Jerusalém, marco zero. No que eles não sabiam que seria o início da Era Cristã, Hillel e Shammai estão tendo um dia normal no Segundo Templo. Colegas e adversários, eles são as principais autoridades na lei hebraica e professores de suas próprias casas de estudo. A Casa de Shammai era conhecida pelo rigor na interpretação da lei e pela posição firme contra a influência cultural greco-romana. A Casa de Hillel, por sua vez, era marcada pela flexibilidade interpretativa e pela abertura à influência externa. Os estudiosos argumentam que o Jesus histórico, que provavelmente teve sua educação formal no Templo de Jerusalém, se sentou sob Hillel.
Numa época em que lei civil e religiosa se confundiam, as discordâncias sobre o código hebreu não eram uma questão arcana: matava-se e morria-se pela sua interpretação do mundo. O século I foi especialmente agressivo na Antiga Israel. Os romanos instalavam e desinstalavam governantes, acirrando uma feroz resistência popular. Os saduceus, que controlavam o Templo, eram a elite política e religiosa pró-Roma. Eles defendiam a regulação mínima da vida hebraica, nos termos exigidos pela letra da Torá, restando os outros temas para domínio romano. Os fariseus, em cuja tradição se inseriam tanto Hillel quanto Shammai, legislavam pela Lei Oral - uma versão mais próxima do povo e mais interpretativa, mas também mais abrangente do código judeu. Correndo por fora, havia ainda os essênios, uma seita do deserto que denunciava a corrupção da vida no Templo e buscava um judaísmo mais puro. Faz sentido que João Batista, em sua versão histórica, tenha sido um essênio. Era nesse contexto de guerra cultural e disputa fratricida que Hillel e Shammai se levantavam entre os seus discípulos para ensinar a lei. Shammai expunha a sua visão de forma brilhante e apaixonada, que ficou registrada na jurisprudência judaica. Hillel não ficava atrás, porém fazia algo diferente: antes de ensinar a própria posição, ele ensinava aos seus discípulos a posição de Shammai.
Séculos depois, quando os ossos já eram pó e o Templo era escombros, as opiniões de Hillel e Shammai acharam sua forma final na redação do Talmud. O Talmud, compêndio de centenas de anos de tradição oral, conta que uma voz divina anunciou: “tanto as palavras de Hillel quanto as de Shammai são as palavras do Deus vivo; a lei, porém, segue Hillel.” Se ambos contém a verdade divina, porque a lei segue a Casa de Hillel? O Talmud continua: “A razão é que eles eram agradáveis e tolerantes, mostrando moderação quando ofendidos, e quando ensinavam a lei ensinavam tanto as suas posições quanto as posições de Shammai. Além disso, quando formulavam os seus ensinamentos e citavam uma disputa, eles priorizaram as opiniões da Casa de Shammai em detrimento às suas próprias opiniões, como deferência a Shammai.” (Eruvin 13b)
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Desde que a guerra começou, eu tento escrever sobre Israel e Palestina. Desde que a guerra começou, eu jogo fora textos sobre Israel e Palestina. Como escrever de maneira intelectualmente honesta, enquanto judia? Como ter uma posição firme e ainda assim honrar a posição contrária?
Na comunidade judaica americana, se tornou piada falar dos “asajews” (“comojudeus”). Um “asajew” começa uma opinião falando “como judeu, eu…” e emenda com uma afirmação individual que revela profunda desconexão com o pensamento judaico e o debate comunitário. Falar como judeu não pode ser apenas um marcador de identidade pessoal; você precisa se colocar em conversa com uma herança, um jeito de ver o mundo.
Em um de seus ensaios, Abraham Heschel se pergunta: “quem é um judeu?” Ele oferece algumas respostas, entre elas: “é uma pessoa em cuja vida Abraão se sentiria em casa, uma pessoa por quem o Rabino Akiva sentiria profunda afinidade, uma pessoa de quem os mártires judeus de todas as épocas não sentiriam vergonha.”
Como escrever sobre Israel e Palestina como judia? Não tenho certeza, mas não gostaria de envergonhar Hillel.
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Edward Said foi um dos principais intelectuais palestinos do século XX. Ele nasceu em 1935 em Jerusalém, então sob Mandato Britânico, e se mudou com a família para os Estados Unidos, onde completou os estudos em Princeton e Harvard. Said foi professor de literatura inglesa na Universidade de Columbia, em Nova York. Sua maior contribuição intelectual foi o conceito de orientalismo, que ele explorou no livro de mesmo nome, publicado em 1978 e considerado um dos trabalhos formativos dos estudos pós-coloniais.
A noção de orientalismo se refere à representação que o ocidente desenvolveu sobre o oriente, particularmente sobre os árabes. Said era um estudioso, por exemplo, do escritor britânico Joseph Conrad e da forma como sua obra retrata o árabe como um “outro” exótico, no que Said identifica uma justificação implícita do colonialismo europeu. Em essência, o orientalismo é um problema do olhar: como uma pessoa de fora de uma cultura estabelece a visão hegemônica sobre ela, e como mesmo as pessoas “de dentro” acabam introjetando esse olhar estrangeiro e se enxergando por lentes emprestadas.
Como escrever sobre Israel e Palestina como judia, como uma judia sionista, que acredita na autodeterminação do povo judeu em parte de sua terra ancetral? Começarei tentando honrar a posição de Edward Said. Um ano após Orientalismo, Said publica A questão da Palestina. Declaradamente, o livro não é uma obra acadêmica, mas um ensaio político. O autor fala de sua participação no Conselho Nacional Palestino e menciona sua interlocução com Yasser Arafat, então líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Como seria de se esperar, o ensaio guarda as marcas do autor que acabara de escrever Orientalismo: Said se coloca como a voz nativa que explica ao mundo a visão palestina, que ele argumenta que foi suprimida ou sequestrada por agentes externos. De certa forma, o que lemos não é a voz própria de um intelectual, com suas posições talvez peculiares e controversas; em seu livro, Edward Said se coloca como um veículo para a voz da Palestina:
Minha esperança é ter deixado clara a interpretação palestina da experiência palestina e ter mostrado a relevância de ambas para o cenário político contemporâneo. (grifos meus)
Até o fim da vida, Said pensou e publicou a respeito do Oriente Médio. Sua relação com a OLP nem sempre foi tranquila e seus livros chegaram a ser banidos pela organização. Morreu em 2003, de volta às graças com Yasser Arafat, depois de elogiá-lo pela rejeição ao tratado de paz oferecido por Israel, em 2000 (Camp David).
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A questão da Palestina tem três eixos: (1) uma articulação da visão palestina sobre o estabelecimento do Estado de Israel, (2) uma reflexão sobre a formação da identidade palestina e da OLP na década de 1960 e (3) uma análise das relações entre a Palestina, os EUA e os países árabes. Como o livro tem cerca de 50 anos, não é injusto dizer que ao menos metade do conteúdo passou a ser interessante como documento histórico, mas ultrapassado como análise: a revisão da OLP e das relações internacionais da época sofrem de proximidade histórica, e os argumentos quentes ficaram com gosto de notícia velha. O coração do livro, porém, está intacto. O eixo (1) e metade do (2) são voz corrente no discurso palestino, seja porque Said ajudou a pautar esse discurso, seja porque ele foi bem sucedido em oferecer o seu ensaio como veículo para a visão palestina. É esse cerne vivo que merece uma paráfrase.
A proposta de Edward Said é olhar para o sionismo sob a perspectiva de suas vítimas. O que a imigração judaica significou não para os judeus que foram seus beneficiários, mas para os árabes que se sentiram encurralados por uma avalanche estrangeira? De acordo com os números apresentados por Said, em 1822, a província do Império Otomano conhecida como Palestina tinha cerca de 240 mil habitantes, dos quais 24 mil eram judeus. Em 1882, começou a política de imigração judaica. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a população judaica era de 60 mil, dentre um total de 689 mil habitantes. Em 1931, era de 175 mil ante 1 milhão. Em 1936, 385 mil ante 1.3 milhão. Dois anos antes da independência de Israel, em 1946, havia 600 mil judeus vivendo como minoria num território ocupado por 1.9 milhão de pessoas, majoritariamente árabes, muçulmanas e de vida agrícola ou pastoral.
Os árabes da Palestina interpretaram a imigração judaica conforme uma realidade conhecida na época: como mais uma faceta da colonização europeia. De fato, uma paráfrase justa de Said não usaria sequer a palavra “imigração”, que ele pouco emprega, mas sim a palavra “colonização”. Lançando mão de citações do período, Said defende que, assim como o colonialismo europeu, o sionismo foi fundamentado por noções de superioridade racial. Ao árabe, atrasado econômica e culturalmente, se contraporia o judeu civilizado e moderno; no lugar do suposto mal aproveitamento da terra, floresceriam a técnica e o progresso. A noção de superioridade judaica frente aos árabes seria tamanha que, segundo Said, o território palestino foi dado como vazio e sua população foi tratada como irrelevante.
Israel teria sido construída nos escombros da Palestina e à revelia dos palestinos. É especialmente importante para Said a ausência de consentimento palestino: o sionismo não perguntou se eles queriam dividir a terra com os judeus, e eles na certa não aceitaram. Em 1948, 780 mil árabes palestinos foram deslocados de suas casas. Em 1967, as perdas territoriais se ampliaram. Edward Said escreve que cada judeu a mais era uma derrota palestina: “Para cada imigrante judeu que chegava à Palestina, era provável que um árabe fosse deslocado, e seus direitos humanos suprimidos.”
Sob a perspectiva palestina, o sionismo foi uma catástrofe imposta por europeus, para europeus, como solução para o problema do sentimento anti-judaico europeu. No processo, os palestinos se tornaram um derivado da História, a vítima árabe das vítimas judias.
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Tenho claro para mim que não sou como Hillel, que no máximo consigo imitar a brandura de Hillel no intervalo deste texto. Uma paráfrase justa de Edward Said me custa toda a minha generosidade, e escavo a versão mais limpa de seus argumentos das minhas notas talhadas de pontos de exclamação ultrajados.
Israel-Palestina é um conflito exaustivo. Quem tem briga de família vai entender: os argumentos que são repetidos há décadas, os ressentimentos requentados, as versões em disputa. Quem começou? Quem está mais certo? Qual ferida veio antes que justifica a ferida de depois, que produzirá a ferida aberta de amanhã? (Confesso certa incredulidade com quem nasce longe dessa bagunça, mas decide fazer de Israel-Palestina uma causa de estimação. Lembro então que eu mesma tenho problemas de família e, ah, como é bom ouvir os dos outros, resolver na imaginação e ainda sair com um sentimento de superioridade moral! Imagine, por exemplo, que eu morasse num empreendimento colonial como o Brasil, que os yanomamis estivessem morrendo de fome e de diarreia, e que em vez de tentar resolver isso, eu pudesse me distrair com outro tema? Imagine, Deus me livre, se me sugerissem que eu ligasse para a minha irmã e de fato fizesse alguma coisa?)
Num texto anterior, falei de Israel-Palestina como uma briga de irmãos. A história não começou com a fundação de Israel. A história não começou com o movimento sionista. A história tem um problema de origem, como Esaú e Jacó que brigavam no ventre - Jacó, o gêmeo mais novo, trazido à vida agarrado aos calcanhares de Esaú. As religiões abraâmicas não compartilham das mesmas narrativas bíblicas por coincidência, por efeito de algum inconsciente coletivo que plantou Abraão, Moisés e os profetas nas mentes de milhões de pessoas. O cristianismo saiu do judaísmo no século I, pelas mãos de Jesus. O islã saiu do judaísmo no século VII, pelas mãos de Maomé. Não foram nascimentos pacíficos. Ambos os irmãos mais novos denunciaram o primogênito como ultrapassado e se declararam os reais herdeiros da bênção paterna. O cristianismo levou quase dois mil anos para se reconciliar com os judeus, o que só aconteceu no Concílio Vaticano II (1962-65). A reconciliação dos muçulmanos com os judeus ainda está em curso. O islã saiu da Península Arábica e conquistou a Palestina, na base da espada, em meados do século VII. O Domo da Rocha, terceiro lugar mais sagrado para os muçulmanos, foi construído sobre os escombros do Templo de Jerusalém, numa afirmação física da suplantação civilizacional e religiosa. Por séculos, a terra mudou de dono conforme o poder da espada, até se tornar parte do Império Otomano em 1516. Para os conquistadores, os judeus adquiriram status de dhimmi, uma minoria tolerada. Diferente da Europa, eles não iam para os guetos ou para a fogueira, mas também não podiam comprar qualquer propriedade ou montar num cavalo. A existência de Israel como um Estado soberano para o povo judeu, em parte da sua terra ancestral, desafia 1400 anos de noções religiosas e políticas sobre o lugar do judeu na região: o irmão que perdeu a primogenitura, que é apenas tolerado, que vive da favor; nunca o sujeito que se governa, que pode se defender, que ousa viver como maioria sob as próprias leis.
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Mas devagar com o ardor - as brigas familiares cansam os estranhos de bom senso. Há uma resenha a terminar.
O que torna A questão da Palestina interessante não são os argumentos em si, já velhos conhecidos de quem acompanha o conflito, mas a conexão com o trabalho do acadêmico de letras e crítico cultural. Como o homem que escreveu Orientalismo exercitou o conceito numa situação real?
Orientalismo é um problema de representação, uma questão do olhar: quem se coloca como narrador, quem conta a história? Para Said, a história do oriente foi contada pela ocidente, que estabeleceu uma hegemonia no olhar. Um projeto não-orientalista recuperaria a voz nativa e deixaria os árabes contarem a própria história. A questão da Palestina é parte desse projeto: Edward Said fala que o lado sionista é suficientemente conhecido e dominante; cabe a ele contar o reverso da história.
Por conta da última rodada de guerra, A questão da Palestina tem sido recomendado como um dos livros para se entender o conflito. Para quem está chegando agora na bagunça, porém, me parece um livro difícil de acompanhar. Há duas datas que se erguem como marcos, repetidas várias vezes, mas sem sequer um parágrafo de explicação: 1948 e 1967. Há também ausências notórias de explicação histórica: inexiste qualquer contexto em relação às duas guerras mundiais e ao modo como o Império Otomano, aliado da Alemanha, caiu na Primeira Guerra, e como todos os países da região (Síria, Líbano, Iraque, Jordânia), e não apenas Israel, foram traçados pelos ingleses e franceses que administraram o espólio. Os silêncios de Said são curiosos. Para quem se propõe falar como a voz nativa, ele encobre as situações cruciais em que os árabes tiveram agência sobre a História.
1948 e 1967 são as datas de duas guerras iniciadas pela Liga Árabe. Ambas tiveram consequências desastrosas para os palestinos. Em 1947, para resolver a disputa territorial que se arrastava por décadas, a Assembleia Geral da ONU aprovou um plano que dividia a Palestina entre um país judeu e um país árabe. Em 1948, Israel declarou a independência nos limites da partilha. A declaração de independência é curta. Ela garante cidadania em pé de igualdade para todos os árabes que decidissem permanecer nos limites de Israel e faz um apelo de paz para os vizinhos:
O Estado de Israel será aberto para imigração judaica e para a o recebimento de exilados; patrocinará o desenvolvimento do país para o benefício de todos os seus habitantes; será baseado na liberdade, justiça e paz como imaginado pelos profetas de Israel; garantirá liberdade de religião, consciência, língua, educação e cultura; respeitará os lugares sagrados de todas as religiões; e será fiel aos princípios da Ata das Nações Unidas. (...)
Nós fazemos um apelo - em meio ao duro ataque lançado contra nós há meses - aos habitantes árabes do Estado de Israel para manter a paz e participar da construção do Estado na base de igual e completa cidadania e através de representação em todas as suas instituições provisórias e permanentes.
Nós estendemos nossa mão a todos os estados vizinhos e seus povos numa oferta de paz e boa vizinhança, e apelamos a eles para o estabelecimento de laços de cooperação e ajuda mútua com o soberano povo judeu, estabelecido em sua própria terra. O Estado de Israel está preparado para fazer a sua parte em um esforço comum para o desenvolvimento de todo o Oriente Médio.
Um dia depois da declaração, a Liga Árabe atacou Israel. Parte dos árabes que moravam dentro das fronteiras do novo país atacou Israel por dentro; durante a guerra, eles foram expulsos e não foi permitido o seu retorno. O episódio resultou no deslocamento permanente de 780 mil pessoas e ficou conhecido entre os palestinos como Nakba - a catástrofe. Os árabes que estavam dentro das fronteiras de Israel e não se tornaram hostis deram origem aos 2 milhões de árabes que hoje são cidadãos israelenses.
A Liga Árabe estava no seu direito de não aceitar a partição amigável da Palestina; eles não eram obrigados a dividir o território de bom grado. Na ausência de acordo, a Liga Árabe estava no seu direito de declarar uma guerra, que ela depois perdeu. A Liga Árabe estava no seu direito inclusive de não aceitar o resultado da guerra, não reconhecer a independência de Israel, se recusar a declarar a independência de um Estado palestino que não ocupasse 100% da terra e não firmar um acordo de paz, como não fez. Ela exerceu livremente todos esses direitos. Todas essas foram escolhas árabes e palestinas. O que é estranho é fingir que essas escolhas não existiram. O que é estranho é se dispor a contar uma versão nativa nas quais os nativos são agentes passivos da história.
Entre 1948 e 1967, a Cisjordânia ficou sob domínio jordaniano e a Faixa de Gaza foi administrada pelos egípcios. Sob o risco de ser redundante, vou falar brevemente da guerra de 1967. A Liga Árabe fez uma guerra de revanche para destruir Israel e recuperar o território perdido para os judeus. Ela não só perdeu a guerra pela segunda vez, como perdeu o controle de todo o território palestino. Depois de apenas 6 dias de conflito armado, o exército israelense não só defendeu as próprias fronteiras, como tomou o controle militar da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Israel tentou firmar um acordo através do qual ela se retiraria da Cisjordânia e de Gaza, em troca da paz permanente. A Liga Árabe devolveu a proposta com os Três Nãos: não à paz com Israel, não ao reconhecimento de Israel, não às negociações com Israel. Na ausência de um acordo que evitasse a próxima guerra de revanche, Israel não se retirou dos territórios ocupados. A Cisjordânia segue ocupada militarmente até hoje. Em 2005, a Faixa de Gaza foi desocupada unilateralmente por Israel, sem que fosse firmado um acordo de paz; um ano depois, na sua primeira e única eleição livre, a população de Gaza elegeu o Hamas, cujo estatuto defendia a destruição de Israel e sua subsituição por um Estado islâmico.
Meu objetivo não é contar o outro lado do outro lado, num ciclo eterno de contrapontos. De fato, já consigo até ouvir a terceira derivada do argumento - essa briga já foi encenada vezes demais para que qualquer um se surpreenda com os perdigotos. Meu objetivo é pensar no que signfica articular uma representação nativa sem uma revisão honesta das próprias sombras. Como falar de si mesmo sem nunca reconhecer a possibilidade de complexidade, de ambiguidade, de falha? O jeito como contamos a história não é apenas uma discussão literária; vivemos no mundo material as consequências das histórias que decidimos narrar. Uma história de colonos europeus e supremacistas não é uma narrativa com a qual você faz um acordo de paz. É uma narrativa pela qual você rejeita todos os acordos, justifica a violência e promete atacar de novo, e de novo, e de novo.
As partes mais frustrantes d’A questão da Palestina acontecem quando Edward Said chega tão perto de uma reconciliação, tão perto de honrar as duas histórias, mas retrocede antes do salto. Ele escreve:
Muito do desespero e pessimismo associado ao conflito palestino-sionista reside, em certo sentido, na incapacidade de cada lado em reconhecer o poder existencial e a presença de outro povo com sua própria terra, sua trágica história de sofrimento, seu investimento emocional e político na região, e, pior ainda, na tentativa de fingir que o Outro é apenas um incômodo temporário que, com o tempo e esforço (e ocasional violência punitiva), desaparecerá. A realidade é que palestinos e judeus israelenses estão agora completamente interligados em suas vidas e destinos políticos, talvez não de maneira definitiva - um tema que não é facilmente abordado em discussões racionais - mas certamente no presente e em um futuro previsível.
Mas o parágrafo continua, sem pausa:
Mesmo assim, é necessário ser capaz de distinguir entre uma presença invasora, desapropriadora e deslocadora, e a presença que ela invade, desapropria e desloca. As duas não são equivalentes (...)
“Orientalismo” foi um conceito criado para dar conta de um mundo dual: há os que dominam e os que são dominados, as vítimas e os opressores, os certos e os errados. A representação feita pelo colonizador é necessariamente injusta e silenciadora; Joseph Conrad, em seu melhor, não poderia ser mais do que um estrangeiro deturpando o que pretendia retratar. Essa forma de enxergar o mundo não dá conta de dois lados que se pensam nativos, simultaneamente certos e errados, simultaneamente vítimas e algozes um do outro. Edward Said se dispõe a elaborar o que ele chama de “sionismo sob a perspectiva de suas vítimas”. Que enorme passo para a paz teria sido o maior intelectual palestino conseguir também articular o sionismo de acordo com a visão de boa fé de um judeu.
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Do escritor israelense Amos Oz:
O conflito israelo-palestino é um choque de direitos igualmente válidos. Tragédias são resolvidas de duas maneiras: à maneira de Shakespeare ou à maneira de Tchekhov. No final de uma peça de Shakespeare, o palco está coberto de cadáveres e talvez haja uma medida de justiça pairando acima deles. Uma tragédia tchekhoviana, por outro lado, termina com todos desiludidos, amargurados, com o coração partido, decepcionados — de fato, absolutamente arrasados, mas ainda vivos. Eu e meus colegas no movimento pela paz estamos trabalhando por uma conclusão tchekhoviana, não shakespeariana.
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Hillel e Shammai se enfrentam no Templo de Jerusalém. A atmosfera cheira a suor e sangue dos animais sacrificados. Seus discípulos sentam em pólos opostos de uma disputa mundana: se uma noiva é feia, você ainda assim é obrigado a cantar a música de casamento que celebra a sua beleza?
Shammai é categórico: a verdade está acima de tudo. Ele cita o Êxodo de cabeça, como um jurista: “não prestarás falso testemunho”. Cabeças aquiescem. Se a noiva é feia, a noiva é feia; paciência, ainda assim você não pode mentir. Os olhares se voltam para Hillel. Ele não devolve o argumento com nenhuma citação. De sua boca sai quase uma charada: “Todas as noivas são bonitas no dia do seu casamento.”
A discussão foi considerada importante o suficiente para ser registrada no Talmud (Ketubot 17a). A interpretação tradicional diz que, por trás do caso banal, há uma questão séria: quando é aceitável mentir? A opinião de Hillel é interpretada como uma defesa das mentiras brancas: de acordo com ele, a paz estaria acima da verdade. Há, porém, um outro jeito de olhar. Hillel em momento nenhum concorda com a mentira. Ele não encara uma noiva específica e, apesar das evidências, canta uma beleza inexistente. O que Hillel faz é invalidar a premissa: no seu dia de alegria, é impossível que qualquer noiva seja feia. Hillel responde a pergunta por outras vias. Ele nega o caminho conhecido. Ele inventa a própria história.
Como ser geograficamente desconexo do debate, sempre me afastei de tomar uma posição sobre isso. Tanto por objetividade intelectual, quanto pela fuga da complexidade da questão: é desafiador olhar questões de outro continente sem o olhar enviesado de questões do nosso continente.
Mas seu texto, honesto (e ainda assim ponderado) bota um freio nos instintos que levam a esses vieses. Você o freiou, alimentou o debate de importantes argumentos comumente ignorados e jogou um banho de agua fria na ingenuidade contemporânea - de buscar soluções sempre inteiramente satisfatórias e lógicas para situacoes impossiveis.
Belissimo texto na narrativa, argumentação e estilo. Grato pela leitura e partilha!
Li e reli! Lucidez, conhecimento e sabedoria 💕