Lembro da indignação que senti quando ouvi pela primeira vez Sorocaba ser tratada como um bairro distante da cidade de São Paulo. Uma horinha na Rodovia Castelo Branco! A capital logo ali? Na minha cabeça de criança, o caminho entre Sorocaba e São Paulo, que fazíamos quinzenalmente, era uma dos maiores trajetos da minha vida. O sol e a vegetação nos pedregulhos e a voz da Gloria Gaynor. A gente até parava no Frango Assado. (Só agora me ocorreu que os estômagos nunca exigiram que parássemos. Era o ritual do trajeto.)
Há uma beleza especial em estar no meio do caminho. Nem em casa, onde o mundo nos é conhecido, nem no destino, onde se descortina a realidade por trás da expectativa. Em algum lugar, em suspensão, no meio. Onde não somos as pessoas de sempre mas também ainda não somos a versão que descobrimos ao chegar. Onde podemos deixar os pensamentos vagarem, movendo-se sem compromisso, como as árvores que passam pela janela. Onde há alegria até na comida burocrática. (Acho chique não gostar de comida de avião. Uma das maiores alegrias caipiras é o momento do chicken or pasta?)
Com um pouco da mesma indignação, aprendi que Edward Hopper é um pintor da solidão; que, nos espaços de trânsito, deveríamos enxergar o vazio. Talvez o próprio Hopper interpretasse a obra dessa maneira, mas não faz diferença: a gente nunca sabe direito o que está fazendo ou o que vai evocar nos outros. Hopper parece-me o poeta do trajeto. Quando planejamos uma viagem, nossa mente em geral foca no destino, na imagem de cartão-postal. Apoiamos a cabeça na janela e passamos pela loja de conveniência dormindo, quem sabe brevemente esticando as pernas. Não Hopper. Ele nos lembra de manter os olhos abertos para os lugares transitórios. Sob a luz branca, acomodadas no mobiliário comercial, as suas figuras não estão sozinhas. Elas são acompanhadas pelo olhar cúmplice do outro passageiro - o pintor que as estuda, depois o apreciador da obra que as observa - brevemente unidos em fluxo.
Edward Hopper, Compartment C, Car 293, 1938
Edições completas desta newsletter já foram escritas de rodoviárias, de vagões de trem e de terminais de aeroporto. Quando um texto parecia sem saída, salvaram-me algumas palavras rascunhadas no metrô. Durante os momentos de trânsito, em que o corpo está em movimento mas o tempo mental se afrouxa, a nossa voz interna parece falar mais alto. No intervalo entre um passado que deixamos para trás e um futuro que ainda não se revelou, nos autorizamos a deixar a mente vagar no ritmo da paisagem.
Edward Hopper, Gas, 1940
Aprendemos a sermos orientados por objetivos. Mas abra um mapa do Brasil: quanto do território não são caminhos, não são lugares de passagem? Há um país de beiras de estrada e de postos de gasolina e de caminhões no acostamento. Hopper tem a sensibilidade de olhar pela janela e revelar o que é invisível de tão banal. E não é bonita a impressão da noite caindo sobre a estrada, as luzes da rodovia cintilando ainda tímidas?
Edward Hopper, Automat, 1927
Na cidade onde hoje moro, vejo algumas pessoas sentadas em cafés, com uma xícara bonita da mesa, escrevendo em seus computadores. Nunca entendi direito porque escolheram não estar no conforto de suas camas ou sofás. Mas hoje acho que compreendo algo que me foi contado por Hopper e que ecoa por memórias de estrada: são os rituais dos lugares de trânsito, as belezas dos caminhos ainda pelo meio.
A Diletante é uma newsletter semanal. Em semanas alternadas, falo de Bíblia sob uma perspectiva judaica-secular-literária e escrevo ensaios culturais-pessoais. É bom te ter por aqui!
I remember this, in my own way, passing through the 20th century.
https://www.youtube.com/watch?v=FniRLJmi3D4
(Sim, eu estou colocando as leituras em dia hoje hahah)
Mais um assunto que eu vou abordar. Pra mim, durante um tempo, o trânsito foi uma grande angústia. Não sei como vou abordar isso, mas a tua carta me deu ideias. É sempre assim, né? Uma coisa puxa a outra.
<3