Prestes a completar 33 anos, posso afirmar com segurança: nenhuma epifania marcou minha transição à fase adulta. Há finais de histórias que já aprendemos a olhar com suspeita, como o “e viveram felizes para sempre”. Mas há estruturas das quais é mais difícil duvidar. O romance de formação, por exemplo, é um gênero literário tão comum que somente agora me ocorreu questionar se ele encontra eco na minha própria experiência.
Nos romances de formação, ou coming-of-age stories, acompanhamos o amadurecimento que leva o protagonista à vida adulta. O pressuposto da estrutura narrativa é que há um ponto de virada existencial, depois do qual o protagonista emerge transformado. Estamos na esfera da epifania, do encontro consigo mesmo, da redenção pessoal. Se quisermos tornar ainda mais explícito o conceito religioso para o qual esses elementos apontam, podemos dizer: estamos na esfera da conversão.
Em Economia, dizemos que há instituições que são “pegajosas” (institutional stickiness). Ou seja, elas tendem a continuar mesmo quando as condições originais que lhe deram origem não estão mais presentes. Podemos pensar também na sobrevivência de nossos modelos narrativos. Quais são os modelos que não sabemos bem de onde vieram, nem mesmo os questionamos, mas que “pegaram” em nossa forma de fazer sentido do mundo? Se penetrarmos a superfície desses modelos, que filosofia encontramos? Que religião? Eles de fato fazem sentido com a nossa experiência de mundo?
A primeira autobiografia de que temos notícia é uma história de conversão. Em 397 EC, Agostinho, recém nomeado bispo de Hipona, escreve “Confissões”. Metade relato pessoal, metade tratado teológico, “Confissões” não foi um livro pensado para revolucionar a literatura. Na verdade, ele atendia necessidades mais prosaicas: estabelecer a identidade cristã de seu autor perante a comunidade e demolir suas antigas crenças, o zoroastrismo e o neoplatonismo. Na época, a porção autobiográfica de sua obra foi lida, mas foi o conteúdo teológico que consagrou Agostinho e o tornou conhecido como um dos pais da Igreja Católica. Apenas no Renascimento, distante dos propósitos iniciais que deram origem às “Confissões”, a obra foi reavaliada por sua originalidade narrativa. O século XIV redescobriu Agostinho como o escritor que ousou contar a própria história em primeira pessoa. A intimidade de seu relato - suas dúvidas e angústias, seguidas pelo encontro de seu caminho pessoal - tornou-se o primeiro modelo de como fazer sentido de uma vida.
As ideias morrem, mas as narrativas são pegajosas. O fervor cristão de Agostinho dificilmente encontraria espaço nas páginas de uma obra contemporânea. Mas, se escavarmos sob as camadas de secularização, ainda encontramos os traços de sua visão de mundo. Os romances de formação não deixam de ser decalques não-religiosos do processo de conversão. Como Agostinho, o protagonista contemporâneo é um jovem perdido. Como Agostinho, ele luta para achar seu lugar no mundo. Como Agostinho, ele vê a luz e encerra a história. A estrutura tem apelo inegável: o arco narrativo satisfatório, a pretensa universalidade, a possibilidade de ser herói da própria história. Com os olhos no retrovisor e um pouco de inventividade, conseguimos reescrever as nossas histórias pessoais à luz da epifania - uma auto-descoberta, um amadurecimento para o mundo. A memória é seletiva e criativa: ela apaga caminhos em falso e inventa causalidades.
A popularidade da estrutura cristã, seja na sua versão religiosa ou secular, é tamanha que por um momento não conseguimos imaginar nada além dela. Travamos. Como é uma narrativa sem superação, sem momento da virada e grand finale? Como fazer sentido da vida senão pela conversão?
A própria ideia de conversão é uma inovação do cristianismo. Antes de seu surgimento, as religiões não tinham a pregação como característica marcante. Na Antiguidade, a crença religiosa era inseparável do pertencimento grupal. Cada cidade egípcia, grega ou romana tinha seus deuses patronos específicos. Quando os antigos romanos anexavam um território, eles levavam consigo as estátuas de seus imperadores, mas não lhes ocorria a ideia de impor a autoridade de seus deuses. As crenças existiam como realidades locais, sem ambições de verdade universal. O judaísmo, religião da qual se origina o cristianismo, tampouco tinha caráter proselitista; até hoje, um rabino rejeita um potencial converso três vezes antes de aceitá-lo. Quais são as estruturas narrativas das sociedades em que a conversão não tinha papel central? Que histórias elas contam sobre o que significa ser uma pessoa?
Para Nietzsche, a grandeza dos gregos estava na percepção do terror existencial. Em “O nascimento da tragédia”, Nietzsche teoriza que a tragédia grega surge do encontro entre as forças apolíneas e dionisíacas - a ordem das imagens dramáticas e o delírio da música. Filha de duas forças irreconciliáveis, a tragédia é o nó que não é desatado; é tensão sem redenção. O protagonista é punido sem motivo aparente, e as mesmas características que o tornam notável causam a sua derrocada. O Édipo que faz o que pode para fugir de uma profecia terrível e sobe na vida por sua inteligência é o mesmo Édipo que mata o pai e casa com a mãe; os seus méritos só o levam cada vez mais próximo do seu destino horroroso. O final da tragédia encontra o protagonista humilhado, em vez de redimido. Para usar as palavras de Nietzsche, ele apreende “a verdade e seus terrores”, compreende o “absurdo da existência" e percebe que “nenhuma ação pessoal pode operar qualquer mudança na condição eterna das coisas”. Nietzsche cita Schopenhauer:
O poder peculiar da tragédia pode ser visto como fruto de nosso súbito reconhecimento de que a vida falha em fornecer quaisquer satisfações verdadeiras e, portanto, não merece nossa lealdade. A tragédia nos conduz ao objetivo final, que é a resignação.
Nietzsche argumenta que, em seu auge, a narrativa grega é pessimista; ele chega ao ponto de lamentar a sua morte gradual por conta da introdução de uma sensibilidade otimista. A glória da tragédia seria terminar num final que não é uma saída. O protagonista corre apenas para, no fim da rua, se deparar com um muro. Ele não pode galgá-lo. Resta-lhe apenas se virar e contemplar a fera antes do bote.
Enquanto a tragédia grega tem uma conclusão que não é satisfatória, a narrativa judaica é caracterizada pela ausência de fim. É como se a história não fosse levada ao desfecho, mas simplesmente abandonada. Deixada por escrever. Mesmo a Bíblia, em sua versão hebraica, não tem uma conclusão. Quando os cristãos anexaram o Novo Testamento à Bíblia Hebraica, eles desenharam um arco narrativo que não existia: do Gênesis ao Apocalipse. A Bíblia Hebraica acaba em Crônicas, um final que não é exatamente um estouro. Mesmo o Pentateuco é uma jornada sem fim: Moisés morre antes de chegar no destino final.
Dara Horn, doutora em literatura iídiche e hebraica, escreve sobre o significado deliberado da ausência de fim. Sob uma perspectiva religiosa, para o judaísmo, a história não chegou ao final. Nós vivemos num mundo quebrado que ainda não foi redimido. A diferença de sensibilidade não é fortuita: as estruturas narrativas judaica e cristã divergem no ponto nevrálgico que causou a cisma religiosa. Quem continua judeu é aquele que acredita que o mundo ainda não foi salvo. O sentido não está dado. Ainda vamos escrever o próximo capítulo.
Assim como a história cristã vem nas roupagens religiosa e secular, Dara Horn navega pelas histórias judaicas contadas por seus inúmeros narradores: Franz Kafka, S. Y. Agnon (Nobel de 1966), Isaac Bashevis Singer (Nobel de 1978), A. B. Yehoshua, entre tantos outros. Foi em sua lista de narradores que reencontrei Tevye, o leiteiro, personagem de Scholem Aleichem. Os causos de Tevye foram adaptados para a Broadway e para o cinema sob o título de “O violinista no telhado”, um dos filmes mais legais do mundo. Os eventos acontecem com Tevye, mas ele nunca muda. Tevye não tem um ponto de virada. Ele não conta uma história de amadurecimento. Em vez disso, Horn diz que “ele apenas continua resistindo, o que parece dolorosamente realista. Seu grande poder é que ele permanece exatamente quem ele sempre foi”.
Eu não me reconheço nos romances de formação, com as seus finais redentores e suas certezas de sentido. Não tenho fé em momentos de virada. Nunca passei por algo parecido com uma conversão. Mas eu posso me imaginar como um capítulo numa história ainda sem fim.
Histórias com finais definitivos não refletem necessariamente a crença de que o mundo faz sentido, mas refletem a crença no poder da arte de dar sentido a ele. O que se encontra na narrativa judaica, no entanto, é algo diferente: uma espécie de realismo que vem da humildade, do conhecimento de que não se pode ser fiel à experiência humana enquanto se finge entender o mundo. São histórias sem conclusões, mas cheias de resistência e resiliência. Elas são sobre limitações humanas, o que significa que as histórias não são finais, mas começos, o começo da busca por significado e não o final - e o poder da resiliência e da resistência para levar alguém na busca por esse significado.
Dara Horn, em “People Love Dead Jews”
No tema das histórias sem fim, recomendo muito o podcast do Doug Metzger, o Literature and History. Se você não é do podcast, pode encontrar as transcrições aqui. Os últimos dois episódios são sobre “Confissões”, de Agostinho. O Doug tem como projeto falar de literatura inglesa. Por isso, ele começou do início da literatura ocidental, na Mesopotâmia, e está numa trajetória que se estende indefinidamente. O podcast chegou ao centésimo episódio e o Doug ainda está no século IV.
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Essa aula do Thiago Blumenthal sobre o judaísmo em Kafka é muito interessante. Gosto da ideia de um texto que é judaico em sua sensibilidade sem nunca se colocar como “literatura judaica”. Assim como Chagall fez na pintura, Kafka apaga as pegadas judaicas da sua obra e entra no cânone como um artista universal.
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O Afinidades Eletivas é um podcast de poucos episódios, que vale ouvir curtindo também aos poucos. Em uma das primeiras gravações, o Thiago Blumenthal e a Juliana de Albuquerque recebem a Thais Lancman para falar de Saul Bellow sob perspectiva judaica.
Obrigada por ler!
Não acho que consumi tantos romances de formação assim, e o meu exemplo favorito e supremo nem é ocidental (A Viagem de Chihiro), então talvez seja por isso que eu não enxergo isso como "uma conversão que é um momento de epifania". Eu penso que toda história é um recorte (especialmente a modalidade narrativa de histórias que tem começo e fim) enquanto a vida é um todo e é contínua. É claro que na nossa vida nunca vai ter um "final" porque ela ainda está em andamento... mas eu reconheço coisas que eu aprendi ao longo dos últimos cinco, dez, quinze, vinte anos... e se eu fosse transformar isso num livro de 300 páginas eu saberia colocar um começo, alguns episódios que forma úteis nesse crescimento, e um fim.Às vezes tem um relapso (daí a gente escreve a seuqencia, faz o filme 2). Em outros aspectos da minha vida eu sinto que continuo tão perdida e sem respostas quanto no dia que nasci, mas é isso: aspectos. Recortes. Nessa versão resumida e contada em retrocesso, quinze anos de experiência de vida ficam mesmo parecendo um momento de epifânia
"A memória é seletiva e criativa: ela apaga caminhos em falso e inventa causalidades".
que belo e profundo! que sejamos abraçados por esse grande devir que é a vida 💜