Eu sei que não é de bom tom gostar de Karl Ove Knausgård. Para começar, ele escreve autoficção - pausa para o primeiro rolar de olhos. Não contente, num mundo em que agora há livros de pessoas trans argentinas, mulheres negras dos EUA e indígenas imortais do Brasil, Karl Ove - somos íntimos - escreveu 3.600 páginas sobre a única vida que ele tem para viver: a de um homem branco, heterossexual, norueguês, que lutou a vida toda para realizar suas ambições literárias. Se os seus olhos ainda não pularam das órbitas, saiba que corre à boca pequena que o meio literário norueguês o despreza, e de quebra o círculo sueco também. Mesmo assim, num mundo em que eu nunca li direito Proust ou Tchekhov ou Ibsen, estou pensando se vale a pena reler o meu amigo Karl Ove.
“O que estou fazendo com a minha vida?” é uma pergunta que vem à cabeça. No primeiro livro da série Minha Luta (blink, blink), Knausgård leva umas 300 páginas para descrever a noite de Ano Novo, durante a adolescência, que passou procurando bebida com o melhor amigo. Corte de uns 15 anos: Knausgård está escrevendo, agora numas 200 páginas, sobre o dia que gastou limpando a casa na qual o pai bebeu até morrer. Quando penso no livro, na névoa de memória em que desaparecem o enredo e o nome dos personagens, e que vai me fazer passar por idiota assim que me perguntarem sobre um tomo que li anos atrás, resta a lembrança de um Karl Ove esfregando a privada da casa do pai. Como era a impressão de estar naquele banheiro, como era o sentimento de saber que o pai havia morrido uma semana antes no andar de cima, como eram os cheiros e os sons e as texturas: Knausgård investe centenas de páginas para resgatar uma atmosfera específica, uma sensação que ficou cristalizada na memória. No caminho, ele te abre os olhos para o que significa viver uma vida.
Por natureza, talvez também por experiência, suspeito dos grandes momentos. Em Autobiografia: o mundo de ontem, Stefan Zweig fala que a memória é uma força que ordena cientemente e exclui com sabedoria. Todos os momentos grandes e ruins, realmente grandes e ruins, eu esqueci, e a tentativa de recuperá-los é um exercício de ficção. Do enterro do meu pai, me restam duas ou três imagens na memória, e a tarefa de juntá-las numa história coerente é como preencher os buracos de um álbum de família. Isso que tenho na cabeça: estou mesmo lembrando ou inventei com base em meia dúzia de fotografias?
Eu lembro, porém, da atmosfera da noite em que recebi o telefonema, e eu também precisaria de umas 300 páginas para que ela fosse comunicável. Como era a sensação de uma noite de domingo, antes da semana de trabalho, com uma só lâmpada acesa e a TV ligada no Discovery Home & Health; as barrinhas de granola assando no forno, que eu esqueci e deixei queimar; a voz que chegou de uma distância de 17 anos e não era a voz de um parente de sangue, e o que significava que a voz que pegou o telefone para me ligar, doze horas depois do corpo morto, não era de nenhum parente de sangue. Toda a história da minha vida até aquele dia está no cheiro da granola incinerada.
Os momentos felizes também são suspeitos. Agora que me filiei ao clube das mães, curto com entusiasmo as fotos dos filhos alheios nas mídias sociais. No linguajar materno que habita as legendas, há algo chamado core memories - assim mesmo, em inglês, porque colonizado é mais gostoso. (Tolstói começa Guerra e Paz com um diálogo da alta sociedade russa em francês, não porque era bonito, mas porque era verdade. A lembrança dos dias de hoje também vai guardar que a gente falava core memories, em vez de um traduzido memórias centrais, e que aí está um fragmento de verdade sobre o nosso momento cultural.) Nas core memories, depositamos nossa esperança de que serão dos momentos meticulosamente planejados que nossos filhos irão se lembrar: as viagens para as quais economizamos, os passeios que inventamos, os eventos para os quais compramos roupas novas. Mas há um inconveniente: nas viagens, as filas são longas; nos passeios, cadê o bendito do ingresso, entra no e-mail pra ver se tem a cópia, opa, não tem Wi-Fi; nas festinhas, na verdade você teve uma briga horrorosa no dia anterior, e agora o bolo caseiro tem cobertura de uma felicidade artificial. Quando lembro da minha própria infância, os grandes momentos retornam com algum esforço. Volta à consciência primeiro o banal, o que eu vivi sem saber que era importante, o gosto de bolacha recheada e de cloro de piscina na boca.
Em algum lugar que perdi, e que agora resiste às minhas buscas no Google, li que Knausgård opera um milagre da visão: eles nos ensina a enxergar melhor. A atmosfera do banal - é disso que uma vida é feita. Pode soar deprimente, mas a descrição minuciosa de Knausgård faz parecer um épico: esse momento comum, que você vivia enquanto esperava coisas maiores; esse momento ordinário do qual você não pensava que ia lembrar enquanto passava por ele, é esse o material da memória, é isso que terá sido a sua vida quando você fechar os olhos, é a sensação de uma tarde normal no seu quarto que terá sido a sua adolescência.
Ontem minha bebê fez três meses. Acho que não passei por nada do que as pessoas associam ao puerpério. Não fiquei triste ou ansiosa ou mesmo absurdamente cansada, um oferecimento de alguns anos já habituada à insônia. Posso mesmo dizer: fui muito feliz. O que tive, sim, foram ondas de sentimentos nos extremos de qualquer escala. Todos os dias desses três meses se misturam e se transformam numa massa indistinta. Do que eu vou lembrar? O que fiz da minha vida? Numa madrugada, sentei na mesa da sala para bombear leite dos peitos. Eu e a Liora ainda estávamos aprendendo esse negócio de pertencer à espécie dos mamíferos. Deixei a luminária principal apagada. Dos eletrônicos desligados, vinha uma luz fraca e azulada. Foi quando quebrou em mim a onda: esses seriam para sempre os dias depois do nascimento da minha primeira filha, esse será para sempre o apartamento para o qual viemos depois do hospital, isso que estava acontecendo diante de mim era a minha vida. É ruim gostar de Karl Ove porque você tem que explicar o sentimento enorme que é lembrar do banal: isso aí que está acontecendo agora com você, seja o que for, essa atmosfera e essa textura, isso aí é a sua vida, é a sua única vida.
Há figuras da internet que acompanho faz muitos anos. Algumas pararam de escrever textos mais longos e preciso me conformar com uns míseros tweets. Fico pensando no que elas escreveriam, se ainda publicassem. Outras ainda escrevem, uma década depois, e eu que acabei não as lendo mais. A Haley Nahman escrevia no falecido blog Man Repeller, que virou site sério, caiu em desgraça e fechou. Perdi a conexão com os textos da Haley faz algum tempo. Ela, porém, teve bebê alguns meses antes de mim, no mesmo hospital, e isso nos fez amigas de novo. Espero que as estatísticas do Substack não revelem que uma louca ouviu os três minutos finais desse podcast, uma vez atrás da outra, e chorou feito uma desgraçada, durante mais madrugadas que convém confessar:
I also feel this sense of adventure about life, that I really don’t think I had, or I think that I got jaded out of as I was getting older… I just feel like the world is so big suddenly, and seeing it through her eyes, so excited… Sometimes I just think about all the things in life that I love that I am so excited to show her. She doesn’t know about ice cream, she doesn't know about dogs or feeding ducks. She doesn't know about chocolate, she doesn't know about the holidays, she doesn't know about seasons, she doesn't know about hugging, or holding hands, or swimming, or the ocean. I get so excited that there is so much to show her and it makes me re-excited about the world.
Que delícia que você voltou e nós brindou com esse texto super inspirado.
Feliz com seu retorno e bem vinda ao clube materno, ele é caótico, mas cheio de inspirações.