O espaço entre nós (8/54)
Esse é o oitavo texto do meu projeto bíblico. Sou uma judia secular que acredita na prática do midrash - a atualização das histórias através das gerações. No último texto, falei de espelhos e dos perigos de voltar para casa. Toda interpretação é um reflexo. Essa é a imagem que vi refletida no reencontro entre Esaú e Jacó (parashá Vayishlach, “E ele enviou”, Gênesis 32:4-36:43).
O Gênesis se sustenta sobre dois pilares: a continuidade familiar e a promessa de um lar. O pacto com Deus é de terra, descendência e esperança: a casa de Abraão será uma grande nação. Se não hoje, amanhã. Se não pelas nossas mãos, pelas mãos dos que virão.
A instituição mais importante do Gênesis é a família. Sua narrativa, no entanto, não conhece nada parecido com a paz doméstica. A família é o ambiente em que as pessoas se amam e se machucam, se reencontram e se separam. Antes que o povo sonhasse em lutar contra terceiros para formar uma nação, os embates foram travados no seio familiar. O Gênesis, de Caim e Abel até José e os irmãos, é um épico da convivência. Como pré-condição da existência como povo, os filhos de Israel precisaram aprender a existir como irmãos.
A parashá Vayishlach representa o ápice emocional do Gênesis. O mundano e o sobrenatural fundem-se no reencontro entre Esaú e Jacó. Após vinte anos separados, Jacó toma o rumo de casa, o caminho de volta para o irmão que ele enganou. Durante o período de afastamento, os gêmeos construíram toda uma vida. Jacó retorna para Canaã com duas esposas, duas concubinas, onze filhos e um grande rebanho. Ele envia mensageiros para Esaú, que lhe trazem notícias de que o irmão iniciou o deslocamento para encontrá-lo na companhia de quatrocentos homens, a quantidade padrão de um regimento militar. Desesperado, Jacó divide o seu acampamento em preparação para um ataque. Ele pede que Deus não o abandone, por mais que seja indigno de misericórdia. Por fim, manda comitivas com presentes ao irmão, para que sua ira seja aplacada no caminho. Quando não havia mais nada a fazer e só a noite o separava de Esaú, Jacó se transforma em Israel.
De acordo com o rabino Jonathan Sacks, Jacó cresceu desejando ser outra pessoa. Ele nasceu agarrado aos calcanhares do irmão mais velho; tramou para tomar o que era de Esaú por direito, a primogenitura e a bênção paterna; roubou do pai o amor que sentia que lhe era negado, pois o irmão era o preferido. “Esaú era habilidoso na caça, um homem do campo; Jacó era um homem simples, um morador de tendas. E Isaac amava Esaú, porque apreciava a caça, mas Rebeca amava Jacó”. Quando o pai cego lhe perguntou seu nome antes de conceder a benção, Jacó lhe deu a resposta que estava entalada a vida toda: “Eu sou seu filho, seu primogênito, Esaú”.
Na madrugada que Jacó passa insone, esperando o ataque, a sua luta perpétua ganha concretude: ele combate contra um homem misterioso até o sol raiar. A cena é ambígua e especialmente elíptica, mesmo para os padrões bíblicos. O homem quer ir embora, mas Jacó não o deixa partir antes de receber uma benção. Em um eco da cena com Isaac, a criatura pergunta: “Qual é o seu nome?”. Dessa vez, ele responde: Jacó. O rabino Sacks comenta que é só quando Jacó aceita ser quem ele é, que ele se torna quem poderia ser: seu nome muda para Israel, o pai do povo que luta com os deuses e sobrevive. É também só quando ele aceita não ser Esaú que ele pode encontrar com o irmão em paz.
A manhã nasce e Jacó pode ver os homens de Esaú a distância. Ele coloca as mulheres, as concubinas e os filhos atrás de si, e sete vezes se curva diante do irmão. O inesperado acontece: "Esaú correu ao seu encontro e o abraçou e se lançou em seu pescoço e o beijou, e eles choraram”. Os sobrinhos são apresentados ao tio. Os gêmeos estão finalmente reunidos. E então eles seguem caminhos separados e nunca mais se veem, a não ser no enterro de Isaac.
Gradualmente, a narrativa nos preparou para honrar os espaços que nos separam. No capítulo 26, que divide as histórias da venda da primogenitura e do roubo da benção, Isaac é visto em uma disputa pelo controle de poços d'água. Os hebreus cavam um poço e os filisteus reclamam a propriedade. Eles avançam no território e cavam novamente, mas a situação se repete. Até que os hebreus abrem tal distância em relação aos filisteus que ambos acham espaço para existir: “Agora Deus nos deu espaço para que sejamos frutíferos na terra”. O poço que não é mais objeto de disputa recebe o nome de Rehoboth, ou "espaços abertos”.
Alguns capítulos depois, as fronteiras não são estabelecidas entre tribos diferentes, mas dentro da própria família. Após fugir da casa de Labão, seu tio, Jacó é perseguido no deserto. A paz é selada não com uma reconciliação, mas com o reconhecimento da diferença. Jacó e Labão levantam um pilar que estabelece os limites da jurisdição de cada um: “Que esse pilar que eu coloco entre nós seja testemunha de que não devo ultrapassá-lo para o seu lado, e que não deve ultrapassá-lo para o meu lado, com o propósito de fazer o mal”. Não há registro de que tio e sobrinho tenham cruzado os caminhos um do outro novamente.
Enfim, temos Esaú e Jacó, os gêmeos que brigavam desde o ventre. Rebeca tem uma gravidez conturbada, pois no espaço de um filho, ela carrega duas nações: “Duas nações em seu ventre / Dois povos sairão de ti e se separão”. Sob as tendas dos pais, eles não encontram espaço para existir em harmonia. Após vinte anos, a paz entre Esaú e Jacó não termina em um grande almoço em família. Os irmãos choram o passado, se reconciliam e seguem por caminhos distintos. O jeito que eles acham de conviver é honrar a distância que os separa.
As famílias do Gênesis não são felizes. Há esperança na continuidade - uma geração segue a outra, os pais morrem na expectativa de que os filhos continuarão o trabalho inacabado - mas há também a consciência de que uma genealogia é feita de ramos que se separam. A linha segue inquebrável adiante, sempre adiante, mas nas laterais abrem-se os espaços entre nós.
O espaço entre nós