Travessia (7/54)
Após uma breve pausa, retomamos aqui os textos de análise bíblica. Esse é o projeto de uma judia secular, que acredita na prática do midrash - a atualização do texto através das gerações. A porção desta newsletter é Vayetze (“E ele partiu”, Gênesis 28:10-32:3). O próximo texto será sobre Shakespeare. Para recebê-lo no seu email, basta clicar em subscribe:
Henry Zuckerman, um dentista em crise de meia-idade, submete-se a uma cirurgia do coração. Ele morre em New Jersey, mas reaparece em Israel, agora sem esposa e filhos. Esse é o enredo de O Avesso da Vida, de Philip Roth. Como seria a vida se eu nunca tivesse casado com determinada pessoa? Como eu estaria agora se tivesse mudado de país, ou se nunca tivesse mudado? E se eu cruzasse com a versão alternativa de mim na rua? A figura do duplo (doppelgänger, no folclore alemão) é recorrente na literatura, pois explora nossa fascinação com a pergunta “e se?”. E se escapássemos? E se fossemos outro? E se atravessássemos o espelho? Renovação e fuga, a vida ao contrário - esses são os temas da história de Jacó na parashá Vayetze
Um mês atrás, essa newsletter deixou Jacó logo depois que ele enganou o pai Isaac e o irmão Esaú para obter a bênção do primogênito. Sabendo que um filho jurou o outro de morte, Rebeca providencia que Jacó fuja para a Mesopotâmia, a terra de sua família, com o pretexto de arranjar uma noiva. Em Vayetze, reencontramos Jacó sozinho e desesperado, atravessando o deserto a pé. O malandro dá lugar ao fugitivo, que dorme ao relento e usa pedras como travesseiro (“tomou uma das pedras do lugar, colocou-a sob a cabeça e dormiu”). Quando chega na casa de Labão, seu tio, ele encontra a imagem refletida de sua vida. Jacó atravessou o espelho.
Travessia
Nas mãos de Labão, Jacó, o enganador, torna-se o enganado; o aproveitador torna-se o explorado. Rashi (rabino francês do século XI, considerado o maior comentarista bíblico de acordo com a tradição judaica), observa que mesmo o abraço que Labão dá em Jacó não é desinteressado. Lembrando-se que o emissário de Abraão, anos atrás, havia coberto Rebeca de jóias, Labão abraça Jacó para sentir se ele carrega moedas de ouro em suas roupas. Não encontrando nada, Labão coloca o sobrinho para trabalhar; na economia do estilo bíblico, só sabemos que Jacó passou a ser um empregado de Labão um mês depois, quando ele lembra de lhe oferecer um salário (“E ficou com ele o período de um mês. Então Labão disse a Jacó: 'Só porque é meu parente, irá me servir de graça? Diga-me qual deve ser o seu salário'"). O episódio é um eco da história das lentilhas. Quando Esaú retornou faminto de uma caçada, Jacó ofereceu-lhe a hospitalidade de um ensopado quentinho, mas não a troco de nada - com o prato de comida, ele comprou do irmão seus direitos de primogênito.
Jacó, então, negocia sete anos de trabalho em troca do casamento com Raquel, sua prima e a filha mais nova de Labão. Ao fim de sete anos, Labão oferece um festim de casamento a Jacó, mas na noite de núpcias ele troca Raquel por Léa, sua filha mais velha. A equivalência com a traição de Jacó a Isaac é explícita. Labão impõe a Jacó a precedência do primogênito que ele não havia respeitado com o próprio irmão (“Na nossa terra, não casamos a mais nova antes da mais velha”). A armação é articulada entre pai e filha, Labão e Léa, numa inversão da traição de Isaac, planejada por mãe e filho, Rebeca e Jacó. De acordo com o tradicional comentário Bereshit Rabba, compilado no século V, a natureza da enganação também é a mesma: privados da visão (Isaac pela cegueira, Jacó pelo escuro da tenda), ambos são iludidos pela palavra. Diz o midrash da Antiguidade:
"A noite toda ele chamou por ela, ‘Raquel’, e ela respondeu. A manhã chegou, e era Léa. Ele disse a ela: 'Por que você me enganou, filha de um enganador? Eu não chamei Raquel durante a noite, e você me respondeu!'. Ela disse: 'Nunca existe um barbeiro ruim que não tenha discípulos. Não é assim que seu pai gritou ‘Esaú’, e você respondeu a ele?’”
Labão promete entregar Raquel na semana seguinte, em troca de mais sete anos de trabalho. A essa altura, Jacó tornou-se efetivamente um escravo da casa de Labão. Ele vendeu sua liberdade por um acordo que não foi cumprido, e aceita pastorear ovelhas pelo dobro do tempo para obter uma recompensa que já era sua de direito. A ironia torna-se mais aguda quando lembramos que Jacó rouba a primogenitura justamente para se tornar senhor do seu irmão (a bênção do primogênito diz: “Seja um senhor para seus irmãos, que se prostrem diante de você os filhos de sua mãe”).
Nesse mundo alternativo que é a casa de Labão, Jacó não só é enganado, não apenas é escravizado, mas também é parte inoperante de um embate entre irmãs. Ele assiste o drama dos pais se desenrolar sob o próprio teto. Para além da ambição, Jacó traiu Isaac porque se sentiu preterido como filho. O rabino Jonathan Sacks nota que a Bíblia tende a associar amor a conflito. O texto diz que Jacó amava ambas as esposas, mas em seguida emenda que Léa era desprezada (“E ele se deitou com Raquel, e a amou mais do que a Léa. (...) E Deus viu que Léa era desprezada e a tornou fértil”). Quem é amado menos sente como se não fosse amado em absoluto. “E Isaac amava Esaú, por causa da caça que ele lhe trazia, mas Rebeca amava Jacó”. O filho que não é preferido sente-se um rejeitado.
As doze tribos de Israel nascem da disputa entre Léa e Raquel pelo posto de matriarca. Em uma sequência humorística, elas entram numa corrida por quem dará mais filhos homens a Jacó. Vale tudo: oferecer as escravas como substitutas, usar plantas medicinais (um dos filhos de Léa colhe mandrágoras no campo), vender uma para a outra o direito de passar a noite com o marido (“Raquel disse: ‘Que Jacó durma com você essa noite em troca das mandrágoras do seu filho’”). Nesse embate entre personalidades poderosas, Jacó desaparece. Léa e Raquel estavam simplesmente negociando a presença de Jacó em troca de um afrodisíaco e ele apenas aquiesce. Jacó só volta a ser quem era quando decide fazer a jornada de volta para casa.
Vinte anos haviam se passado por trás do espelho. O texto guarda silêncio sobre as motivações de Jacó. Tudo o que sabemos é que, um dia, ele anuncia a Labão que quer retornar para a terra dos pais. Funcionário obediente, marido apagado, Jacó de pronto se lembra de quem é Jacó. Como pagamento pelos seus anos finais de serviço, ele negocia com o tio a posse das cabras malhadas ou pintadas. Na superfície, parece um trato benéfico para Labão: essas são justamente as cabras menos numerosas, pois possuem características recessivas. Após tanto tempo na lida com os caprinos, porém, Jacó tornou-se um criador habilidoso. Ele cruza os animais de modo que os malhados e pintados se reproduzem enormemente, tal que seu pagamento é um grande rebanho. Labão e seus filhos intuem que foram passados para trás e se viram contra Jacó. Aproveitando uma oportunidade em que eles estavam fora de casa, Jacó pela segunda vez foge pelo deserto. Agora acompanhado pelas esposas, os filhos e os animais, ele toma o rumo do seu passado e se prepara para reencontrar Esaú.
Os sábios notam que a fuga de Jacó anuncia o Êxodo. O levantar das tendas de Jacó rumo à liberdade, de volta para casa, é uma miniatura do povo rompendo a escravidão e se jogando no deserto. Jacó, porém, é o único patriarca cuja vida contém duas travessias. Ele primeiro se jogou no mundo, apenas para encontrar que tudo lhe era conhecido. A casa de Labão é estranhamente familiar: ela lhe revela a vida do avesso. Jacó saiu de Canaã para encontrar o duplo na Mesopotâmia; ele escapou para poder se olhar no espelho. No entanto, a travessia mais difícil não é a fuga. Como no Êxodo, a aventura mais perigosa é voltar para casa.
Recomendo muito o livro Os judeus e as palavras, do romancista Amós Oz e da historiadora Fania Oz-Salzberger, pai e filha. Como os próprios autores sugerem, o livro também funciona se substituirmos “judeus” por “leitores”. É uma obra curta e bonita sobre as genealogias que construímos com base em textos. Nos textos antigos, eu, você, um comentador do século V e um rabino francês do século XI nos encontramos e nos reconhecemos. Somos ligados pelas histórias que contamos.
Como de costume, esse texto é um mosaico do que aprendi com Robert Alter e com o rabino Jonathan Sacks.
Robert Alter: Robert Alter | Poetry Foundation
Rabino Jonathan Sacks: Welcome to the website of Rabbi Lord Jonathan Sacks (rabbisacks.org)
Sobre o duplo, falei também no meu segundo texto no Substack, sobre Frankenstein: Frankenstein e o monstro, pais e filhos - by Ariela K. (substack.com)