O texto que ri (4/54)
Esse é o quarto texto da minha série sobre a Torá. A parashá da semana é Vayera (“Ele apareceu”, 18:1-22:24), uma das mais absurdas, fascinantes e intrigantes passagens da Bíblia. O trecho começa com a visita de três estranhos à tenda de Abraão, passa pela destruição de Sodoma e Gomorra, a entrega de Sara pela segunda vez como esposa a um governante estrangeiro, o milagre do nascimento de Isaac, a expulsão de Hagar e Ismael, e se encerra com o sacrifício de Isaac. Para receber os próximos textos por e-mail, basta clicar em subscribe:
O tema do riso permeia as histórias dessa semana. Sara ri de Deus quando ele lhe promete um filho após a menopausa. Os genros de Ló riem do sogro quando ele anuncia a destruição de Sodoma e pede que deixem a cidade. Sara dá à luz a Isaac, cujo nome significa “aquele que ri”; uma lactante nonagenária, ela também vira motivo de chacota. Ismael, o filho adolescente da concubina Hagar com Abraão, ri de Sara, que decide pela expulsão de ambos da tribo. Lendo os capítulos 18 a 22 da Bíblia de uma tacada só, porém, é difícil evitar a impressão de que a principal piada é dirigida ao leitor: e aí, o que você vai fazer com esse texto?
Permitam-se uma paráfrase breve desses capítulos. Abraão nota a aproximação de três estranhos e os recebe com hospitalidade. O grupo revela-se formado por Deus e dois anjos. Deus compartilha com Abraão que pretende destruir as cidades da planície. Abraão, mesmo sabendo da perversidade de Sodoma e Gomorra e apesar de toda a obediência demonstrada até então, negocia com Deus a salvação das cidades. Enquanto isso, os anjos da destruição seguem viagem e encontram Ló, sobrinho de Abraão, nos portões de Sodoma. Ló insiste em recebê-los com hospitalidade em sua casa, mas os homens de Sodoma aparecem e demandam que os visitantes sejam entregues para um estupro coletivo. Ló então oferece as próprias filhas para serem estupradas no lugar dos estrangeiros. Os anjos decidem-se pela iniquidade de Sodoma e passam a destruir ambas as cidades com fogo. Ló foge com sua esposa e as duas filhas. A esposa olha para trás durante a fuga e vira uma estátua de sal; suas filhas, pensando-se as únicas mulheres que sobreviveram na Terra, estupram o pai enquanto ele dorme. Abraão vaga por Canaã e estabelece-se em Gerara, onde instrui Sara novamente a dizer que é sua irmã. O rei de Gerara toma Sara para seu harém; como castigo, uma epidemia de impotência sexual recai sobre os homens do reino. O rei confronta Abraão, que, constrangido, revela que não mentiu completamente - Sara é sua meia-irmã, um semi-incesto. Sara é devolvida para Abraão e em seguida concebe Isaac. Agora mãe de um filho legítimo de Abraão, Sara exige a expulsão de Hagar e Ismael. Largados para morrer no deserto, mãe e filho são salvos por um anjo. Abraão é chamado a executar seu outro filho, Isaac, em uma oferenda para Deus. No último instante, Deus evita o sacrifício.
Se isso não fosse a Bíblia, dificilmente esse texto seria lido entre cidadãos de bem e de boa família. Porém, poucos trechos me convencem da sensibilidade da Torá quanto essa sequência brutal de capítulos. Se você fosse compor um texto para fundar uma religião, como você faria? Talvez alguns discursos edificantes; provavelmente alguma linguagem poética, um punhado de heróis ou santos. O que a Torá propõe é que o caminho pela santidade passa por escavar a lama. Os rabinos do Talmud, os místicos da Idade Média, os racionalistas do iluminismo judaico - as pessoas mais pias e mais sábias e mais iluminadas, a elas é dado refletir dia e noite sobre uma trama de estupros e incestos.
Em geral, nós associamos a Bíblia a alguns eufemismos - “conhecer” no sentido bíblico, por exemplo ("Adão conheceu Eva e ela concebeu e deu à luz Caim”). Robert Alter, em sua nova tradução da Bíblia para o inglês, escreve que um dos pecados das traduções existentes é que elas higienizam o hebraico. Alter argumenta que o hebraico antigo é um idioma da concretude, e não da abstração; o texto original evoca imagens associadas ao corpo humano. A linguagem bíblica é menos eufemística do que fomos levados a acreditar. O termo “zera” ou “semente”, Alter nota, é usado insistentemente no texto original, apesar de palavras como “filhos” e "descendência" também existirem em hebraico. Zera tem o significado de semente no sentido biológico, e é usado tanto para plantas quanto para seres humanos - sêmen.
De acordo com o tradutor, as imagens bíblicas perdem a força quando esvaziamos a linguagem de suas conotações ligadas ao mundo natural e à sexualidade. Na introdução, Alter comenta a passagem em que Deus promete descendência a Abraão (“I will greatly bless you and will greatly multiply your seed, as the stars in the heavens and as the sand on the shore of the sea”, Gênesis 22:17):
"(...) subjacente à ideia de um único filho tardio cuja descendência será de incontáveis milhões está uma imagem de semente humana (talvez reforçada pela cor branca compartilhada pelo sêmen e pelas estrelas) espalhada pela vastidão dos céus estrelados e das partículas de areia na costa do mar. Substituir "descendência" por "semente" pode não alterar fundamentalmente o significado, mas diminui a vivacidade da imagem, tornando um pouco mais difícil para os leitores perceberem por que esses textos antigos têm sido tão atraentes ao longo do tempo.”
Essa mesma parashá tem outros exemplos de linguagem explicitamente relativa ao corpo humano e a sexualidade que são higienizadas pela traduções. Quando Deus promete um filho a Sara, o hebraico cita a sua falta de menstruação; quando Sara ri de Deus, ela menciona que não pode ter mais prazer. Na tradução de Alter:
“And Abraham and Sarah were old, advanced in years, Sarah no longer had her woman’s flow. And Sarah laughed inwardly, saying, ‘After being shriveled, shall I have pleasure, and my husband is old?”
Nas principais traduções, a referência a menopausa vira um eufemismo. Na tradução para o português da Bíblia de Jerusalém: “Ora Abraão e Sara eram velhos, de idade avançada, e Sara deixara de ter o que têm as mulheres.”
Quando as filhas de Ló embebedam o pai para engravidarem dele, o Gênesis usa o termo usualmente traduzido como “deitar” (“Vem, façamos nosso pai beber vinho e deitemo-nos com ele”). Aos nossos ouvidos modernos, a escolha de palavras soa como uma suavização pudica em uma história de incesto; em hebraico antigo, porém, a palavra é vulgar, embora não obscena, e tem conotação de estupro, segundo Robert Alter.
A questão linguística seria apenas uma curiosidade se ela não tivesse um impacto profundo na compreensão do texto. A tradição judaica foi construída com base na leitura do texto em hebraico, que não só é explícito em questões de conteúdo, mas direto na forma. A tradição interpretativa cristã é primeiro baseada numa tradução para o grego, a Septuaginta, a qual minha ignorância não me permite comentar, e depois na King James Version, encomendada pela igreja anglicana no século XVII e com doses de poesia e puritanismo que não existem no original.
Essa é uma explicação possível para que o episódio de Sodoma e Gomorra nunca, em nenhuma fonte judaica de relevo, tenha sido associado a homossexualidade antes que os intérpretes cristãos fizessem essa conexão. A sexualidade não é uma questão mal resolvida para os decodificadores hebreus da Bíblia. Em um texto de incestos e haréns e estupros, de sêmen e menstruação e prazer, não cabe a destruição de duas cidades por pecados sexuais. A explicação mais comum na tradição judaica diz que Sodoma e Gomorra foram condenadas por depravação moral.
O capítulo 19 do Gênesis é um espelho do capítulo anterior. No capítulo 18, Abraão encontra os estrangeiros e os recebe com honras. No capítulo seguinte, seu sobrinho Ló repete o gesto. Os homens de Sodoma, ao ameaçar os convidados com um estupro coletivo, atentam contra o respeito ao estrangeiro, o diferente, o que está em posição frágil. Os homens de Sodoma não tem respeito pela alteridade, pela humanidade do outro; estão sendo diretamente comparados a Abraão e Ló, que acolhem e louvam o diferente. A ameaça é de ordem sexual não porque o sexo seja visto pela Torá como especialmente pecaminoso. Pelo contrário, as questões de vida e morte passam pela sexualidade. O drama de Sara é ser infértil. A sexualidade de Sara é usada como escudo por Abraão pelas cidades onde passa, em uma clivagem irônica: o sexo de Sara não serve para reprodução, mas é útil para outros propósitos. Por fim, a risada de Sara não é apenas pela impossibilidade de ter filhos após a menopausa, mas também pela impossibilidade de ter prazer com um marido idoso.
Esse texto antigo ri dos conceitos do leitor moderno. Podemos entender a graça e rir com ele, ou nos escandalizarmos e nos tornarmos a piada.
Referências
A tradução que tenho utilizado é a do Robert Alter, a primeira pessoa a traduzir sozinha a Bíblia de cabo a rabo. Robert Alter é um acadêmico e crítico literário, e esse foi o trabalho de sua vida.
The Hebrew Bible: A Translation with Commentary: Alter, Robert: 9780393292497: Amazon.com: Books
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Michel Gherman, professor de Sociologia da UFRJ, em “O que o judaísmo ensina sobre diversidade”
O QUE O JUDAÍSMO ENSINA SOBRE A DIVERSIDADE | Michel Gherman - YouTube
“Na perspectiva cristã, Sodoma e Gomorra foram destruídas por práticas sexuais entre homens e homens. A homossexualidade é que teria destruído Sodoma e Gomorra. Onde é que isso está escrito? Não é no Tanach (Bíblia). No Tanach está escrito que as cidades foram destruídas porque não havia a possibilidade de construção de uma comunidade naquelas cidades. Não havia a percepção de alteridade. Não tinha a noção de que os outros têm direito a ser quem são. Onde está escrito? No Tanach e no Talmud. Ou seja, a leitura do texto produz o texto. Não há texto em si que seja autônomo, e a leitura pode transformar o texto em outras coisas.”
Todo a vídeo-aula vale muito a pena e recomendo bastante.