Estamos naquela época do ano. Você sabe: a época em que planejamos uma versão aprimorada de nós mesmos, inspirados pelas nossas melhores intenções. A época em que abrimos uma agenda em branco e escrevemos com letra bonita: “Metas 2023”. A época em que fingimos que as coisas estão sob o nosso controle, basta sermos disciplinados, e que a vida não vai nos atravessar com o seu vigor criativo e destrutivo. Afinal, temos um plano.
Eu gosto de planos. Gosto ainda mais de papelaria. Ao escrever esse texto, lembro que ainda não comprei minha agenda Todavia 2023 e logo corrijo o esquecimento. As nossas ilusões são preciosas; também gosto de cultivar as minhas. Mas nem só de frustrações vivem os nossos planos falhos, metas traídas em meados de fevereiro. Quase tudo o que amamos já se beneficiou de um componente de aleatoriedade. As coisas vivas precisam de energia caótica.
A teoria da evolução se baseia em mutações aleatórias. Nossas principais relações são estatisticamente improváveis - no mundo inteiro, entre todas as épocas, termos nos encontrado hoje. Talvez nossas cidades sejam uma excelente metáfora para o que construímos, um exemplo concreto da interação entre o acontecimento planejado e o imprevisto. Tomemos Paris, a cidade das cidades: as fachadas levantadas sobre as edificações caóticas, o planejamento que anuncia a novidade em detrimento de um passado a ser superado, os planos bem intencionados que não se materializam - pra sorte de todos.
Na década de 1850, Napoleão III e o barão de Haussmann traçaram uma meta: Paris se tornaria uma cidade moderna. As vielas se transformariam em boulevards. O caos urbano seria uniformizado em belas fachadas. A cidade das barricadas daria lugar a um espaço navegável pelas autoridades. A resolução modernizadora foi bem-sucedida, consagrando Haussmann como um dos maiores planejadores urbanos do mundo. A visão que temos hoje de Paris é, em boa medida, a realização de seu projeto. Paris tornou-se mais bela, mais saudável (um novo sistema de esgoto prevenia doenças) e mais segura. Metas de aprimoramento: check, check, check.
A nova cidade iluminista, porém, teve suas sombras: a modernização foi imposta com mão pesada. A população que vivia nas regiões renovadas foi empurrada para os subúrbios. A energia caótica que fez de Paris o centro da efervescência europeia foi acalmada em poucos anos. Mas a fervura da cidade voltaria a subir nas aberturas que a fúria planejadora de Haussmann não tinha fechado. Devemos a ele a Paris de cartão-postal, porém devemos a Paris da cultura a todos os ambientes que resistiram à planificação: Quartier Latin, Montmartre, Marais.
Na década de 1920, o arquiteto Le Corbusier almejou se igualar a Haussmann. Le Corbusier tinha aversão às características que uma cidade desenvolve em seus processos dinâmicos e aleatórios. Para ele, uma cidade do século XX seria um espaço racional: linhas retas, arquitetura funcional e divisão estrita de funções entre bairros. Assim como Haussmann, Le Corbusier era um idealista da renovação, um crente no nosso poder - e na desejabilidade - de controlarmos a aleatoriedade dos organismos vivos. Projetista profícuo, ele desenhou diversos planos que não saíram do papel. Entre eles, o Plan Voisin, que colocaria abaixo o 3o e o 4o arrondissements e construiria em seu lugar um complexo para três milhões de habitantes.
Megalomaníaca, idealista, ambiciosa - sua construção seria um feito de planejamento e disciplina como poucos, um verdadeiro milagre urbano. No entanto, quão enorme teria sido a perda. A Paris de Le Corbusier poderia ser qualquer cidade; nada diferenciaria seu traçado da maquete de qualquer outro projeto. Paris seria melhorada até que todas as suas características distintivas fossem apagadas. Ela teria sido aprimorada até a morte.
Estamos naquela época do ano. O que desejar? Talvez que nem todos os planos se realizem, e que a aleatoriedade da vida construa cidades além da nossa imaginação.
Esse foi um texto de amigo secreto para
, da newsletter . O grupo de pessoas que se conheceu através do evento organizou um amigo secreto entre escritores de newsletter. Em vez de um presente tradicional, cada um escreveu um texto para o seu amigo secreto, conectado ao tema de sua newsletter. A Marina já viajou mais de 10 vezes para Paris e escreve uma publicação sobre a cidade. Eu fiquei quebrando a cabeça sobre o que dar para alguém que conhece Paris muito melhor do que eu. Uma anedota pessoal? Uma curiosidade histórica? Acabei pensando na Paris invisível: a cidade imaginária de Le Corbusier, nunca colocada em prática, e os espaços destruídos por Haussmann para dar lugar à Cidade Luz.Alguns dias atrás, recebi de presente um bonito texto da
, da newsletter . Ela respondeu ao meu ensaio "Lendo o mundo como romancista”, no qual parto de uma exasperação com a literatura contemporânea para pensar de onde vem nossas ideias. Será que a conclusão precede a narrativa? Ou seja, chegamos a conclusões lógicas que elaboramos posteriormente em histórias, trazendo à luz narrativas didáticas ou ativistas? Ou será que, com a atenção adequada, as histórias revelam ideias? Ou seja, o olhar do romancista é aquele que apreende as verdades que estão escondidas nas relações sociais, mas que ainda não foram elaboradas em teses sociológicas? No ensaio, uso Tolstói como exemplo de autor que conseguiu pensar além do seu tempo justamente porque seu olhar de romancista o levou muito mais longe do que suas teses explícitas. Em sua resposta, a Ana, uma escritora contemporânea, dá a sua perspectiva do outro lado da página. Ela comenta da dificuldade de escrever o nosso tempo (“Ninguém está em paz escrevendo”) e da necessidade de didatismo para lidar com feridas frescas. Ana aposta, porém, que vem por aí uma literatura contemporânea com mais ambiguidade e menos respostas prontas.Vale ler também a resposta de
à minha carta sobre alimentação ética. Pergunto-lhe: será que avançamos mais como sociedade apostando no vegetarianismo/veganismo ou na diminuição gradual do consumo de carne? Será que há um caminho do meio entre a “pureza” ética e o consumo descuidado? Será que há nuances entre superar completamente nossas inclinações biológicas, animal onívoro que somos, e nos deixarmos conduzir de maneira cega por nossa biologia? A Vanessa responde com um texto que relaciona os direitos das mulheres aos direitos dos animais. Vanessa pergunta: se não podemos violar o corpo de um ser humano, porque poderíamos violar o corpo de um animal? Ela propõe uma conversa pautada pela literatura, pois as histórias são uma excelente maneira de tocarmos em assuntos difíceis.Obrigada pela leitura!
Obrigada por este presente, Ariela. Não conhecia esse projeto do Corbusier, que bom que não deu certo! Que a gente possa aprimorar e planejar apenas o necessário em 23 e abrir espaços pra muitos acasos.
Nossa, que votos lindos para o ano que chega. Amei. Um bom ano pra você ❤️