Uma habilidade é necessária - hoje perdida, infelizmente - para a prática da leitura como arte: a habilidade de ruminar, que a vaca possui, mas da qual o homem moderno carece.
Friedrich Nietzsche, A Genealogia da Moral
Minha meta esse ano é ler bem pouquinho. Como só precisamos de um amor grande o suficiente para aprender o que é amar, como só precisamos de um amigo verdadeiro para descobrir o que é amizade, só precisamos de um livro verdadeiramente grande para lermos o mundo.
Um dos meus ranços como leitora é a voracidade aquisitiva que os perfis literários promovem nas mídias sociais, sob o nobre manto do incentivo à leitura. Canais no Youtube e contas no Instagram são alimentados frequentemente com o sorriso aberto do produtor de conteúdo e uma capa atrativa: livro lido! Segue-se uma resenha, em vídeo ou em um texto curto, que encerra a experiência da leitura. Próximo post, próximo livro. Eu sempre me pego pensando: e quando foi que a pessoa digeriu o que leu? Quando foi que deixou os temas e as histórias fermentarem dentro de si? Se um livro não precisa de digestão, não merece ser lido. Se ele precisa mas simplesmente o deglutimos sem pestanejar, se ele precisava de tempo para crescer mas logo o jogamos na linha de produção, a leitura foi em vão.
As pessoas que apreendem o mundo pela leitura tem um lobby forte; há status social e uma mística particular em torno do meio livresco. Mas não há nada de inerentemente superior em percorrer os olhos pela palavra escrita. Os gregos sintetizaram a experiência humana na tragédia, que Nietzsche define como uma combinação de música e teatro. Os sumérios, os hebreus e demais povos antigos tinham uma rica tradição oral. A arte da Idade Média é fortemente pictórica. A palavra escrita não só não era priorizada, como era vista sob suspeita: o que se escreve vira matéria morta, transforma-se em fetiche. Havia uma proibição para que a Torá Oral fosse escrita, pois para manter o conteúdo vivo as pessoas tinham que repeti-lo, tinham que vivê-lo. Hoje símbolo de certo capital cultural, a leitura de romances estabeleceu-se nos séculos XVIII e XIX como uma atividade das classes ociosas. Provavelmente ainda seja.
Nunca fui uma pessoa religiosa, de modo que só entendi há pouco como os judeus ortodoxos conseguem passar uma vida lendo só a Bíblia e seus comentários. Um grande livro contém o mundo todo. Ou: olhando com atenção suficiente, um bom prisma reflete toda a realidade. Anthony Bourdain encontrou o mundo todo nos elementos de um prato de cozinha. Tenho um vizinho - também um youtuber famoso - que transforma Pac-Man numa experiência épica. David Foster Wallace descreveu uma partida de tênis como experiência religiosa. Com a massa certa, com o devido tempo de fermentação, as coisas atingem formas que pareciam impossíveis.
Ocorre-me que há nas grandes obras a generosidade da abertura. A Bíblia é elíptica não meramente por estilo, mas porque o processo convida à ação do leitor. O leitor da Bíblia não é um consumidor de arte narrativa; ele é convidado a preencher as lacunas com a sua interpretação e achar novos significados nas histórias antigas. Mais do que isso: o leitor é convidado a viver a palavra. Na sua introdução a Léxico Familiar, Alejandro Zambra comenta que o livro de Natalia Ginzburg lhe provoca o desejo de criar: "É impossível lê-lo sem imaginar esse outro livro próprio que ainda não existe, mas que deveríamos, por pura gratidão, escrever”. As coisas grandes não são consumidas, pois o consumo é um ato que se esgota em si, fogo que queima e depois apaga. As coisas grandes pedem o nosso engajamento - pão sovado - e depois pedem tempo de fermentação.
A pessoa que escreve é aquela cujo processo interior de fermentação passa pela palavra. Outro ranço literário: o tom auto-congratulatório, a grandiosa verbosidade que mal se esconde entre as pessoas convencidas de que, entre todos os meios de fermentação, há algo especialmente elevado em escrever. Tenho um carinho especial por Tolstói, o artista contra a arte, o autor que abandonou os livros no auge da fama. Sinto-me em casa, uma leitora avessa ao meio literário. Em algumas obras, talvez não por acaso escritas por mulheres, fica evidente a suspeita de que aquele que escreve é, na verdade, menor. Na Tetralogia Napolitana, Elena Ferrante constrói Lila em tudo superior a Lenu, a amiga que decide escrever a história. Em A Porta, Magda Szabó faz de Emerence a figura notável, narrada pela escritora Magda, personagem secundária. No Léxico Familiar, a narradora-escritora retira-se quase totalmente para retratar os demais.
Aos nossos preconceitos seculares, há algo de profundamente autoritário em um livro que se propõe a única leitura, a leitura que faria supérflua todas as outras. Mas, lembrando dos youtubers e instagramers, penso que há também algo de profundamente generoso: a tarefa não é impossível e você não está numa corrida de hamsters. A tarefa de cada um é ler um livro só e lê-lo bem e refletir nele até que ele cresça, e nós cresçamos com ele no processo. Para alguns, esse livro é a Bíblia, uma antologia de mil anos de textos hebreus. Mas poderia ser Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Poderia ser a Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante. A tarefa poderia não ser um livro, mas o cuidado de um jardim. O importante é que se dê tempo para que ela floresça.
Matzá, o pão que não teve tempo de crescer
Me lembrou uma entrevista que li de Nelson Rodrigues:
“Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: ‘O que é que você leu?’. Respondi: ‘Dostoiévski’. Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: ‘Que mais?’. E eu: ‘Dostoiévski’. Teimou: ‘Só?’. Repeti: ‘Dostoiévski’. O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoiévski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura”.
Nossa, que pancada esse texto. Eu me aflijo por querer ler sempre mais e mais - e o seu texto me fez lembrar que a leitura, assim como a escrita, não funcionam no ritmo do algoritmo. Obrigada por compartilhar, me fez bem demais ler isso!