Sinto curiosidade. Sinto impaciência. Sinto frustração.
Estou num treinamento corporativo com umas outras trinta pessoas. Os instrutores distribuem fichas de papel plastificado com uma escala de emoções, das mais produtivas para as mais paralisadoras. O tema é a qualidade dos pensamentos. Calculo quanto tempo falta para a pausa do café. Procuro algum cúmplice entre os meus amigos de trabalho, mas só encontro nucas cegas e olhares perdidos no vazio. Como último recurso, escrevo no grupo das chegadas: quanto vocês acham que esse pessoal recebe pra vir aqui nos dizer o óbvio?
Mas o óbvio é parente do bom senso: todo mundo acha que já tem doses suficientes. Há uma espécie peculiar de burrice - reconheço porque a tenho - que embaça a visão para o óbvio enquanto ilumina tudo que é difícil, tortuoso e estranho. É verdade, é óbvio: nomear ajuda. Você acha a palavra exata para o que você está sentindo - sinto impaciência - e de repente não há mais só a mistura amorfa de sentimentos e você; há você e essa coisa para qual você deu as mãos, e agora batizou. Quem sabe você possa até soltar o enlace.
Nomenclatura é a arte de impor ordem ao mundo através da linguagem. É uma arte culpada de tudo que lhe acusam: um tanto arbitrária, um tanto árida, bastante ligada àqueles que têm apreço a rótulos e pensam em caixinhas. No entanto: reino Animalia, filo Chordata, classe Aves, ordem Galliformes, família Phasianidae, gênero Gallus, espécie G. gallus, subespécie G. g. domesticus. No entanto, a galinha. Em algum lugar da cascata de nomes, se estabelece o elo entre o tiranossauro e a galinha, e tudo que é ínfimo e familiar se revela imenso de novo. Um mundo coberto de penas. Os galinheiros. Pequenos dinossauros em suas casinhas.
É chato ser a pessoa do nome - vamos todos ser mais casuais, que tal? Vamos deixar rolar. Quando comecei essa newsletter, devo ter dito que “cometi um texto”. Não queria afiliar a minha a G. g. domesticus aos fósseis venerados, para os quais as pessoas apontam por trás de vidros, para os quais eu aponto também. Eu escrevia textos, e isso era suficiente. Não é suficiente escrever um texto? Além de ciscar, a galinha tem que refletir sobre a natureza da ciscada? Será o ovo de galinha melhor pela consciência do parentesco com o ovo de pterodáctilo?
Por muito tempo, eu achei que escrever de verdade significasse escrever romances. Parecia simples o suficiente: reino Literatura, filo Prosa, gênero Romance. Como sempre ignorei a poesia, na prática eu servia a um reino de um gênero só: a Literatura é o Romance, assim, com letras maiúsculas. Havia, claro, o conto e a crônica. Você olhava a orelha de um livro e via que a infância do romancista havia sido um primeiro livro de contos. Você abria o jornal e via o romancista escrevendo colunas e crônicas pra tirar uns trocados. Eu sentava em frente ao computador - pior: sofria e não sentava - mas de lá não saía um romance. Sinto impaciência. Sinto ressentimento. Sinto frustração. Tento botar ovo, mas não sou bicho que dá ovo.
Enquanto isso, eu trabalho, e também é uma vida feliz. Quando eu tinha 17 anos, eu e a minha mãe nos sentamos com o Almanaque do Estudante em mãos e decidimos o vestibular como pessoas razoáveis: por exclusão. As Biológicas e as Exatas estavam fora. Meses antes, eu havia ganhado um prêmio nacional em Humanidades, com uma dissertação sobre “O Homem de Areia”, de E.T.A. Hoffmann. A gente se segurava na classe média pelas unhas, e nunca me passou pela cabeça continuar a testar a sorte à beira do penhasco. As Humanidades também estavam fora. Entre o que sobrou, de algum jeito chegamos na Economia. E eu cursei Economia sem olhar para trás. Na Cidade Universitária, o ônibus passava todo dia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, mas eu não estava olhando. Não cruzei a Avenida Professor Luciano Gualberto nem para uma disciplina optativa. Não sei bem o que estava pensando - talvez que as coisas são sempre uma ou outra, e não as duas ao mesmo tempo, e que eu tinha feito uma escolha. Era a aluna que não sabia o suficiente nem para formular uma pergunta: é assim que se faz? Como eu não perguntei, ninguém respondeu. Segui adiante.
O maior privilégio é ter alguém para mostrar o caminho. Filhos de médicos têm 25 vezes mais chances de se tornarem médicos do que outras pessoas. Uma criança que nasce na pobreza, mesmo se as oportunidades fossem iguais, mesmo se as faculdades estivessem igualmente dispostas a aceitá-la, mesmo se incentivassem a matrícula, estaria um abismo de imaginação em desvantagem: ela não sabe que ser médica é possível. Ela não cresceu vendo que ser médica é uma coisa que as pessoas simplesmente são. Ela não sabe que pode mirar tão alto; alguém precisa cruzar a vida dela e mostrar o caminho. Depois de apontado, ele parece óbvio: basta olhar pela janela e o mundo se abre para todos os lados. Sozinha, ela não sabe nem fazer a pergunta. Sem nem o vocabulário, queremos algo sem nome.
Devemos muito a quem, mesmo sem querer, mostra o caminho. No mundo das palavras, valem mesmo os mortos e desconhecidos - chamamos isso de influência. Eu demorei para encontrar as minhas. Era óbvio, estava apenas em outra estante: reino Literatura, filo Prosa, família Não Ficção, gênero Ensaio Pessoal. É um bicho estrangeiro e anfíbio, meio-isso-meio-aquilo. Nas estantes brasileiras, não têm muito espaço. O prêmio Jabuti conhece apenas dois eixos separados: Literatura e Não Ficção. No entanto, aqueles que vieram antes asseguram que existe: Virginia Woolf e Natalia Ginzburg, Joan Didion e Vivian Gornick, James Baldwin e David Foster Wallace.
Como escrevo em português, queria achar uma referência mais perto de casa. De posse desses nomes como pistas, perguntei por aí quem está escrevendo nesse formato no Brasil. Muito rapidamente enxerguei nos olhos dos outros que tinha me tornado a chata da nomenclatura.
- Não, não. Crônica é outra coisa.
- Autoficção é bacana, mas é outro bicho. Não, também não é literatura confessional.
- Sim, sim, isso aí também é um ensaio. Quase todo texto de não ficção pode ser classificado como ensaio. Mas não é um ensaio pessoal, entende?
O ensaio pessoal é um texto sobre uma ideia, mas com um narrador: a voz que escreve. O romancista espalha a sua voz entre os personagens, e assim pode alegar inocência. O ensaísta em geral é um terceiro que olha o assunto de fora, ou ao menos faz o possível para construir distância; ele é um especialista, fala com domínio do assunto. O ensaio pessoal, por sua vez, é a quarta parede que explode na página: quem fala sou eu, um narrador implicado, e a ideia está contaminada pelas minhas qualidades e defeitos. A realidade deixa de ser objetiva e passa a ser pessoal. A vulnerabilidade do narrador fratura o texto.
Um dos primeiros textos desta newsletter foi sobre “Frankenstein”, de Mary Shelley (não procure, não está bom). Defendo que “Frankenstein” não tem nada a ver com os limites da ciência, nenhuma relação com brincar de Deus - “Frankenstein” seria um livro sobre paternidade e abandono. Pedi para que duas pessoas com formação acadêmica em Letras lessem e me dessem uma opinião. Falta mediação teórica, me disse uma. Falta indicar bibliografia, me disse outra. Posso culpá-las da mesma forma que poderia convidar um pintor para minha casa e culpá-lo por, acima de tudo, reparar na paleta de cores. O problema central estava no texto, que ainda não tinha achado a forma. O argumento não funciona em terceira pessoa: ele cai facilmente no biografismo, a tentação de explicar a obra pela vida de Shelley, e ainda assim mal disfarça meu investimento particular na tese. A única forma de sustentá-lo era na primeira pessoa. Eu teria que abandonar a distância e dignidade da crítica e, como Shelley, cavar meu espaço num lugar que não é mais seguro.
Na essência, o que meus amigos acadêmicos me perguntaram foi: com que autoridade você fala? Quais são as credenciais atrás do seu nome? A voz do ensaio pessoal tem a mesma autoridade que a do romancista: nenhuma. Mesmo que ela tenha, e os diplomas se acumulem na parede, o ensaio pessoal não é o lugar de reclamá-la para si. A ensaísta fala como uma pessoa; como uma pessoa Mary Shelley escreveu “Frankenstein” aos 19 anos, e como pessoas elas se entendem. O ensaio pessoal é uma forma diletante - você fala por amor e assume o risco do envolvimento.
A persona por trás do ensaio, porém, existe apenas a serviço do assunto. Ela é transparente para que os outros enxerguem o tema melhor, em toda a sua complexidade humana. É muito difícil construir essa voz, que sai dos ensaios claramente com as entonações de Woolf, de Didion, de Gornick. Você tem que se conhecer e conhecer o seu tema, e tem que deixar que ambos se embolem numa forma híbrida, um monstro feito de pedaços de carne e químicos e que, ao contrário do monstro de Frankenstein, tem nome: o ensaio pessoal. A sua G. g. domesticus pode ser de casa, mas na nomenclatura mora a promessa de familiaridade com os gigantes. Alguns morreram, porém ainda mostram o caminho.
Sinto curiosidade. Sinto alívio. Sinto até ambição.
Talvez não tenha perdido tempo. Entre passos em falso e caminhos derivativos, entre cegueira e iluminação, entre ônibus circulares e trajetos lineares, estava escrevendo um ensaio pessoal.
Eu fiz uma relação meio torta enquanto ia lendo, mas não pude evitar, entre o ensaio pessoal e um bom texto de standup, tipo do Seinfeld, ou do Rick Gervais, quando se discorre sobre um tema específico (numa piada mais alongada ou num especial). Grande texto de novo!
como uma pessoa que também teve uma vida escolar com méritos pela escrita, mas acabou fazendo carreira na área de exatas exatamente por uma questão de classe (não podia me dar ao luxo de estudar Letras ou Jornalismo e esperar longos anos até conseguir me bancar em profissões nessas áreas, fazer o networking necessário etc) eu te entendo. mas você percebe que chega uma hora em que o diletantismo te abandona? quando começa uma busca pela forma e o estudo vai se alargando e aprofundando, há um desejo de validação que excede o que a persona diletante pode bancar só com sua flanação e amadorismo. acho legal esse salto, observo isso rolando com pessoas ao redor e comigo mesma - não é à toa que fui para faculdade de novo, aos 31, para fazer o que não tive condições de fazer antes (lembrei da nossa colega Paula Maria agora rs)... no fim, quando a gente não tem educação formal na área que estamos dispostas a nos debruçar, a rede de contatos que vamos formando é a porta de entrada para o que queremos (acho que no seu caso é publicar um livro de ensaios, não? acho que vc já tá correndo atrás 😊).
vamos trilhando os caminhos em busca da forma e do conteúdo ❤️