A tecnologia do silêncio
Os rituais, a etiqueta
O confundir dos termos
silêncio não ausência
de palavras ou música ou mesmo
de sons selvagens
O silêncio pode ser um plano
rigorosamente executado
o plano para uma vida
É uma presença
tem uma história uma forma
Não se deve confundir
com uma outra ausência qualquer
Adrienne Rich, “Cartografias do silêncio, número 3”. Tradução de Ana Gabriela Macedo
Quase nenhuma dica de escrita já me foi útil. Potencialmente boas, provavelmente bem intencionadas, as recomendações me deixam em uma paralisia ansiosa: estou fazendo certo? Mas há uma frase que me volta sempre à memória, no silêncio da página em branco: vá com o que está vivo. A cada duas semanas, eu sigo a trilha do que está vivo para dentro de um texto antigo - esse é o projeto bíblico. No intervalo, depois que assentam os ruídos da semana, eu procuro a coisa sem nome que está viva em mim, e do silêncio interno destaco as palavras.
Na adolescência, lembro das tardes se abrirem vazias, infinitas das possibilidades de não fazer nada. Lembro dessas tardes antes mesmo de me recordar da escola - dos livros que pegava na biblioteca e lia sem obrigação; dos links que seguia de um blog a outro na internet, cada vez mais fundo no buraco do coelho; de um se encontrar que é se perder. Horas inteiras com a minha voz interna e eu, e nessa época ela não me despertava no meio da noite com uma tarefa da qual durante o dia esqueci. Lembro que eu sonhava acordada - quando foi que eu parei? Por todos os lados, soterramos nossa vida com uma camada grossa de palavras. Até que elas fecham o cerco e a nossa voz interna se cala.
(Faltam poucos dias para as eleições e eu não aguento mais ouvir nenhuma opinião; não suporto nem as que passam pela minha própria cabeça. No dia 3 de Outubro, o fim da cacofonia - um minuto de silêncio por nós, o país inteiro uma catedral.)
Os poetas usam a linguagem para levar os leitores à beira do silêncio, escreveu o rabino Arthur Green. “Seja um profeta, ou ao menos um poeta, que sabe como infundir as palavras com silêncio.” Hoje em dia uso podcasts para dormir - os sons dos outros acalentando os meus, os ruídos que não me deixam em paz. Quando abaixamos o volume do mundo, quem somos nós? O que está nos chamando?
No começo, havia o silêncio. Antes que o universo fosse chamado à existência - a luz, a escuridão e até as baleias - dizem os cabalistas que o mundo todo já estava contido na mudez do Alef. Primeira letra do alfabeto hebraico, e também utilizado como o numeral 1, o Alef, sozinho, não tem som de nada. Ele é uma vogal em potência, um espaço, uma abertura. O Hebraico antigo registra apenas as consoantes por escrito; cabe ao leitor preencher as palavras pelo contexto. No Alef, os cabalistas encontraram a metáfora para o silêncio divino, uma forma que não deve se confundir com uma ausência qualquer. No silêncio, somos um em nós e entre os outros: não traímos o intervalo entre intenção e ação e não marcamos a diferença com o interlocutor. O Alef é um.
O Bet, segunda letra do alfabeto e aquela que abre a Bíblia, introduz a dualidade. Deus fala e as coisas se separam em pares: a luz e a escuridão, a terra e o mar, o dia e a noite, criador e criatura. Aquele que rompe o silêncio cria a cisão. O mundo se diferencia e se torna múltiplo, ao custo de esconder a semelhança inicial, a fonte única.
Na pessoa separada de si e do mundo, em um lugar que antecede a linguagem, que antecede mesmo a religião e a crença, os cabalistas afirmam que ainda há um Alef - o Alef de “Ayekah?”, a primeira pergunta, de Deus a Adão: “onde está você?”. É a voz que ouvimos no nosso silêncio, “o espírito animador de toda jornada evolutiva, chamando cada ser humano a participar plenamente dela, cada um à sua maneira distinta”, nas palavras de Green.
Essa madrugada eu acordei de novo.
Silêncio, fale comigo.
Os trechos sobre cabala devem o conteúdo ao livro “Radical Judaism”, de Arthur Green, uma indicação da newsletter de Antônio Xerxenesky, pela qual eu sou muito grata.
´´Lembro que eu sonhava acordada - quando foi que eu parei? Por todos os lados, soterramos nossa vida com uma camada grossa de palavras. Até que elas fecham o cerco e a nossa voz interna se cala.´´ eitaaaaa que tocou aqui ...
Lindo! ❤️