Essa newsletter tem um projeto bíblico, escrito sob a perspectiva de uma judia secular. Uma antologia de três mil anos, a Bíblia guarda algumas das histórias mais poderosas que já contamos, a julgar pela quantidade de pessoas que insistem em recontá-las. Eu sou uma dessas pessoas. Sigo aqui a divisão estabelecida por Maimônides. O texto desta semana refere-se ao trecho denominado Vayigash (“E ele se aproximou”, Gênesis 44:18-47:27).
As mentiras que contamos podem ser mais restauradoras que a verdade. Monumento datado da Era Obama, Hamilton estourou nas bilheterias ao articular uma versão imaginária da Revolução Americana: saem de cena as figuras históricas que possuíam escravos; entra no palco um elenco de negros e latinos. Hoje a peça é criticada por falsificar a realidade histórica do racismo. De fato, Hamilton não é fiel aos fatos - ele reconta a História com o propósito de atualizar o sonho americano, que, como todas as aspirações, é uma verdade que só existe no planos das ideias. Hamilton ficcionaliza a História para revelar outro mundo possível.
Na edição passada da série bíblica, comentei que a Bíblia faz parte de uma tradição oral; falei que suas histórias pedem que sejam ouvidas e recontadas. Nesta edição, argumentarei que o ato de recontar, de atualizar e ressignificar, é estrutural da narrativa.
A leitura da Bíblia pode ser repetitiva. Não raro, a matéria narrada é rearticulada em seguida na voz de um personagem diferente. É um exercício interessante identificar todas as ocasiões em que isso acontece no Gênesis. Uma quantidade substancial de estudiosos, antigos e modernos, dedicou-se a analisar as mudanças às quais a história é submetida quando recontada dentro da própria narrativa.
O exemplo mais engraçado acontece no capítulo 18. Abraão recebe três homens em sua tenda, que ele não sabe serem Deus e dois anjos. Sob disfarce, Deus promete um filho a Sara, que ri da possibilidade de dar à luz após a menopausa.
Os homens perguntaram a Abraão: “Onde está Sara, sua esposa?”. E ele respondeu: “Ali, na tenda”. E ele disse: “Eu retornarei a você nesta mesma estação e Sara, sua esposa, conceberá um filho”, e Sara estava ouvindo por trás da tenda. E Abraão e Sara eram velhos, avançados em anos, Sara não tinha mais seu fluxo de mulher. E Sara riu consigo mesma, dizendo: "Após estar enrugada, terei prazer, e meu marido é velho?". E Deus falou para a Abraão: “Por que Sara riu, dizendo “Darei mesmo à luz, velha como sou?”.
O estudioso Robert Alter nota quanto da história se revela na variação entre repetições. Primeiro, o narrador neutro afirma os fatos biológicos da idade do casal e da impossibilidade de terem filhos. Em seu monólogo interior, Sara repete a informação sob sua perspectiva corporal: como ela terá prazer nesse corpo idoso? A última parte de seu pensamento beira à reclamação conjugal: como esperar prazer, ou um filho, de um marido tão velho? Ao relatar a Abraão o que se passou na cabeça de Sara, Deus edita tanto a parte que se refere ao corpo enrugado, não exatamente afrodisíaco para o ato de concepção, quanto a reclamação em relação ao marido. Observando esse trecho, o Talmud eleva a mentira branca à condição de lei judaica: “Grande é a paz, pois em nome dela, até Deus modifica a verdade” (Yevamot 65b).
Outro exemplo interessante ocorre entre Jacó e as esposas Léa e Raquel. Quando Jacó decide sair da casa do sogro, Labão, para retornar à sua terra, ele negocia um acordo pelo qual levaria consigo apenas os animais com características recessivas - as ovelhas escuras e as cabras pintadas. O texto bíblico explica então em detalhe (Gênesis 30:35-44) o modo como Jacó utiliza seus conhecimentos de criador de animais para aumentar o rebanho que lhe caberia. A reprodução excepcional das ovelhas escuras não passa despercebida por Labão e seus filhos homens, que se indispõem contra Jacó. Percebendo que a maré virou, Jacó chama as esposas para explicar a necessidade da fuga para Canaã. Jacó repete longamente a história das ovelhas (Gênesis 31:1-14), que a audiência tinha acabado de conhecer, mas com uma diferença essencial: Jacó, o enganador, omite seu estratagema. Diante das esposas, ele atribui a reprodução dos seus animais à vontade divina.
Na reta final do Gênesis, a prática de recontar e reavaliar as histórias adquire papel central. O ápice emocional da história de José suporta-se por dois atos de reinterpretação radical.
Primeiro, um lembrete rápido da história de José. Ele é o filho mais velho de Jacó com Raquel, sua esposa preferida, que morreu no parto de Benjamim; entre os doze filhos, José é o favorito do pai. Quando adolescente, José tem a falta de juízo de contar aos irmãos seus sonhos de grandeza, nos quais os irmãos se curvam perante a ele. Em determinado momento, até Jacó se aborrece com o filho, e pergunta a ele se o pai também deveria lhe prestar honrarias. Um dia, Jacó envia José para pastorear ovelhas com os irmãos mais velhos. Eles se aproveitam da oportunidade, emboscam José e o vendem como escravo ao Egito. Por uma combinação de sorte e talento, José chega ao topo da hierarquia egípcia. Vinte e dois anos se passaram. José é o equivalente a um Ministro da Economia e controla toda a oferta de trigo da região. Uma seca aguda força os hebreus a negociarem a compra de suprimentos com o Egito. Os irmãos se reencontram - José sabe que está lidando com a própria família, enquanto os dez irmãos não desconfiam que o Ministro e o adolescente que venderam como escravo são a mesma pessoa.
Ainda escondendo sua identidade, José testa os irmãos. Ele arma uma emboscada para atribuir a Benjamim, seu único irmão por parte de pai e de mãe, um crime que ele não cometeu, e assim poder tomá-lo como escravo; José quer observar se os irmãos vão repetir com Benjamim o ato de covardia de vinte anos antes. Então, Judá, o pior dos irmãos, a pessoa que imaginou o plano para se livrar de José, implora por Benjamim e se oferece como escravo em seu lugar. Judá fala que o pai não aguentaria mais essa dor, que ele já havia perdido o favorito e não suportaria perder o segundo filho de Raquel. José então desmorona e se revela aos irmãos.
Por que José perde o controle e desaba em choro? Naturalmente, a redenção de Judá é uma cena tocante. Mas o rabino Jonathan Sacks aponta também um outro caminho: José percebe que passou vinte e dois anos contando a si mesmo a história errada.
Como segundo homem mais poderoso do Egito, ele poderia ter procurado Jacó, o pai que amava, o pai que ele nunca deixou de amar. A primeira pergunta que José faz após revelar sua identidade é: “Meu pai está vivo?”. José nunca deixou de pensar no pai. Ele não o procurou pois, por vinte e dois anos, ele remoeu a possibilidade do pai ter participado na trama de sua venda como escravo. Afinal, o pai também condenou seus sonhos de grandeza; afinal, foi o pai que lhe enviou para seguir os irmãos no deserto, os irmãos que ele sabia que o odiavam. José desaba porque passara a vida afligindo-se com uma mentira. Jacó o amava, Jacó sempre o amou, Jacó ainda estava enlutado por sua perda.
Naquele momento, José reescreve a sua história pessoal. Em seguida, em um ato de vontade, ele também reescreve a história dos irmãos. Ele pede que os irmãos não se envergonhem, pois o mal que fizeram foi para o bem. José oferece uma ficção redentora em nome da paz.
Eu sou José, seu irmão, que vocês venderam ao Egito. Mas agora não se aflijam ou se entristeçam por terem me vendido para cá, pois foi para preservar nossas vidas que Deus me enviou antes de vocês. Há dois anos a fome se instalou na terra, e ainda haverá cinco anos sem semeadura e sem colheita. E Deus me enviou antes de vocês para preservar as suas vidas e para que sejam um grupo de sobreviventes. Então, não foram vocês que me enviaram aqui, mas Deus, e ele me estabeleceu como um pai para o faraó e senhor de sua casa e governador de todas as terras do Egito.
A Bíblia não é só um texto que implora por explicação; ela constantemente articula o ato de recontagem e reinterpretação dentro da própria trama. As possibilidades estão abertas. Recontar é inventar um novo caminho.
Não podemos mudar o passado, mas podemos fazê-lo maior ao reinterpretá-lo; podemos transformá-lo na promessa de algo mais bonito. José, o intérprete de sonhos, liberta-se do passado ao ressignificá-lo radicalmente: de vítima de uma injustiça, ele se torna um salvador; de algozes, seus irmãos convertem-se em instrumentos de um plano de sobrevivência. A Constituição americana não foi pensada para todas as pessoas; mas, como em Hamilton, ela pode ser elevada a um patamar que nem os pais fundadores cogitaram almejar. Em nosso país, o maior importador de escravos da História mundial, talvez ainda haja um conto de vitória e redenção a ser narrado. Um conto no qual o passado é apenas o prelúdio de um outro mundo possível.
Hamilton
Lindo texto Ariela, e mostra que a reimaginacao de Hamilton é também uma forma de incluir na história aqueles que eram apenas vistos como decoração na história contada por quem estava na posição de poder.
Esse veio muito inspirado! Lindo