Essa newsletter tem um projeto bíblico, escrito sob a perspectiva de uma judia secular. A Bíblia é um monumento cultural coletivo - três mil anos de histórias e interpretações que tecemos com a expectativa de responder à pergunta: como ser uma pessoa? Sigo aqui a divisão estabelecida por Maimônides. O texto desta semana refere-se ao trecho denominado Miketz (“No final”, Gênesis 41:1-44:17).
O Gênesis tem um interesse especial por roupas. Robert Alter, acadêmico de letras hebraicas, elenca-as como um dos temas recorrentes do primeiro livro da Bíblia.
Jacó engana o pai cego ao usar as vestes do irmão. Tamar cobre-se com um véu e se finge de prostituta. Na história de José, o tema aparece três vezes. Ele usa uma túnica adornada, símbolo do favoritismo paterno; quando os irmãos preparam uma emboscada e o vendem como escravo ao Egito, eles molham a túnica em sangue animal e mentem para o pai que o menino foi devorado por uma fera. Anos depois, bem sucedido no Egito, José é novamente traído pelas vestes. Ao falhar em seduzi-lo, a esposa do faraó decide ser mais incisiva e lhe arranca as roupas; José foge de seus aposentos, mas suas roupas abandonadas são usadas como evidência de uma tentativa de estupro. Após cumprir pena na prisão, José é restabelecido com honras à sociedade egípcia graças a sua habilidade de interpretar sonhos. O faraó faz de José algo parecido com um Ministro da Economia, providenciando-lhe também a vestimenta apropriada: trajes de linho fino e um colar de ouro. Em Miketz, um período de seca castiga o Egito e redondezas. Os irmãos de José recorrem ao ministro egípcio para comprar grãos. Sob as vestes da nobreza, eles não reconhecem que estão lidando com o irmão mais novo.
Há um fator comum a esses episódios: as vestimentas são instrumentos de enganação. O rabino Jonathan Sacks nota que há um jogo de palavras. No hebraico escrito, via de regra omitem-se as vogais. Quando deixamos só as consoantes, não há diferença entre as palavras “roupa” e “traição” (בגד). O Gênesis coloca em suspeita aquilo que nos cobre, as camadas que interpomos entre nós e os outros. A verdade não se revela na superfície.
Agora que nos aproximamos do final do Gênesis, temos a oportunidade de olhar no retrovisor e repensar algumas impressões iniciais. No começo do livro, após provarem o fruto proibido, Adão e Eva pela primeira vez percebem-se nus. O conhecimento da Árvore do Bem e do Mal, que representa a saída do idílio e a entrada na civilização, leva-os a se cobrirem. Em uma primeira leitura, em especial para quem tem formação cristã, podemos associar essa atitude ao pudor sexual. No entanto, como já discuti em uma edição passada da newsletter, a Bíblia não foge de temas sexuais. De fato, dada a importância da concepção e a recorrência de estupros, pode-se argumentar que sexualidade e reprodução são uma questão central do Gênesis. À luz do tema das roupas, o episódio entre Adão e Eva adquire outro significado. A perda da inocência acarreta na necessidade de se esconder. O primeiro impulso de Adão e Eva é se cingir com folhas de figueira. Deus então tem pena do casal e faz túnicas de pele para que se vistam. O ser humano civilizado é aquele cuja relação com o outro não é mais desprovida de dissimulação, de disfarce. As pessoas aprenderam a se ocultar.
Em contraposição às aparências enganadoras, o Gênesis insiste em outro sentido humano - a audição. Cada episódio em que os personagens são enganados pela visão, pela superficialidade das roupas, é um exemplo do fracasso em escutar. Deus avisa a Adão e Eva que não comam do fruto da árvore, mas eles não lhe dão ouvidos. Quando Jacó se apresenta como Esaú, Isaac não reconhece a voz do filho mais velho, mas escolhe acreditar em outros sentidos. Tamar só decide se passar por prostituta porque Judá não dá atenção aos seus protestos. Os irmãos de José vendem-o como escravo apesar do menino implorar pela liberdade. A verdade à qual os personagens não dão ouvidos se revelava na interlocução.
As histórias bíblicas pedem a presença do outro. Como diz o crítico literário Erich Auerbach, ao contrário dos épicos homéricos, a Bíblia demanda interpretação. Mas o outro também é necessário por uma questão logística fundamental: antes de terem sido reunidas em livro, as histórias bíblicas eram parte de uma cultura oral. A Bíblia não era lida, ela era ouvida. Ela nasce do encontro entre um contador de histórias e uma comunidade de ouvintes. Os ouvintes aprendem os causos e, no ato de recontá-los, tornam-se eles mesmos narradores e criadores de uma cultura compartilhada.
De acordo com o consenso acadêmico, a Bíblia começou a tomar forma há três mil anos. As histórias que a compõem circulavam boca-a-boca. Em alguns casos, elas eram versões de histórias ainda mais antigas, da forma como Noé e o Dilúvio guardam semelhanças com o Épico de Gilgamesh. Em algum momento entre os anos 1000 e 600 antes da Era Comum, diferentes pessoas passaram a registrá-las por escrito. Foi apenas durante o Exílio Babilônico, em 538 AEC, que um conjunto de editores hebreus combinou as variadas fontes literárias na redação que temos hoje. O estudioso Michael Sugrue entende esse processo como um esforço coletivo de auto-invenção.
Embora a Bíblia Hebraica (conhecida pelos cristãos como Antigo Testamento) não seja propriamente um épico, ela guarda relações com a tradição épica. Sugrue explica que, antes que o conhecimento fosse compartimentado em diversas disciplinas, o épico representava a tentativa de sintetizar toda a visão de mundo de uma sociedade. História, Direito, Biologia - não havia divisão clara. O conhecimento enciclopédico de um povo encontrava vazão em uma única narrativa épica, que articulava o entendimento acumulado sobre o mundo e a condição humana. O meio de disseminação do épico não era o livro, pois as sociedades eram pouco letradas; era o contador de histórias.
Walter Benjamin, uma das grandes mentes do século XX, explora a relação entre cultura oral e sabedoria coletiva. No ensaio “O narrador”, Benjamin contrapõe o contador de histórias tradicional ao romancista moderno. O narrador tradicional é aquele que se alimenta da experiência compartilhada; é o anônimo que reconta o que ouviu e, nesse processo, empresta-lhe novas camadas. A contação de histórias acontece no encontro, não só do narrador com a comunidade de ouvintes, mas também daquele que narra com a linhagem de histórias que o precedeu. Porque o narrador bebe do poço de sabedoria construída coletivamente, ele é alguém que pode dar conselhos. O romancista, por outro lado, é um perplexo. Ele trabalha solitariamente para um leitor que também o encontra na solidão da leitura. O romancista não tem outro alimento que não a própria experiência. Afastado da sabedoria coletiva e isolado no processo de criação, ele não tem conselhos a oferecer; resta-lhe perguntar pelo sentido da vida.
Há coisas que só adquirem sentido com o tempo e com a repetição. Antes de dormir e ao acordar, e também momentos antes de morrer, um judeu observante cobre os olhos e recita o Shemá. Sem a visão para guiá-lo pela superficialidade, sem disfarces para traí-lo, ele repete uma exortação à escuta e uma afirmação de unidade: "Ouça, meu povo / O Sopro de Vida nossa Fonte / Esse Sopro de Vida é Um” (Shema Yisrael Adonai eloheinu Adonai ehad, adaptado da tradução para o inglês da sinagoga Romemu).
Uma leitora me perguntou o que significa dizer que sou uma judia secular. É uma pergunta válida, então vou respondê-la em público. A parte mais fácil é a hereditária: ser judeu significa pertencer antes de tudo a um povo, não a uma religião. Meus bisavós eram judeus, meus avós eram judeus, meus pais são judeus - eu sou judia. A questão “secular” é um pouco mais nuançada. Eu não penso na Bíblia como um livro entregue a Moisés no Monte Sinai. Eu entendo a Bíblia e a tradição judaica como um produto humano, uma magnífica criação coletiva. E isso não diminui em nada o meu respeito e admiração por ambas. Pelo contrário.
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Até a próxima,
Ariela K.
(Uma nota sobre bibliografia: os textos são sempre um mosaico das reflexões suscitadas pelos comentários de Robert Alter e Jonathan Sacks.
Os comentários de Alter estão na versão da Bíblia que ele traduziu: The Hebrew Bible: A Translation with Commentary - Kindle edition by Alter, Robert. Religion & Spirituality Kindle eBooks @ Amazon.com.
O rabino Sacks nos deixou suas prédicas em agregadores de podcast e no seu site: Covenant and Conversation | Parsha of The Week | Rabbi Sacks
O Suegrer é uma descoberta recente. Esse foi o vídeo que usei: The Bible and Western Culture - Part 1 - The Gilgamesh Epic - YouTube )
Oi, Ariela, tudo bem? Cheguei até aqui pela indicação da Aline Valek e já tenho recomendado sua newsletter para todo mundo, rs. Sou revisora de uma editora cristã e admiro demais maneira como você escreve, especialmente esta série sobre a Bíblia, independente da abordagem. Obrigada por compartilhar tanto. :)
Qual nome se dá para quem não é secular, se é que existe apenas uma "oposição' simétrica?