Ando de mau humor intelectual. Não gostei dos últimos romances que li. Acho simpático que o autor permita que o leitor tenha algo a descobrir, um componente que se revela na trama e nos personagens, mas calhei de ler uma sequência de obras que não se contentam a dar uma piscadela marota para o leitor, seu cúmplice; professorinhas dedicadas, elas vão para a lousa e desenham a ironia, a crítica social, em torno da qual a narrativa foi cuidadosamente lapidada. No pós-eleição, meu ânimo não está melhor com os comentaristas políticos. Não há demérito em olhar a realidade com certo espanto - na maior parte do tempo, eu também não estou entendendo nada. Mas sinto que, no mundo da opinião imediata, a análise precede a observação. O comentarista se vê encaixando os pedaços da realidade, que se desenrola ao vivo, nos moldes das opiniões que ele já formulou.
Para o meu tratamento auto-prescrito, tirei da estante um livro antiguinho e fora de moda, que sequer tem tradução para o português: “Daniel Deronda”, de George Eliot. A autora é uma velha-nova amiga: li a sua principal obra, “Middlemarch”, esse ano, mas já temos a intimidade que só carregar um tomo de 800 páginas para cima e para baixo, por semanas, pode despertar. Eliot é pseudônimo de Mary Ann Evans (1919-1880), uma das maiores romancistas de língua inglesa. Em “Middlemarch”, ela crava a tese do livro às claras, logo nas primeiras páginas, e ainda assim não atiça o mau humor que tem me acompanhado. Na verdade, tudo que sai de suas palavras me parece infinitamente perspicaz. Por que?
Eliot foi uma precursora do romance psicológico. Seus narradores em terceira pessoa navegam entre os personagens com a sabedoria de quem já viu tudo, já sentiu tudo. A autora não tinha apenas um olhar sensível para a realidade - ela pertencia ao círculo dos maiores pensadores do país, como John Stuart Mill, Herbert Spencer e Thomas Huxley - como também enxergava o indivíduo dentro da trama social. O que motiva as pessoas? Como elas interpretam a vida? Como a sua posição social condiciona a sua liberdade de ação? Eliot começa o livro com uma tese, e certamente ela chega ao romance com uma bagagem de ideias e pressupostos, mas a impressão que fica é de que ela entendia mesmo não de política, não de filosofia, não de sociologia, mas da matéria da qual elas são feitas - das pessoas. Eliot não encaixa o seus personagens na tese; ela deixa as explicações emergirem da relação entre as pessoas.
Não é incomum que o olhar de romancista revele a realidade antes que as ideias acompanhem. Tolstói, por exemplo, geralmente é retratado como um autor mais inteligente que suas opiniões. Ele se sentou para escrever um romance didático sobre casamento - o fracasso da união de Anna Kariênina, mulher adúltera, e o sucesso matrimonial de Kitty, inspirada em sua própria esposa. Tolstói acabou com um romance proto-feminista em mãos. Como escreve Juliana Cunha:
Em sua obra, a rachadura entre intenção e gesto que aparece em tantos autores está mais para um dano estrutural. Ele não faz o que anuncia, não faz o que queria fazer. No projeto do escritor, “Anna Kariênina” seria uma advertência ao adultério, uma versão russa e moralizante de “Madame Bovary”, publicado duas décadas antes. O resultado, no entanto, é bem mais dúbio.
Em sua dedicação à personagem, Tolstói é maior como romancista do que como moralista. Ele enxerga a complexidade psicológica e social por trás do cautionary tale, e Anna Kariênina emerge como uma heroína improvável. Sabendo o que se passou com Anna, quem pode julgá-la sem uma pontada de dúvida, sem um pouco de piedade? Quem, de consciência limpa, pode dizer que era culpada?
Juliana Cunha tem o cuidado dos acadêmicos e evita o anacronismo de classificar “Anna Kariênina” como um romance feminsita:
Seria doido classificar “Anna Kariênina” como um romance feminista — como uma defesa do ingresso da mulher aristocrata russa no mercado de trabalho em pleno 1877, quando nem as francesas de classe média trabalhavam e nenhuma europeia tinha direito ao voto.
Mas a grande romancista talvez seja a pessoa que está justamente um passo adiante da ideia. Ela captura a realidade que já está nas relações humanas antes que as explicações sociológicas consigam achar a lógica subjacente. A observação precede a teoria, e a elaboração de personagem é um jeito de observar. Tolstói estava trabalhando com um modelo explicativo de baixa aderência à realidade. Depois de centenas de páginas analisando as motivações e a psicologia de Anna Kariênina, a ficção fez com que ele olhasse a realidade que se revelava não em sua ideia original, mas na relação entre as pessoas.
Quando a gente fecha um romance de Eliot ou Tolstói, o mundo parece diferente. Suspendemos o vício em concluir. Nossas preciosas ideias e opiniões - de onde vieram? são realmente nossas? são o melhor de nós? - dão espaço a uma nova leitura das pessoas e de suas (nossas) vidas. Se o mundo parece desconcertante, e as explicações que concebemos soam insatisfatórias, talvez seja o caso de exercitar um novo modo de olhar - quem sabe, conseguimos ler o mundo como os grandes romancistas.
Magia do peixe (1925), Paul Klee
O texto completo da
está aqui.Esse texto da
me fez companhia no mau humor literário.
Tô com esse seu texto desde ontem na cabeça. Eu vinha sentindo uma preguiça que nem é só com livros, mas com outros tipos de leitura - newsletters, ensaios jornalísticos, artigos e outras coisas que geralmente gosto de ler. Eu estava com preguiça até dos meus próprios textos, mas sem conseguir muito dizer o que é. Parece que o sentimento começou a diminuir depois que eu saí das redes sociais pra uns dias de descanso - inclusive tô aqui por isso -, mas ainda assim não tava claro pq isso estava me afetando, de onde vinha exatamente o que eu tava sentindo. Seu texto me deu um estalo, uma pista concreta sobre essa preguiça (um termo que para falar a verdade eu nem gosto, pq esconde uma justificativa real que explica a falta de disposição para as coisas). A necessidade de ser muito assertivo e explicativo o tempo todo nesses espaços da rede parece que não é só cansativa, mas talvez também achate essa abertura que só qd vc está disposto a ir construindo ideias e histórias aos poucos proporcionam. Muita coisa pra pensar sobre isso.
Aí, mais um pra lista de leitura.
Gosto muito da forma como você elabora seus textos, Ariela! Vai conduzindo várias construções de pensamentos aqui.
Maravilhosa como sempre, beliscando várias inquietações, abraço!