceu em julho de 2000, no retiro rural da presidência dos Estados Unidos, onde o acordo de paz entre Israel e Egito fora selado anos antes. Entram em cena os nossos personagens. Bill Clinton, em último ano de mandato, quer lavar a sua reputação e entrar para história como o negociador da paz entre Israel e Palestina. Ehud Barak, do Partido Trabalhista israelense, chega como primeiro-ministro de uma coalizão cambaleante. A esquerda, hegemônica em Israel por décadas, luta para se manter no governo. Na sombra de Barak, há Yitzhak Rabin, seu antecessor e co-partidário, assassinado em 1995 por extremistas israelenses contrários ao processo de paz. Yasser Arafat, líder da resistência palestina, aparece com seu figurino único, a jaqueta militar. O lenço palestino anima o imaginário da juventude global como as camisetas do Che Guevara.
No centro da mesa, há o mapa de uma tripa de terra no Oriente Médio, o único lugar da região que não tem petróleo. Estão em discussão o controle da Cisjordânia, da Faixa de Gaza e de Jerusalém oriental. Fala-se de direito ao retorno, compensações monetárias e paz permanente. Não há registro por escrito das negociações, apenas testemunhas oculares e suas verdades fragmentadas. O fracasso é sempre órfão. Nossos personagens se levantam sem acordo e alguns sem futuro.
Yasser Arafat levanta para liderar a Segunda Intifada, que eclode dois meses depois, com lançamento de foguetes e ataques suicidas contra alvos israelenses. O negociador-chefe americano o acusa de nunca ter desejado a paz: “Toda a vida de Arafat foi governada pela luta e por uma causa. Para ele, acabar com o conflito é acabar consigo mesmo”. Ehud Barak se levanta para o isolamento político. A opinião pública considerou que os trabalhistas ofereceram muito para depois assistir ao país estourar em violência, e a esquerda perdeu todas as eleições desde então. Bill Clinton se levanta frustrado. Três dias antes de deixar a Casa Branca, ele recebe uma ligação de Arafat. "Você é um grande homem”, disse o líder palestino. "O inferno que eu sou", respondeu Clinton. "Eu sou um fracasso colossal, e você me transformou em um."
II.
Tudo começou com um sonho. Nada na vida de Theodor Herzl, um literato austríaco, indicava que ele incendiaria o coração das massas judaicas do leste europeu.
Na Viena do fim do século XIX, poucas coisas eram mais importantes que a poesia, a ópera, o teatro. Em “Autobiografia: o mundo de ontem”, Stefan Zweig reconstrói o frenesi da juventude judaica, para a qual o máximo ponto de honra era se juntar à intelectualidade austríaca. Entre as classes médias e abastadas da Europa ocidental, o judaísmo existia como tradição familiar; entre as classes pensantes, era um constrangimento, uma lembrança da superstição e do estigma. Theodor Herzl, poeta e dramaturgo, era editor do suplemento literário do Neue Freie Presse. De testa altiva, olhos azuis e trajes sofisticados, Herzl era um judeu assimilado, termo que adquriu conotação negativa depois do colapso da ideologia assimilacionista.
Durante a Idade Média e sob a influência da Igreja Católica, o sentimento anti-judaico tinha fundo religioso. Bastava a conversão e os problemas se resolviam. Após a Revolução Francesa, os judeus foram aceitos como cidadãos, contanto que abdicassem de sua identidade coletiva em favor da identidade nacional. Conforme declaração na Assembleia Nacional Francesa, o lema era: “aos judeus individualmente - tudo; como nação - nada”. A máxima se espalhou pela Europa ocidental e, vendo uma oportunidade única de integração, os judeus abraçaram com fervor a ideia de se assimilarem às culturas locais e se tornarem orgulhosos franceses, alemães, austríacos. Das fileiras judaicas, saíram também os maiores internacionalistas do pensamento europeu: Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Leon Trótski. Tudo menos se fechar no gueto de novo. Tudo menos a humilhação da especificidade.
Herzl era um assimilacionista convicto, até que os seus ideais se chocaram com a realidade do Caso Dreyfus. Alfred Dreyfus era um francês exemplar: oficial de artilharia formado pela Escola Superior de Guerra, pai de duas criancinhas chamadas Pierre e Jeanne, eternizado com um bigode da moda numa foto aos 35 anos. Mas, de nascença, era judeu. Dreyfus foi acusado falsamente de traição militar em 1894. O caso dividiu a França por anos e provocou imensa comoção popular. Em 1895, Theodor Herzl acompanhou o julgamento e a degradação de Dreyfus em Paris. Embora os intelectuais tenham saído em defesa de Dreyfus, Herzl ouviu a voz das ruas, e elas diziam “Morte aos judeus”. A população judaica foi atacada em vinte cidades francesas. Como Dreyfus, a maioria dos judeus na França era assimilado, pouco religioso e indistinguível na superfície de seus vizinhos cristãos. Era o começo da discriminação não por credo, como os medievais, mas por sangue, como os modernos.
Em 1896, Theodor Herzl volta a Viena e publica um panfleto chamado “O Estado judeu”:
Se França – bastião da emancipação, progresso e socialismo universal – [pode] ser apanhada num redemoinho de antissemitismo e deixa a multidão parisiense gritar 'Matem os Judeus!', onde eles podem estar seguros mais uma vez – senão em seu próprio país? A assimilação não resolve o problema porque o mundo gentio não o permite, como o caso Dreyfus demonstrou tão claramente.
Na época, a proposta não parecia fora dos limites do razoável: o século XIX havia testemunhado a criação dos Estados nacionais europeus, e tanto a Alemanha quanto a Itália tinham acabado de ser unificadas. Ainda assim, Herzl abre “O Estado judeu” se defendendo antecipadamente da acusação de ser um utópico. O leitor sente o constrangimento do culto editor de suplemento literário. A virulência aparece páginas depois, em trechos provavelmente escritos em Paris: “Somos um povo, sim, um só”. Está criado o sionismo - a ideia de que os judeus são uma nação entre as nações, e que merecem autogestão política através de um Estado nacional como os outros. O panfleto é uma sensação instantânea, mas não exatamente onde Herzl esperava.
Stefan Zweig conta que a sociedade vienense recebeu Herzl com escárnio. Na ópera, a presença de Herzl era acompanhada por cochichos de “vem aí o rei dos judeus”. As classes altas e a intelectualidade judaica não queriam se associar ao recém desenvolvido chauvinismo de Herzl. Elas prosperavam como austríacas e não queriam ser nada além de austríacas, europeias, cidadãs do mundo. Enquanto isso, o Império Russo, onde cinco milhões de judeus viviam em segregação degradante, começou a pegar fogo. A população judaica, miserável e massacrada pelo Império, já era campo fértil para ideias revolucionárias - em 1881, judeus e judias participaram da conspiração para assassinar o czar Alexandre II. O sonho de ser dono de um lar, e não hóspede indesejado, fez um sentido emocional profundo. Eles queriam voltar para casa - mas para onde? Os britânicos chegaram a oferecer um pedaço de seu império, na Uganda. Filantropos judeus sugeriram negociar um pedaço da Argentina. Mas só havia um lugar em que eles haviam morado como nativos, e não como estrangeiros; uma tripa de terra que eles governaram havia dois mil anos, antes que os romanos os expulsassem e lhes roubassem as propriedades; uma palavra repetida em toda a literatura nacional. Israel.
Em 1897, Theodor Herzl convoca o primeiro Congresso Sionista, que acontece na Suíça. Ele escreve em seu diário: “Na Basileia, fundei o Estado judeu. Se o dissesse hoje em voz alta, seria ridicularizado. Mas talvez em cinco anos, e certamente em cinquenta, todos se darão conta disso.”
III.
Do not hate your brother in your heart. (Levítico 19:17).
Não acredito em livros sagrados, mas se eu fosse acreditar, esse seria um bom momento para começar. Eu brinco com a frase em inglês. Por que soa menos cafona em língua estrangeira? É coincidência eu abrir o livro nesta página hoje? Devo escrever um texto sobre paz, eu que odeio minha irmã em meu coração?
And you shall love your fellow man as yourself. I am the Lord. (Levítico 19:19).
Deus, mas eu me odeio também. Eu odeio o reflexo de mim nos olhos da minha irmã - eu vejo que ela me odeia, e nos odiamos. De repente eu me sinto muito pequena, minúscula, e ainda assim há demais de mim para que a minha irmã entre num lugar em que há eu.
Mas você também não deveria acreditar em mim, eu que não sei contar essa história. Os ressentimentos foram se acumulando em camadas finas, todos solucionáveis individualmente, mas agora grudados entre si e colados à pele. Somos uma família pequena - minha mãe, minha irmã e eu - e por trás das nossas portas fechadas tudo parece grande, pequeno e difícil.
IV.
Quando Herzl escreveu “O Estado judeu”, havia 500.000 árabes vivendo na Palestina, à época um território do Império Otomano. Olho pela janela e vejo São Paulo imensa: 1.500 km² de 12 milhões de pessoas. A Palestina, com seus 28.000 km², 18 vezes maior e 24 vezes menor. Os problemas: grandes e pequenos.
Herzl e o Congresso Sionista acreditavam numa solução negociada para o problema judeu. Os países europeus não os queriam, e havia a esperança de que, na ausência de outra solução final, os ajudassem na retirada. Herzl teve reuniões com o governo otomano, o kaiser alemão e o ministro do interior russo. Nenhum acordo abrangente foi fechado, mas os otomanos passaram a vender pontualmente terras para os judeus. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, cerca de 100 mil judeus haviam abandonado a Europa e fixado residência na Palestina.
O Império Otomano entrou na guerra do lado da Alemanha. A população judaica da Palestina, sentindo a mudança de ares, tomou partido dos Aliados. Com a derrota iminente dos otomanos, os judeus passaram a negociar com a Inglaterra uma solução diplomática para a criação do Estado. Ao mesmo tempo, os ingleses negociavam com os árabes uma revolta contra os otomanos, que lhes dominavam a terra, em troca de apoio. Os árabes entenderam que, vencida a guerra, o Império Britânico lhes prometera em contrapartida os territórios do Império Otomano, incluindo a totalidade da Palestina e as províncias que hoje são a Síria, o Iraque e o Líbano. Quando, em 1917, os britânicos assinam a Declaração Balfour, os árabes recebem a notícia como uma traição. A declaração era um reconhecimento formal da legitimidade da causa sionista e uma promessa de que parte da Palestina seria destinada ao Estado judeu. Na divisão dos espólios de guerra, a Liga das Nações ratificou um acordo segundo o qual a Palestina, que na época também incluía a Transjordânia (atual Jordânia), ficaria sob mandato britânico. A ideia dos mandatos era que as potências vencedoras assumissem a administração de certos países, enquanto os preparavam para a independência. Em 1920, deu-se início ao Mandato Britânico da Palestina, que confirmou sob lei internacional os termos da Declaração Balfour.
Se os historiadores não fossem tão elegantes, começaria aqui um período conhecido como Shit Show. Mas somos todos muito poéticos e elegantes. A Inglaterra passou quase 30 anos administrando a Palestina em movimento pendular, afagando os interesses ora dos judeus, ora dos árabes, conforme as próprias conveniências políticas. No meio tempo, o antissemitismo corria galopante na Europa. Em 1933, Hitler é eleito na Alemanha. A imigração judaica para a Palestina explodiu, alimentando o sentimento árabe-palestino de que eles logo se tornariam minoria, estrangeiros em sua própria terra.
Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, os britânicos fecharam um novo acordo com a população árabe-palestina. O Livro Branco de 1939 limitava a venda de terras aos imigrantes e estabelecia uma cota de 75.000 novos imigrantes judeus nos próximos 5 anos. A Inglaterra foi fiel ao acordo. Durante o Holocausto, quando os nazistas assassinaram 6 milhões de judeus, nenhum imigrante a mais foi admitido na Palestina.
V.
O que devemos aos outros? A minha irmã fecha a porta com um estrondo. Eu e a minha mãe ficamos no silêncio do apartamento meio vazio. Ou: eu tranco a porta atrás dela, e escrevo este texto para provar que sou inocente.
VI.
Volto ao meu livro. O Levítico é um texto difícil: de repente a Bíblia dá uma pausa na história, e você tem que reconstruir a narrativa sem enredo e sem personagens.
Os capítulos finais do Levítico são conhecidos como o Código da Santidade. Com seu tom imperativo, o estilo de escrita os assemelha aos demais documentos jurídicos da Mesopotâmia, como o Código de Hamurabi (1.700 AEC). Se Mary Douglas está certa, o Levítico é o documento de uma religião completamente reformada para expurgar referências a espíritos e monarcas. Ele teria sido escrito em torno do ano 600 AEC com o propósito de parecer arcaico, o resgate de uma tradição recebida diretamente do Sinai. Não se sabe quanto do Levítico era de fato lei nos antigos reinos hebreus, numa época em que a lei religiosa e a lei civil eram uma unidade. Os redatores sacerdotais dão a entender que os hebreus só obtiveram um lar nacional porque se fizeram dignos através da observância dessas leis básicas, anunciadas no Levítico como uma Constituição.
No corte dos melhores momentos, o Código da Santidade é um texto simpático. Ele nos exorta não apenas a não odiar nossos irmãos, mas também a amar o próximo como a nós mesmos. Num trecho preferido de público e crítica, ele diz:
Como o nativo entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; e o amarás como a ti mesmo, pois fostes estrangeiro na terra do Egito. (Levítico 19:33,34)
O problema dos melhores momentos é que um pedaço importante da realidade pode ter sido cortado na ilha de edição. O Levítico, analisado em sua integridade, não é um texto amoroso; ele é um texto duro, redigido em legalês. Nada nele indica preocupações com os ternos sentimentos humanos. O Levítico fala de justiça - na divisão de terras, no direito aos alimentos, no trato entre as pessoas.
Mary Douglas cita uma linha interpretativa que retira a subjetividade da palavra “amor”, conforme utilizada no Levítico e em outros trechos da Bíblia. O amor do texto não é uma emoção. Nos contratos de outros povos da Mesopotâmia, constam cláusulas em que o rei ou o dono de terras cedem propriedades “com amor e alegria”. Essas palavras servem para dar fé de que a ação foi tomada de forma livre e voluntária.
O amor, como o entendemos, não pode ser ordenado. Nem Deus pode te obrigar a ter os sentimentos corretos. Não odeie seu irmão, ame o próximo como a si, ame o estrangeiro: a história completa não é um conto de amor, mas um contrato de justiça.
VII.
No prédio da minha mãe, temos um vizinho palestino. Ele é cabeleireiro e cortou os cabelos de nós três algumas vezes nos últimos anos. Com a tesoura em mãos, ele me contou a história da mãe, que nasceu e cresceu na Jerusalém pré-criação do Estado de Israel.
Antes dos sionistas chegarem, ele me disse, árabes e judeus conviviam pacificamente em Jerusalém. Havia judeus vivendo como minoria entre os árabes há séculos, desde a tomada de Jerusalém pelo Islã, em torno de 600 EC. A mãe dele se lembrava de fofocar com as vizinhas judias em torno da mesa com pão fresco. Então, chegaram os ideólogos. Até 1930, a Palestina recebeu a imigração judaica idealista, predominantemente russa, que queria estabelecer um povoamento judaico-socialista na Palestina. A partir de 1930, com a ascensão dos nazistas, vieram todo o tipo de desesperados. A partir de 1945, quando os soviéticos libertaram os judeus dos campos de concentração, chegaram na Palestina os quebrados e raivosos.
A educação sobre o Holocausto costuma privilegiar as histórias lacrimosas, as menininhas que escrevem diários enquanto se escondem de Hitler e sonham com a paz mundial. Mas Anne Frank morreu na câmara de gás, junto com outras 1 milhão de crianças judias. A face da sobrevivência não é tão bela. Em “Maus”, de Art Spiegelman, um sobrevivente do Holocausto narra a sua história de vida para o seu filho, de uma casa em Nova York: “Mas não foram os melhores que sobreviveram, nem os melhores morreram. Foi aleatório”. No entanto, “Maus” mostra que não foi bem assim. Sobreviveram os espertos que conseguiram obter pão clandestinamente, os fortes que não caíram durante os trabalhos forçados, os loucos que se apegaram à vida acima de tudo e de todos. Sobreviveram os de pele grossa e alma calejada. Essas pessoas não necessariamente tinham amor no coração. Se fosse eu, teria ódio.
Após a guerra, nenhum país queria esses judeus sobreviventes. Em seus países de origem, suas casas haviam sido destruídas ou ocupadas por não-judeus. Eles foram transferidos de campos de concentração para campos de refugiados, e se desenhava uma segunda crise humanitária. A Inglaterra só revogou o Livro Branco de 1939 após intensa pressão internacional, permitindo o assentamento de sobreviventes na Palestina.
Rapidamente, a Inglaterra se viu com uma guerra civil em mãos. Por sua omissão durante o Holocausto, a população judaica passou a tratar os britânicos como assassinos e usou técnicas de guerrilha contra as autoridades mandatárias. Cresciam as tensões com os árabes-palestinos, cujas relações com os judeus não se beneficiaram do apoio que o mufti de Jerusalém havia dado a Hitler. A Inglaterra quis sair de fininho e, em 1947, avisou à Organização das Nações Unidas que pretendia abrir mão do Mandato. Caberia à ONU resolver o imbróglio da Palestina.
Em 29 de novembro de 1947, em sessão presidida por Oswaldo Aranha, a ONU aprovou a partilha da Palestina em dois Estados, um judeu e um árabe-palestino. Estados Unidos, União Soviética e seus respectivos blocos de influência votaram a favor. Entre os países árabes, era forte o sentimento pan-arábico, que defendia um Oriente Médio de cultura homogênea. Eles votaram contra.
O plano da ONU concedia mais um período de Mandato Britânico. As lideranças árabes passaram esse tempo advertindo os judeus contra a ideia de proclamar a independência, nos limites territoriais estabelecidos pela ONU, depois que o Mandato expirasse. O mufti de Jerusalém prometeu “continuar lutando até que os sionistas fossem aniquilados”. Na época, entre 750 mil e 1 milhão de judeus viviam no Egito, Iraque e outros países árabes. O primeiro-ministro do Iraque prometeu que, em retaliação à independência, “medidas severas deveriam ser tomadas contra os judeus em países árabes”. Jamal Husseini foi mais explícito: “O sangue fluirá como rios no Oriente Médio”.
Em 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion declara a independência do Estado de Israel. No dia seguinte, a Liga Árabe declara guerra. Israel é atacada simultaneamente por todos os países fronteiriços - Egito, Jordânia, Síria e Líbano - e por seus vizinhos palestinos, que não declararam independência pois não aceitaram os termos de partilha da ONU. No plano, Israel ainda teria uma minoria árabe significativa. Essa minoria, que passou a morar dentro dos limites de Israel, foi simpática à Liga Árabe.
Quem vive? Quem morre? Quem conta a história?
Israel defende os territórios concedidos pela ONU e ganha a guerra. Os judeus deixam os países árabes e vão para o novo Estado ou o Novo Mundo. O conflito é conhecido entre os israelenses como Guerra da Independência. A sociedade árabe-palestina entra em colapso durante o confronto. Dentro dos limites de Israel, há fuga em massa da minoria árabe. Temendo o estrangeiro dentro do próprio território, o exército israelense expulsa os árabes que sobraram. Cerca de 750 mil palestinos tornam-se refugiados e passam a morar em caráter provisório nos territórios demarcados pela ONU (Cisjordânia e Faixa de Gaza) e na fronteira de países vizinhos. Os palestinos chamam esse evento de Nakba - a catástrofe.
Meu vizinho palestino interrompe meu corte por um momento. Estou com o cabelo molhado e dividido em várias partes. É um momento importante da história, o ápice emocional. Até o dia da sua morte, a mãe dele guardou a chave de sua antiga casa, a chave de uma porta que não existe mais num lugar para o qual ela não pode voltar.
VIII.
Judeus e muçulmanos compartilham uma história de origem: eles são povos irmãos. Eles não brigam porque são estranhos; eles brigam porque são familiares, e enxergam a rejeição nos olhos do outro.
Na história da Bíblia Hebraica, que os cristãos conhecem como Antigo Testamento, Abraão tem dois filhos, Ismael e Isaac. Isaac é seu filho com Sarah, sua esposa, e o herdeiro legítimo do povo hebreu. Ismael é seu filho com Hagar, a escrava egípcia, e é seu primogênito. Quando Sarah pensa que não podia engravidar, ela entrega Hagar a seu marido, para que ele tenha ao menos um filho. Mas Sarah depois engravida e decide se livrar de Hagar e Ismael.
Judeus e muçulmanos concordam que Isaac é o patriarca do judaísmo e Ismael é o pai do Islã. Escrito ao redor de 600 EC, o Corão é um spin-off da Bíblia. Todos os nossos personagens conhecidos retornam sob nova luz: Cain e Abel, Abraão e Sarah, José, David e mesmo Jesus. Exceto que, no Corão, os judeus falsificaram a história. A narrativa islâmica coloca Ismael como herdeiro da aliança divina e Isaac como um usurpador.
Como é ser Ismael, e ser expulso? Como é ser Ismael, e ficar atrás da porta fechada? Como é ser Ismael, e se sentir menos amado, um estrangeiro em sua própria família? Você sentiria ódio? Você teria ressentimento? Você pediria por vingança?
Os sentimentos são impossíveis de controlar, mas a justiça é uma escolha. No Gênesis, quando Ismael é abandonado, Deus promete que ele também será uma grande nação. Ao longo da história, Deus abençoa Ismael quatro vezes. Ele não terá o destino de Isaac, mas terá o próprio. Cada pessoa é escolhida para a sua própria missão.
A história não conta se Isaac e Ismael tiveram uma reconciliação. Não sabemos se conversaram. Quando Abraão é enterrado, o Gênesis nos diz que eles ficaram lado a lado no túmulo.
IX.
Em algum sentido, somos todos estrangeiros. Queremos pertencer, mas nos sentimos deslocados. Em nossa terra nativa, somos estranhos. Sentimos a dor da rejeição e queremos contar outra história.
O estrangeiro somos nós. Nem Deus pode fazer nos amarmos - o amor, esse sentimento caprichoso e subjetivo. Mas, se ambos fomos expulsos, se todos fomos expulsos, podemos ao menos selar um acordo de justiça.
Esses dias, eu estava em São Paulo para uma cirurgia da minha mãe. Nas horas impossíveis de espera, eu e a minha irmã sentamos no quarto de hospital em silêncio. Eu a olhava e ela me olhava, e éramos familiares e estranhas. Ela teve que ir embora antes da minha mãe voltar do centro cirúrgico. No quarto vazio, eu senti a sua falta.
Para a parte histórica, usei como referência o livro “Israel: uma história”, de Anita Shapira.
A interpretação sobre o Gênesis e a relação entre irmãos foi um oferecimento do rabino Jonathan Sacks, no livro “Not in God’s name”. As informações sobre o Corão são de “Jews and the Qur’an”, por Meir M. Bar-Asher.
Todo o resto é ficcional.
Esta foi uma edição do ciclo bíblico, escrito sob a minha perspectiva judaica e não-religiosa. O trecho a que esse texto se refere é Kedoshim (Levítico 19:1-20:27).
“Eles não brigam porque são estranhos; eles brigam porque são familiares, e enxergam a rejeição nos olhos do outro.” Caramba, Ariela. Mais uma vez você me quebrou no meio
os estrangeiros somos nós !!!!!!!!