Deixe-a criar, então, um ser humano, um homem,
Deixe-o suportar o jugo!
Que o homem assuma o trabalho penoso dos deuses.
Atrahasis, história mesopotâmica da Criação, Tábua I (1.800 antes da Era Comum)
E disse Deus ao homem: ‘Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida’
Gênesis 3:17, a expulsão de Adão e Eva do Éden (600 AEC)
Não sei você, mas me conforta que as coisas sejam muito antigas. Por exemplo: eu não me dou bem com a minha irmã. Nos meses em que li o Gênesis, encontrei sem querer um consolo. Caim e Abel, Esaú e Jacó, Léa e Raquel, José e os irmãos: quão antigo é o espaço entre nós.
Na semana que passou, por conta de uma newsletter, pensei na nossa relação com o trabalho. O texto de Isadora Sinay contém as nossas frustrações do dia-a-dia: quão melhores não seríamos em nossas atividades se não tivéssemos a louça para lavar, a feira para fazer, a privada para desentupir? Quão mais brilhantes não seríamos caso as tarefas de manutenção da vida fossem delegadas para um terceiro? Nas palavras de Isadora, “existe um lugar em que você só chega quando é libertado de parte da sua vida”. A proposta da autora é que os homens não só saiam do caminho, mas que desempenhem as tarefas de manutenção da vida tradicionalmente delegadas às mulheres. Afinal, Tolstói só conseguiu escrever vários calhamaços pois Sofia Tolstaya estava cuidando de todo o resto.
Temos a esperança de que um dia o trabalho vai desaparecer. Alguém vai criar o mundo por nós: a comida estará comprada e a mesa será posta e a louça será lavada e ninguém nos incomodará a leitura quando o cano da cozinha estourar. Mas o mundo segue precisando ser criado todos os dias. Há dois modelos para evitarmos o trabalho doméstico: o das classes altas, que pagam diretamente pelo serviço, e o da divisão familiar, na qual uma pessoa se responsabiliza pelo sustento financeiro, enquanto à outra cabe o trabalho de criação - dos filhos, da casa. Não há um cenário em que nosso trabalho não seja feito às custas do trabalho dos outros. Não há um cenário em que o trabalho não seja feito. As histórias mais antigas do mundo refletem a frustração de ser uma pessoa, um animal com todas as potencialidades do mundo, e ainda assim estar subordinado às leis da fadiga e da necessidade.
O Atrahasis é um dos mitos de criação que sobreviveram dos povos da Mesopotâmia, berço das primeiras cidades das quais se tem registro. Assim ele explica a criação da humanidade: os deuses menores rebelaram-se contra os deuses maiores, que lhes impunham trabalhos forçados. Para evitar que os deuses menores assassinassem seus algozes, os deuses maiores criaram as pessoas - mistura de argila e sangue divino - para que carregassem o fardo do trabalho. As pessoas existem para que os deuses possam descansar.
Herdeira dos contos mesopotâmicos, a Bíblia Hebraica (Antigo Testamento, para os cristãos) intui um componente de culpa: isso de precisarmos trabalhar só pode ser castigo divino. Adão e Eva estavam vivendo no paraíso, uma vida de contemplação e prazer em meio à natureza, até que Eva caiu no conto da serpente e almejou não só ser feliz, mas também comer da sabedoria da Árvore do Bem e do Mal. Eva foi castigada com as dores do parto; Adão foi destinado a uma vida de trabalho para tirar seu sustento. É curioso notar que há uma versão secular e antropológica para a Queda: Yuval Harari, seguindo Marshall Sahlins, localiza o pior erro humano na transição de tribos caçadoras-coletoras para sociedades urbanas organizadas em torno da agricultura. A humanidade que se atreve a dominar o meio natural e criar a civilização condena - castiga? - a si mesma a uma vida de trabalho.
T. S. Eliot, grande poeta modernista, escreveu sua obra enquanto trabalhava em um banco inglês. Virginia Woolf tentou lhe oferecer uma mesada para que abandonasse o escritório e escrevesse em tempo integral, mas Eliot rejeitou a proposta: o poeta sentia-se à vontade em meio ao trabalho, também ator da vida cotidiana que se propunha a verter em versos. O trabalho era o inconveniente comum a todos, a tarefa que lhe fazia testemunha do real.
Em Um teto todo seu, Virginia Woolf escreve:
E depreende-se dessa imensa literatura moderna de confissão e auto-análise que escrever uma obra de gênio é quase sempre um feito de prodigiosa dificuldade. Tudo se opõe à probabilidade de que ela aflore íntegra e completa à mente do escritor. Em geral, as circunstâncias materiais opõem-se a isso. Os cachorros latem; as pessoas interrompem; o dinheiro tem que ser ganho; a saúde entra em colapso. (...) Uma imprecação, um grito de angústia eleva-se desses livros de análises e confissões. "Poderosos poetas em sua miséria mortos", esse é o fardo de seu canto. Se algo sobrevive a despeito disso tudo, é um milagre, e provavelmente nenhum livro nasce íntegro e sem mutilações tal como foi concebido.
O fardo da humanidade é ser dotada de um potencial infinito da consciência, mas ser feita refém das ninharias da vida material. Toda obra está abaixo de seu potencial, pois teve as marcas de uma vida que precisou ser vivida, de um mundo particular que precisou ser criado todos os dias. Mesmo nossos momentos de descanso conseguimos às custas de outras pessoas que não pararam de estocar os supermercados, de perfurar as redes de esgoto, de fazer a manutenção dos cabos de eletricidade. Sentamo-nos em meio a um universo de trabalho cristalizado: as paredes que subiram por nós, os lençóis que teceram para a gente, as folhas de chá que colheram para um estranho. Somos tributários do suor de terceiros. Quão mais livre não teria sido a vida do pedreiro, talvez falecido, que subiu minhas paredes, sem os inconvenientes da labuta e do cimento? Quão mais longe ele poderia ter sonhado? Todos deixamos nossas obras inacabadas, pois ser uma pessoa vem com as restrições da sobrevivência. Nesse drama muito antigo, que ao menos o pouco que conseguimos fazer seja um ato de serviço.
Bem-vindos a todos que chegaram pelas indicações carinhosas da Bárbara Bom Angelo e da Carolina Ruhman Sandler. Espero que achem aqui algo útil! Eu sou a Ariela, tenho 32 anos e moro em Nova York. Nasci no Mato Grosso e cresci primeiro no interior de São Paulo e depois na capital. Trabalho em escritório e essa newsletter é meu projeto de amor. A cada duas semanas, falo da Bíblia como narrativa, sob a minha perspectiva de judia secular. Nos intervalos do projeto bíblico, escrevo sobre o que me dá na telha. Fiquem à vontade para puxar um papo :)
Lembrei logo da Íris Murdoch, escritora, filósofa, que não fazia nenhum trabalho doméstico nem contratava alguém pra fazer. O banheiro era tão sujo que os amigos que visitavam se recusarem a usá-lo. Ela não se importava, achava tempo desperdiçado qualquer trabalho doméstico.