Em 1971, Jack D. Forbes fundou a primeira universidade tribal da Terra do Sol Poente, também conhecida como o estado da Califórnia. A instituição recebeu o nome de Deganawidah-Quetzalcoatl University, inaugurando, assim, não só as aulas, como também a tradicional polêmica universitária. Enquanto Quetzalcoatl era um nome chicano aceitável, Deganawidah era a denominação do Grande Pacificador, divindade nativo-americana cuja pronúncia é considerada sacrílega fora de contexto cerimonial. O corpo docente argumentou que qualquer menção à faculdade, de tão nobre propósito, era um ato de culto. A explicação não colou, e os alunos passaram a frequentar a D-Q University.
Eu conheço essa história por causa da minha sogra. Nos anos 90, ela foi professora de Química na D-Q. As histórias da faculdade indígena são as minhas preferidas, e elas irrompem sem aviso - enquanto o café esquenta no microondas ou quando estamos sozinhas na sala. Ela me conta, toda vez, como se aquela fosse a última chance de nos encontrarmos. Eu escuto e tento colecionar as palavras.
Na semana passada, pedi para ela me contar de novo o caso do sabão. A turma estava dentro de uma reserva ecológica quando um aluno chamado Pena Branca apontou para uma florzinha que a avó dele usava para fazer sabão. Minha sogra falou: “Essa é a fonte da saponina, uma enzima famosa. Escreva uma redação sobre isso e eu posso te dar ponto extra.” Pena Branca e a minha sogra regulavam de idade. Ele respondeu: “Mas isso não contaria.” Ele aponta ao redor, para o lugar onde o grupo estava. “Este é um conhecimento que eu estou te dando agora. Nada que eu colocasse num papel mostraria o que estou te mostrando. E não seria conhecimento. Você não pode conter conhecimento num livro. Nós temos que estar aqui para que você o receba. É um presente da minha avó para você.” Entre os indígenas, não havia proibição ao registro, mas sim a crença de que o que você aprende com as coisas escritas não constitui sabedoria real. O verdadeiro conhecimento é passado de vida para a vida; ele só é contido na existência humana. “Ããah, eu não sei se mereço. Mas obrigada, senhor.”
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Uma Barbra Streisand de cabelo curtinho e olhar hesitante entra no salão. O filme é Yentl, de 1983, e se baseia num conto de Isaac Bashevis Singer. Após a morte do pai, a protagonista Yentl se traveste de homem para ser aceita em uma yeshivá, um centro de estudos religiosos, na Polônia do começo do século. Homens de todas as idades se inclinam ao redor de mesas, gesticulam em ênfase, trocam perdigotos em discussões apaixonadas. Dezenas de debates acontecem ao mesmo tempo, em linhas paralelas. Os parceiros de estudos fazem uma cacofonia insuportável, que o filme cobre com trilha sonora. Yentl entrou em uma sessão de estudos da Torá Oral.
Reza a lenda que, no Monte Sinai, Deus entregou a Moisés dois ensinamentos: a Torá Escrita e a Torá Oral. A Torá Escrita contém os primeiros livros de Moisés - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. É um bestseller que você encontra cheirando a mofo em gavetas de hotel, ou na mão de políticos que só o leriam se a própria vida dependesse disso. A Torá Oral, muito mais ampla em extensão, teria os ensinamentos passados de boca a boca, de vida a vida, de Moisés a Josué, de Josué aos anciãos, dos anciãos aos profetas, dos profetas para a Grande Assembleia, da Grande Assembleia para os membros da comunidade, de cada membro da comunidade para seus filhos, de geração a geração. A Torá Oral detalha, expande e interpreta a Torá Escrita, a tal ponto que se considera a versão escrita incompleta e ininteligível sem a instrução oral. Assim como a Bíblia na verdade teve seus escritores de carne e osso, a Torá Oral foi a criação de milhares de pessoas engajadas na transmissão de conhecimento comunitário. A transmissão oral garante que ele não se torne enfeite de estante; ele é vivo e ele depende da vida. Por centenas de anos, vigorou a proibição de redigi-lo: “Aqueles que escrevem as leis são como se queimassem a Torá, e quem aprende com elas (os livros) não recebe recompensa.” Dois mil anos atrás, quando os romanos derrubaram Jerusalém, havia o risco de que as palavras da Torá Oral caíssem com os cadáveres. Como mal menor, a tradição oral foi posta em tinta e é hoje conhecida como o Talmud.
Quando o pai de Yentl morre, ele deixa para trás uma casa cujas paredes eram cobertas por tomos do Talmud. Mesmo assim, Yentl precisa se esconder, precisa fugir: ela não pode aprender apenas com a leitura. Enquanto as histórias de Moisés entraram no mundo cristão pelo nome de Bíblia - do grego, “livros” - o original hebraico os conhece como Torá - literalmente, “instrução”. Você não pode consumir instrução como literatura e você não pode se instruir em isolamento. O conhecimento não é um livro que pode ser esquecido na estante; ele tem que ser vivido como parte de um encontro. O conhecimento pertence ao salão, entre as vozes, onde ele toma forma.
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Eu aprendi a ser leitora com a minha mãe. Lembro do verão de Sorocaba, um calor do inferno, quando nos refugiávamos no único quarto com ar condicionado e líamos na cama até cochilar. Lembro de esperar que ela lesse um livro de capa rosa todinho - Os delírios de consumo de Becky Bloom - antes que confirmasse que não era inapropriado para minha idade. Lembro de ler as primeiras cinquenta páginas de uma tacada só, de perninhas de índio no tapete, depois que o livro rosa foi liberado como inofensivo.
Com a minha mãe, ainda não aprendi a não ser leitora. Depois de vários anos de vacas magras, sem viagens, lembro de estarmos no terminal da Delta muito antes do embarque, receosas e desacostumadas a voar. Lembro de abrir um livro e esperar que a minha mãe fizesse o mesmo, mas ela ficou observando o movimento. “Mãe, você vai ficar duas horas olhando pro teto?” Ela assentiu e continuou - tinha tanta coisa acontecendo. Lembro de pensar que ela poderia estar aproveitando aquele tempo, se distraindo, aprendendo alguma coisa sobre o mundo. Nessas duas horas, eu perdia a realidade enquanto tentava agarrá-la pelas palavras.
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“Às vezes a gente acha que tá tudo mundo bem, só a gente que tá totalmente na merda.” O vídeo foi publicado há 9 anos e tem mais de 700 mil visualizações. “Não é assim que acontece de verdade: tá todo mundo mal. Não é só você que tá mal. Seus amigos tão mal, seus primos tão mal, seus pais tão mal também. Eu tô mal, Caio tá mal, os amigos dos seus amigos tão mal, os primos dos seus amigos também tão mal. Tá todo mundo mal. Tem ninguém bem.” JoutJout fala diretamente para a câmera, num enquadramento caseiro.
JoutJout fez carreira no YouTube, sendo o que os jornalistas facilmente definiriam como “a voz de uma geração”. Quando eu procuro seu nome verdadeiro no Google, Julia Tolezano, aparece um vídeo - provavelmente patrocinado - com o título: “Qual o próximo sonho grande de JoutJout?” Pois Julia não era apenas a voz millennial, ela era a encarnação do sucesso millennial: milhões de inscritos, uma carreira criativa, um jeito causal e autêntico, um trabalho que não era bem trabalho. Com certeza, disso ela iria querer mais e mais. Qual era o próximo grande passo de JoutJout? Julia peregrinou o Brasil e largou a Internet. No vídeo de encerramento, ela fala que perdeu a vontade de falar em massa. “A minha vontade de falar com muita gente foi dando espaço a uma vontade de falar com pessoas que eu consigo ver.” O grande passo foi um grande silêncio.
“Estou num lugar que eu não sei se eu quero estar, eu demoro duas horas e meia pra chegar nos outros lugares (…) mas aí faz como, larga tudo e vai pra uma cidade pequena?” Estamos de volta ao passado, ao vídeo Tá todo mundo mal. A Julia em crise é conteúdo, é televisionada. Corta para o vídeo de encerramento: a Julia mais recente achou o caminho da roça. Ela mudou de estado, mudou de vida, e ainda tem perguntas, mas outras. Ela não acredita mais em falar para uma multidão abstrata, sem rosto e sem contexto. Julia abre um caderninho e comenta o que ela andou aprendendo em conversas com os outros. Agora que ela está bem, ela não quer mais olhar para a câmera. Ela não quer mais falar.
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Nós acreditamos nas histórias que nos é conveniente contar. Tolstói é um dos maiores artistas da nossa tradição literária - certo? Entre os 37 e 39 anos, escreveu Guerra e Paz. Aos 50 anos, lançou Anna Karênina em livro. É esse o Tolstói que estudamos e elegemos como gênio.
Poucos anos depois de Anna Karênina, no auge da fama, Tolstói entrou em crise. Todo o seu trabalho era inútil, artificial, destinado apenas a amaciar o próprio ego e agradar a patota de intelectuais russos. Em 1880, ele publicou Confissões, a narrativa de sua crise e conversão religiosa. Em 1894, escreveu O Reino de Deus está entre vós, um trabalho anarco-cristão sobre não-violência. Em 1897, soltou O que é Arte?, no qual defende que as cantigas camponesas são mais profundas que Shakespeare. Depois de ter alcançado o ápice do reconhecimento literário, Tolstói passou mais de 30 anos falando que isso não era grande coisa e, no lugar de construir tramas, subiu escolas para os camponeses de sua região. Esse Tolstói é uma nota de rodapé curiosa; esse é o Tolstói louco. A gente acredita no gênio dele antes, mas não acredita no gênio dele depois. O Tolstói que amamos é tudo aquilo que, em vida, ele desprezou. O barulho das centenas de personagens sumiram de seus escritos; o Tolstói maduro se aproxima cada vez mais da ação e do silêncio.
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Quem escolhe falar e quem escolhe calar? Queremos que mais e mais pessoas falem, subam nos palanques, brilhem sob os holofotes. Somos devotos da expressão em massa, da interioridade pública. Uma vez perguntei para a minha sogra porque ela não escrevia as próprias histórias. Ela me olhou como o Pena Branca, e eu percebi na hora que não tinha entendido algo de essencial. Se eu não estivesse sempre de cabeça baixa e olhasse a realidade melhor, talvez tivesse entendido.
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Não costumo gostar de livro com personagem escritor. Acho indulgente. Mas eu curto as escritoras que escrevem sem glorificar a escrita; as que intuem que a pessoa que pega a caneta é sempre a parte mais fraca. Na Tetralogia Napolitana, Lila, a amiga genial, desaparece sem deixar rastro; cabe a Lenù, a personagem mais apagada, contar a história. Em A Porta, de Magda Szabó, Emerence é a vida do livro; a narradora Magda abre o primeiro capítulo contando que a matou, e no seu rastro e ausência tece a história. O leitor conhece o mundo pelas vozes de quem escolheu falar: as personagens menos interessantes que contam a história.
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Há também os escritores de fragmentos, aqueles cuja obra aponta para o silêncio de uma revelação iminente. Franz Kafka, pouco antes da sua morte prematura, queria aprender hebraico e reescrever a Cabala. O último manuscrito de Walter Benjamin, fugindo dos nazistas, se encerra com um trecho místico sobre a volta do Messias.
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Enquanto fixo em tela estas palavras, penso em todos os profetas que conversam sem livro e sem registro.
Quando, na quarta-feira passada, eu recebi o alerta do Substack de que a
tinha me marcado em sua newsletter, eu abri o texto num pico de empolgação. É tão legal ser lida e estar em conversa com os outros. A adrenalina foi substituída por um certo horror pois, linha após a linha, o texto que eu mesma rascunhava na cabeça - este que você leu - se revelava um exato reverso da publicação da Carol. Fiquei com receio de ser indelicada, de ser lida como uma resposta. Enquanto o texto da Carol celebra a leitura como fim, como elemento construtor de sentido - “literatura como religião” - eu planejava toda uma exposição dos limites da escrita como meio, uma celebração de tudo aquilo que existe não como registro, mas como silêncio. Acho que os dois textos podem existir em oposição muda, sem entrarem em confronto. De um lado, quando estamos abatidos, há a lembrança do poder do registro e da elaboração verbal. Do outro, quando corremos o risco da auto congratulação, há a memória de quão imenso é o mundo que não pede tradução em palavras. Aqui está o texto da Carol:Alguns dias atrás, eu revi o meu amigo Matheus. Em conveniente homenagem, roubo aqui a epígrafe do seu primeiro livro:
— Você é um romântico incurável — disse Faber. — Seria cômico se não fosse trágico. Não é de livros que você precisa, é de algumas coisas que antigamente estavam nos livros. As mesmas coisas poderiam estar nas “famílias das paredes”. Os mesmos detalhes meticulosos, a mesma consciência poderiam ser transmitidos pelos rádios e televisores, mas não são. Não, não. Absolutamente não são os livros o que você está procurando! Descubra essa coisa onde puder, nos velhos discos fonográficos, nos velhos filmes e nos velhos amigos; procure na natureza e procure em você mesmo. Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer. Não há neles nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo. É claro que você não poderia saber disso, é claro que você ainda não pode entender o que quero dizer com tudo isso. Mas intuitivamente está certo, isso é o que conta. (Fahrenheit 451, Ray Bradbury)
Venho de uma família não leitora, pouco alfabetizada, porém, com rico repertório de histórias, passadas de geração em geração (em especial minha mãe) e em um processo investigativo bem profundo sobre minha relação com a escrita entendi que minha paixão é pela história. São elas que me encantam, colocá-las no papel é só um a mais...
gostei muito do seu texto. deu vontadede nao ler mais nada
(brincadeira hahah)