A resenha negativa é uma arte quase perdida. O mundo literário é pequeno e os tetos são de vidro, então todo lançamento é uma chuva de louros. O novo livro da Tati Bernardi é uma autossociobiografia na tradição de Annie Ernaux e Édouard Louis, os nomes sensação do momento? Boring. O livro está mais para Honoré de Balzac, retratando um bando de remediados que querem ser aceitos nos salões da alta burguesia? Now we are talking.
A resenha negativa começa uma conversa. Ela é a deixa para o mais benigno dos duelos, travado entre as línguas mais afiadas: a rinha literária. Por que um livro é ruim? Por que um livro é bom? Saquem suas espadas de brinquedo. Há sangue de ketchup para derramar.
Meu argumento é que “A boba da corte”, o tal livro novo da Tati Bernardi, é bom, pois tem uma narradora que encapsula perfeitamente as contradições do arrivismo social. Mas, para reconhecê-lo como bom, você tem que fazer o exercício de matar a Bernardi autora, que está dando entrevista de divulgação por aí, e entrar na brincadeira da autoficção. Nesse jogo, vivemos num mundo paralelo em que a lembrança de que há uma Bernardi de carne e osso foi apagada. Só vale a Tati narradora-personagem que ficou na página. Via de regra, ir pra cima do autor é um chute na canela literário - o nome da falta é “ad hominem”. Quando o autor se coloca na página, o personagem está para jogo. Analisar o narrador é chute na bola.
O livro conta a história de Tati, uma mulher que saiu do Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo, e ao longo de vinte anos de trabalho ganhou trânsito na elite paulistana, embora nunca se sinta plenamente adaptada a ela. Nos primeiros dez anos, Tati ganha projeção em redações publicitárias, onde passa a conhecer a elite financeira de perto. Uma vez abandonada a publicidade em favor da escrita, ela se insere na elite intelectual e progressista, a partir da qual narra a história. A estrutura do livro é confessional. Suas cento e poucas páginas vão pulando de caso em caso de forma associativa, sem propriamente um arco ou desenvolvimento de personagem. A voz narrativa é mordaz, amarga e desinteressada em se retratar sob uma luz favorável. Na tendência de livros como “A pediatra”, que rejeitam a identificação fácil e exploram protagonistas desagradáveis, a boba da corte tem desprezo por todos e, talvez principalmente, por si mesma.
Nas regras implícitas da autoficção, Tati e Tati Bernardi não são a mesma pessoa. As histórias contadas são autobiográficas, pero no mucho. A autora tomou liberdades com os eventos, fundiu várias vidas num personagem e aumentou tantos pontos que o conto final é uma versão ficcionalizada da realidade. Meio mentira, meio verdade, a autoficção rompe com o chamado “pacto autobiográfico”, que permite a presunção, numa autobiografia, de que autor e narrador são a mesma pessoa, e de que ela está se esforçando para relatar os fatos.
Quando Roland Barthes assassinou o autor, a autoficção ainda não tinha se estabelecido como gênero literário. Em 1967, no ensaio “A morte do autor”, Barthes defende que, uma vez publicado o livro, vale o que está escrito. Pouco importaria a intenção declarada do autor ou suas minúcias biográficas. Somente ao leitor caberia a interpretação, que é válida contanto que se sustente no que está no papel. A autoficção parece bagunçar a morte metafórica do autor, porque ele está lá, vivinho da silva, se impondo na narração. Mas se o narrador na verdade é o autor ficcionalizado, ele é só mais um personagem. Conta apenas a voz ficcional. Roland Barthes e a Tati-personagem vivem, mas Tati Bernardi está morta.
Nessa toada, dá pra dizer, sem chute na canela, que a Tati de “A boba da corte” dá voz às ambivalências do ódio de classe. A protagonista cresceu achando que o mundo era o Tatuapé, e nesse microcosmo ela era rica. Tati foi uma criança que estudou em colégio particular, viajou para a Disney e foi criada para se sentir superior aos vizinhos da ZL. Quando ela passou a frequentar a zona central, veio o choque: existia uma elite de verdade, e ela a via como suburbana. Tem início a longa relação de Tati com o capital, seja ele financeiro ou cultural. Tati odeia as pessoas que passa a conhecer, mas faz de tudo para emulá-las. Ela se pensa simultaneamente superior às elites, ridículas e hipócritas, mas também se sente inferiorizada por elas. Sua principal arma é o humor autodepreciativo, pois quem se autodeprecia queima a largada do desprezo: antes que o mundo te diminua, você faz o serviço por ele. A ferramenta de poder que Tati domina é a do capital sexual. Ela se diverte transando com seus chefes casados e namorando a aristocracia intelectual da cidade, mas mesmo esse jogo de poder tem sua ambivalência. Tati é simultaneamente a femme fatale e a novinha da firma, o troféu e a vergonha dos poderosos.
Se a São Paulo como conhecermos um dia desaparecesse, o nome de Tati Bernardi fosse apagado e dos escombros restasse apenas “A boba da corte”, ficaria o registro do universo psicológico de uma cidade feita de ascensão e estratificação social. Ao contrário de países mais agressivamente capitalistas, nos quais o dinheiro de todo mundo é verde, o “suburbano” brasileiro emerge financeiramente apenas para descobrir que seu dinheiro não tem pedigree, seu coletinho de Faria Limer é risível e seus hábitos de publicitário são uma ofensa estética aos bem-pensantes. À medida que a pessoa emerge, ela aprende a se enxergar pelos olhos da classe superior. Ela aprende a desprezar a si mesma. A narradora Tati, que escreve a partir da inserção total na elite que a enoja, conta sua história com olhos adotados. O Tatuapé que lhe permitiu viajar para Disney também é o Tatuapé no qual ela lembra de “furar as bolhas de piche do chão recém-asfaltado com os gravetinhos caídos das árvores”. Ambos os Tatuapés existem ao mesmo tempo na cabeça da narradora: o bairro emergente, na fronteira da Zona Leste, que dá morada para famílias solidamente de classe média alta, e o bairro simples, da italianada desbocada, conforme visto de fora pela elite na qual ela se molda.
A ambivalência constante permite que “A boba da corte” seja um ataque cujo golpe nunca é totalmente desferido. Assim como a mãe de Tati era do Tatuapé mas se pensava superior ao Tatuapé, Tati é da elite mas se sente superior à elite, e os resenhistas de Tati Bernardi são da aristocracia intelectual que se pensa superior aos seus pares retratados pela narradora. A recepção positiva ao livro é quase uma extensão do retrato social que ele constrói. O confete é jogado por quem seria o alvo da alfinetada. A elite glorifica a si mesma - afinal, se você ri de si mesmo, não é o mundo que está te fazendo de piada.
A emergente em mim respeita o que a Tati Bernardi construiu para a própria carreira. Um texto sobre construir a própria sorte:
Sobre o mesmo assunto, das colegas de Substack:
Depois de ler o livro, eu acho que a Tati bebeu tanto em Ernaux e no Ed Louis que caiu de bêbada, está de ressaca e todo mundo finge que não viu (tem algo mais da elite paulistana que isso?). Se ela tivesse trazido mais questões sobre o “autodesprezo de uma infância feliz”, ao invés do ernauxriano “não lugar”, seria muito mais interessante. Se ela tivesse trazido mais questões sobre tirar onda da cara da elite, mas ansiar compulsivamente em transformar a filha numa, seria muito mais interessante. Além disso, ela fica contando cada doação, grande ou migalha, que faz — principalmente para os pais — e eu pergunto: tem algo mais da elite paulistana que isso? Para quem, como eu, vive nas margens do interior, tenho um WhatsApp pra mandar pra Tati: você sente que não pertence à elite, mas se comporta como uma — e talvez o humor não te esconda mais disso. Te amo.
Entendo, mas há que se pensar: um livro com um tema interessante, que suscita discussões interessantes, mas muito mal escrito, é um bom livro? Não acho que seja o suficiente. Também li pela polêmica e pra tentar entender como diabos Tati Bernardi poderia ter pretensões de Annie Ernaux. E tive que me esforçar muito pra chegar no final, de tanta raiva do desfile de clichês e da falta de trato com a linguagem.