Você verá as Minhas as costas, mas o Meu rosto não será visto.
Êxodo 33:23
Estamos sempre lutando para não esquecer. Ontem uma frase me pareceu tão grande e agora o sentido me escapa: “Se não somos um pouco mais que humanos, somos menos que humanos”. Estava escrita no livro de reza, no serviço da manhã. Diz a lenda que no Shabat recebemos uma alma adicional, que nos deixa ao pôr do sol de sábado. Tento recuperar o que brevemente entendi, mas que me abandonou. Uma lembrança, um rastro de intuição.
Um grande livro nos deixa com a impressão de termos chegado perto de entender alguma coisa - alguma coisa muito importante, que não é enunciada, mas mora no espaço entre as palavras. É a diferença entre passar pela experiência de ler um livro e ler o resumo: você perde o que não está nas palavras, a intuição que o autor, mesmo inconscientemente, tentou capturar. Há um conselho famoso de escrita que diz assim: “não conte, mostre”. Ele funciona no nível mais superficial do estilo, mas falha no essencial. Apesar dos nossos melhores esforços, as histórias já são a tentativa de levantar os véus que nos separam da realidade. Nunca chegamos perto o suficiente. Sentimos que enxergamos algo. Corremos atrás da lembrança. Mas capturamos a realidade no segundo antes dela se mostrar, ou no instante após nos ter dado as costas.
Ficamos com uma versão tola, de senso comum, de algo que na hora nos pareceu uma revelação. “Middlemarch” é incrível porque navega as motivações das escolhas pessoais, as formas como erramos tentando acertar, o modo pelo qual essas escolhas são moldadas e limitadas pelo momento no qual vivemos. Mas há algo maior, que morre um pouquinho enquanto escrevo estas palavras. Knausgaard é bom quando chega perto da textura da vida, do modo como o banal não faz parte da vida - ele é a nossa vida passando por nós. Mas sim, ele está descrevendo a limpeza de um banheiro. A reza é uma súplica para abrirmos uma fresta, um espaço de luz, para a natureza da realidade. Temos que repetir porque esquecemos, porque mal o espaço se abre e ele se fecha de novo - a realidade nos elude. Mas parece que estamos falando com o papai do céu.
Não se trata de incomunicabilidade. A gente escreve e lê e repete apenas porque tem algo a ser comunicado. Não faria sentido se estivéssemos fadados a falhar. Tempos depois da leitura de um livro, a maior parte do enredo nos abandonou, mas resta uma sensação. Fica um rastro, que é a intuição do livro, a razão pela qual ele existe. É o rastro que tentamos capturar, porque a realidade não nos mostra o rosto.
Shabat (1909), Marc Chagall
Cada vez tenho lido menos e escutado mais. Áudio-livro era uma coisa que nunca fez sentido para mim, até que fez. A coisa mais antiga do mundo: uma voz te contando uma história. A Ilíada: as vozes dos guerreiros reunidos em torno na fogueira. O folclore: a conversa durante o trabalho manual. O romance inglês: as mulheres reunidas na sala, o ritmo da narrativa que embala o trabalho de costura. Não carrego mais livros grossos ou tenho momentos com a xícara de chá, cerâmica bonita, para encenar. Hoje arrumei a despensa, de cima de um banquinho, enquanto uma voz me contava a Odisseia. Mais tarde ela vai continuar enquanto faço as minhas próprias unhas e arranco umas pelinhas. O ritmo é mais devagar do que o da leitura silenciosa, e essa também é uma vantagem: entramos no embalo de algo diferente de nós.
Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo, Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade de ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo.
Walter Benjamin, “O narrador”
Participei de uma edição incrível do Bobagens Imperdíveis, podcast de Aline Valek, sobre a Torre de Babel. Uma boa companhia para uma tarde domingo.
Respondi algumas perguntas para a edição “Escutar-te-ei” do Pesquisa Talks, falando sobre confissões. Mais uma newsletter bacana para acompanhar.
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Estou colocando as leituras de newsletters em dia e a tua carta é sempre uma boa surpresa, me faz pensar muito - sobre tudo! Ando numa agonia por não conseguir ler o tanto quanto gostaria e esse texto da paciência, da entrega total à narrativa, me deu um ânimo. Estou lendo Anna Kariênina e acho que era a cadência de um clássico que estava me faltando.
Beijo!
Nossa, senti tanta identificação nesse texto!
Sou das leitoras que esquece o enredo dos livros facilmente. Filmes também. Gosto dessa reminiscência sem nome, que pode vir na forma de incômodo ou abraço, de perguntas ou de calmaria... Não sei se você já leu Freud alguma vez, essa edição me lembrou um dos meus textos preferidos dele, que chama 'recordar, repetir e elaborar'. Vale a tentativa.
beijos.