Fiz um pequeno apanhado de autoajuda judaica - ou seja, o que andei selecionando para ajudar a mim mesma.
1) A gravidez tem várias pequenas indignidades. Depois que parei de botar as tripas para fora, tenho curtido quase todas elas. Instagram reels de bebê se tornou meu gênero de mídia social preferido. Me lancei num projeto investigativo de carrinhos: nenhum bebê passa pela minha frente sem uma boa encarada na marca do carrinho e uma nota mental para pesquisar o preço. E tenho lido um livro chamado Expecting Jewish, porque pensei que alguma sabedoria milenar ajudaria com uma atividade a que as mulheres se dedicam desde o começo dos tempos. Estava errada: fora as partes do Gênesis que se especula que tenham sido escritas por uma mulher, a tradição judaica não tem muito a dizer sobre gravidez e parto. Mas a autora de Expecting Jewish não se deu por vencida. Fiquei especialmente apegada ao reaproveitamento da reza/música abaixo:
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita
E o principal a lembrar
É não ter medo
Não ter medo nenhum
2) Minha amizade intelectual favorita é entre Walter Benjamin e Gershom Scholem. Scholem é menos conhecido do que Benjamin, mas foi igualmente um dos gênios do século 20. Ele salvou o misticismo judaico das bibliotecas nazistas, e depois o tirou do campo da superstição e lhe deu tratamento acadêmico. Estou faz meses adiando um texto sobre ele.
Scholem era do tipo que se desesperava cedo e fugiu da Europa para Jerusalém antes que a situação ficasse realmente feia. Benjamin não teve a mesma sorte. Em 1940, ele achou que estava cercado pelos nazistas e se suicidou na fronteira entre França e Espanha. Até o fim, trabalhou para salvar o que conseguisse do desaparecimento. Benjamin morreu com o manuscrito de Teses sobre o conceito da história, que termina com uma explosão de messianismo, na mala.
Numa das últimas cartas para Scholem, ele escreveu:
Cada linha que conseguimos publicar hoje - não importa quão incerto seja o futuro ao qual a confiamos - é uma vitória arrancada dos poderes das trevas.
3) Pirkei Avot 2:16:
O rabino Tarfon costumava dizer: Não é sua responsabilidade terminar o trabalho, mas você também não é livre para desistir dele.
4) Avot d’Rabbi Natan, capítulo 31:
O rabino Yochanan ben Zakkai costumava dizer: Se, enquanto segura uma muda na mão, lhe disserem que o Messias está para chegar, primeiro plante a muda e depois saia para receber o Messias.
5) De acordo com a lenda hassídica, o mundo todo é sustentado pela existência de 36 pessoas justas. Elas não sabem quem são e não conhecem as demais. Se uma pessoa suspeita ser um dos 36 pilares, esta é uma evidência clara de que ela na verdade não é um deles. Jorge Luis Borges reconta a lenda da seguinte forma:
Há na Terra, e sempre houve, trinta e seis homens retos cuja missão é justificar o mundo perante Deus. São os lamed wufniks. Não se conhecem entre si e são muito pobres. Se um homem chega a saber que é um lamed wufnik, morre imediatamente, e um outro, talvez em outra região do planeta, toma seu lugar. Sem suspeitar, esses homens são os pilares secretos do universo. Não fosse por eles, Deus aniquilaria o gênero humano. São nossos salvadores e não sabem. (Livro dos Seres Imaginários)
***
São tempos estranhos para insistir nos temas judaicos. A internet me diz que a nossa popularidade não está em alta. Para quem me conhece pessoalmente, talvez o enfoque seja um mistério - não sou nem especialmente religiosa nem especialmente dada a trazer o assunto à tona em conversas casuais. Mesmo assim, os temas judaicos. Sempre eles. Especialmente agora.
Uma parte da motivação é pouco nobre: a empáfia. Há apenas 15 milhões de judeus no mundo. Faz dois mil anos que o mundo se incumbiu de deixar claro quão uncool é o judeu: os pogroms, as Cruzadas, a Inquisição, os libelos de sangue, as expulsões, os nazistas, os expurgos de Stálin, a propaganda soviética. São dois mil anos de seleção cultural do tipo mais insuportável de judeu: aquele que, apesar de tudo, não se curvou, não se rendeu às ideias da moda, não se preocupou em agradar. Felizmente, sou herdeira do tipo insuportável.
Nos dias bons, há algo mais. Cada um tem um motivo para escrever. Eu escrevo quando acho que tenho uma contribuição a oferecer, e suspeito que, dentre todas as minhas características banais, há alguma contribuição em enxergar o mundo como parte desses 15 milhões. É como se o mundo todo fosse um jardim cercado por um muro alto, coberto por minúsculos furinhos. A visão panorâmica não está disponível para ninguém; cada um só consegue um vislumbre do jardim por vez. Mesmo para enxergar pelo furinho, você só consegue focar a visão se fechar um olho. Através dessa pequena abertura, você pode capturar um ângulo da realidade infinita. No meu caso, o olho que fica aberto é o olho judaico.
O último texto foi declaradamente sobre Israel e Palestina, mas ele faz sentido para mim porque Israel-Palestina é uma entrada para coisas maiores: como honrar uma posição contrária, talvez mesmo repulsiva? Como promover a paz? Como a paz tem a ver com o jeito que decidimos contar uma história?
A passagem do passado para o presente é muito estreita e o nosso trabalho é tentar cruzar sem medo. A gente não sabe bem para quê ou para quem, mas há algo para tentarmos ao máximo e depois entregarmos incompleto para o futuro.
Seus textos são incríveis. Não sou judia, mas sua escrita é imprescindível para qualquer um que queira entender persistência ❤️
Que texto lindo. Muito obrigada! Ansiosa para o texto sobre Scholem