Quando eu era uma adolescente com complexo de espertinha, lembro de ter dito a um professor que não entendia porque as pessoas escolhiam destinos óbvios para viajar. Todo mundo, de alguma forma, já não conhecia Nova York? A cidade já não era tão onipresente na cultura que não era necessário visitá-la para conhecê-la? Lembrei dessa pérola, que por algum motivo curioso ainda retenho na memória, quando terminei de ler Frankenstein, de Mary Shelley. Alguém poderia perguntar: por que ler Frankenstein? Todo mundo já não sabe a história, o tema, os personagens? Como, quase desnecessário dizer, eu não tinha a mínima ideia do que era Nova York, terminei o livro com a impressão de que coletivamente temos uma noção limitada do que é Frankenstein.
Eu comecei a leitura com algumas noções pré-concebidas: que esse é um livro de horror que funda o gênero da ficção científica e cuja mensagem é um cautionary tale sobre os riscos de “brincar de Deus”, os limites da ciência e do conhecimento, essa coisa toda. Naturalmente, há diversas leituras possíveis, e é um mérito de Shelley que o livro se abra para várias interpretações, mas - como a adulta com complexo de espertinha que sou - acho que a leitura mais popular fundamentalmente erra o alvo. Se a gente lê procurando os temas que já pensa que estão lá e são centrais na obra, sem dúvida vamos encontrá-los; é o viés de confirmação em pleno funcionamento. Porém, se seguirmos a jornada emocional que o livro propõe, é improvável que as noções pré-concebidas permaneçam intactas: a história é triste, não assustadora; a ficção científica é a roupagem, mas o conflito central refere-se a relações humanas. Um mal entendido sobre o livro que de fato é revelador é que costumamos chamar a criatura de Frankenstein. Frankenstein é o nome do cientista por trás do experimento; a criatura nunca é nomeada, mas apenas referida com epítetos como “monstro” e “demônio”. Esse erro popular revela um acerto essencial: o nome que cabe de direito à criatura de Frankenstein. Esse é um livro sobre paternidade.
Para começar, vamos ao enredo. Frankenstein não contém apenas uma história, mas duas: a estrutura usa uma narrativa moldura. Walton, um cavalheiro inglês se aventurando no Polo Norte, reconta a estranha história do cientista Frankenstein, que ele resgata em apuros nas geleiras. Assim como Frankenstein, Walton é um homem dedicado às descobertas do mundo natural; ele abandona a família na Inglaterra para seguir, solitário, numa perigosa expedição. Em Frankenstein, Walton encontra um amigo que há tempos estava procurando; diferente dos incultos membros da tripulação, Frankenstein é um suiço estudado e de modos nobres. Assim, a história que chega ao leitor passa por 2 filtros: o de Frankenstein, que a relata para Walton durante a viagem de navio, e o de Walton, que registra a narrativa em cartas para sua irmã. Temos 2 camadas de narradores não confiáveis.
A história que Frankenstein conta é a de que vivia num idílio familiar em Geneva, até que desenvolveu um interesse por alquimia na juventude. Tanto o seu pai quanto um de seus professores universitários menosprezam esses livros de química antiga, o que parece servir de incentivo para que Frankenstein, por despeito, se debruce sobre eles. Aos poucos, Frankenstein perde todo o contato exterior - família, amigos, professores - e se dedica exclusivamente aos seus experimentos. No ápice de sua loucura criativa, ele monta um homem gigante a partir de pedaços de cadáver e o traz à vida. Frankenstein se assusta com o horror de sua criação, abandona o laboratório e só retorna no dia seguinte, quando a criatura desapareceu. O cientista então passa a viver atormentado, mas sem fazer nada de prático a respeito do monstro que deixou à solta. (Uma resenha engraçada no Goodreads comenta que o tema real do livro é a procrastinação; nada de ruim teria acontecido se Frankenstein tivesse lidado de uma vez com as consequências de suas ações, em vez de deixar seus problemas espiralar.)
De fato, o monstro passa a perseguir a família e os amigos de Frankenstein, causando a suas mortes, um a um. Num intervalo da perseguição, Frankenstein e a sua criatura se encontram nos alpes. O monstro pede a chance de relatar sua história a seu criador, e o faz longamente. O monstro fala do abandono no laboratório, da vida retirante que se segue, da rejeição pelos seres humanos. Quando ele localiza a origem do sofrimento no criador que o trouxe à vida para o abandonar, o monstro procura vingança. Diferente do monstro verde com parafuso no pescoço que nos vem à mente, a criatura de Shelley é inteligente, sensível e tem autoconsciência; o monstro sabe que comete atrocidades por raiva e sofre ao fazê-lo. Nesse encontro nos alpes, seu pedido final a Frankenstein é uma companheira; ele promete que, com alguém de sua espécie, ele abandonaria a vingança e viveria isolado dos humanos. Frankenstein inicialmente concorda em produzir uma companheira mas, temendo pela humanidade - apesar de que o monstro nunca faz mal a ninguém fora do círculo do cientista -, ele descumpre a promessa. O monstro, então, termina o massacre. Criador e criatura se caçam até o fim do mundo, no Mar do Norte, onde Frankenstein morre de doença e fadiga. Em uma das cenas mais tristes do livro, o monstro visita o leito de morte do cientista, faz um lamento final e retira-se para também morrer nas geleiras. Walton encerra a narrativa para a sua irmã em uma carta, antes de voltar frustrado em suas ambições para seu país de origem.
Os temas centrais da história são tão claramente delineados no lamento do monstro, e seu sofrimento é tão marcadamente humano, que é difícil acreditar que tantas pessoas inteligentes leram esse livro como um conto sobre os limites da ciência. Primeiro, embora Shelley faça referência a algumas técnicas que na época eram novas, a influência principal sobre Frankenstein é a alquimia, já desacreditada no século XIX como qualquer coisa que não magia. Segundo, essa interpretação subscreve acriticamente a versão de Frankenstein e Walton, dois narradores suspeitos. Frankenstein entende tão pouco do que está se passando que tem o poder para evitar o massacre de sua família, mas não percebe. Walton é um aventureiro fracassado a quem é conveniente retornar à Inglaterra com uma história sobre os riscos da ambição. Mais importante, qual foi a atrocidade da ciência que Frankenstein cometeu, uma afronta tão grande à ordem natural? Ele trouxe uma outra pessoa à vida, a atividade criadora mais essencial dos seres humanos e o primeiro mandamento que consta na Bíblia, no começo do Gênesis: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra”.
Além da feiura do monstro, ele não se comporta como nada que não um ser humano - inclusive na maldade. O que há de mais antinatural na criação de Frankenstein é a geração de um homem sem mãe. Há um antecedente claro para essa ideia, a que o livro se refere textualmente algumas vezes: o poema épico Paraíso Perdido, de John Milton. Mary Shelley, que escreveu Frankenstein aos 19 anos, cresceu numa casa de revolucionários políticos e poetas românticos; a história da Criação que se lia com fervor era a de Milton, não a da Bíblia Hebraica. O Deus de Milton é uma figura masculina que também cria a vida sozinho. Diferente de Frankenstein, porém, ele não a abandona. O Deus de Milton, embora implacável, não recua quando percebe que a sua maior criação é falha; ele faz o homem com o potencial para a queda, mas dá os meios para que ele não caia. Em Paraíso Perdido, Deus cria Eva quando Adão reclama de solidão; ele envia o arcanjo Rafael para avisá-lo que Satã está à solta; mesmo quando tudo falha e o homem é expulso do Éden, Deus pede que o arcanjo Miguel console Adão e lhe mostre o caminho. O projeto de Milton, anunciado no primeiro canto do poema, era estabelecer a inocência de Deus e a culpa de Adão. Mary Shelley faz o oposto com seu Frankenstein: o criador é culpado pelo abandono e portanto responsável pela destruição que o acomete; a criatura nasce com potencial para o bem mas é corrompida pela negligência, maus tratos e solidão.
O tema da paternidade não é estranho ao romantismo. O duplo, ou Doppelgänger, é um dos motivos recorrentes das histórias de horror românticas. Em sua iteração mais simples e direta, um personagem se depara com um outro ser humano que é a exata cópia de si mesmo, um “eu” alternativo. Há vários duplos na literatura do século XIX: “O médico e o monstro” (Stevenson), “O duplo” (Dostoiévski), “O homem de areia” (Hoffmann) , “Willian Wilson” (Poe) e “O retrato de Dorian Gray” (Wilde), entre outros. Na relação tão clara que Shelley estabelece entre seu Frankenstein e Paraíso Perdido, o cientista cria o monstro à sua semelhança, da mesma forma como Deus criou Adão: o monstro é um duplo de Frankenstein. Vale lembrar também qual é o sentido biológico da reprodução. Em “O gene egoísta", Richard Dawkins define a reprodução sexuada como um processo de replicação imperfeita, uma cópia no esquema positivo/negativo, como na fotografia analógica. Do ponto de vista dos genes, cada ser humano é resultado de um processo de cópia parcial de quem veio antes, seguido de mistura genética.
Frankenstein, que criou seu monstro a partir de cadáveres, foi um pai do ponto de vista simbólico. Dawkins também comenta que, na dificuldade de estabelecer uma ascendência clara, o verdadeiro parentesco é menos importante do que a estimativa de parentesco que os animais possam fazer. Frankenstein sabe que, do ponto de vista ético, ele é tão responsável pela criatura que se refere a si mesmo como o autor dos crimes cometidos por ela. No entanto, ele nunca assume o ônus da paternidade. A criação não assustava Frankenstein; ele passa noites em frenesi criativo enquanto o monstro é uma possibilidade de sua imaginação e de sua ambição. Ele foge quando percebe que a sua criação de fato veio à vida e que ele seria responsável por ela. Metade do enredo de “Frankenstein” é literalmente o cientista fugindo de sua criatura, sendo perseguido por ela e se martirizando enquanto evade a sua responsabilidade.
A leitura mais popular de que o erro de Frankenstein seria o da criação, o de brincar de Deus, esquece que o Deus que o monstro e Mary Shelley usam como comparação é a figura paterna de Paraíso Perdido: é o homem que não só dá a vida, mas se responsabiliza por ela. O verdadeiro pecado de Frankenstein é o abandono parental.
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Esse texto foi inspirado pela resenha de Alex Castro:
Frankenstein, um romance sobre masculinidade tóxica | alex castro
Sensacional essa interpretação do livro, nunca li nada igual... Vou ler Frankenstein em um grupo e vamos ter uma live no final do ano e, com certeza, vou levar seu texto para discussão.
E ao contrário da sua afirmação em outro texto que me trouxe aqui, este aqui está genial.