Após um longo atraso, esse texto faz dupla com a resenha de Edward Said e completa o díptico sobre Israel e Palestina. Como tentativa de antídoto aos meus vieses, comecei a falar do assunto através do mais famoso intelectual palestino. Termino com uma visão israelense, a partir do livro “A guerra do retorno”, de Adi Schwartz e Einat Wilf.
Uma década: a expectativa de vida de uma salamandra; o tempo que levou para os Flavianos construírem o Coliseu e para Odisseu retornar a Ítaca; o período legal durante o qual a Receita pode cobrar impostos não pagos, após o qual um jubileu é decretado e a dívida é cancelada... Apenas cerca de uma década antes do outono que estou recordando, o Estado de Israel foi fundado. Naquele país minúsculo, situado a meio caminho do outro lado do globo, judeus deslocados e refugiados estavam ocupados se reinventando como um único povo, unidos pelo ódio de seus vizinhos e pelas subjugações de regimes contrários, num processo massivo de solidariedade despertado por um antagonismo flagrante. Simultaneamente, outro processo em massa estava ocorrendo aqui na América, onde os judeus estavam ocupados sendo desinventados, ou assimilados, pela democracia e pelas forças de mercado, pelos casamentos mistos e pela miscigenação. Independente de onde estivessem e da natureza e direção específicas do processo, no entanto, permanece um fato incontestável que quase todos os judeus do mundo estavam envolvidos, na metade do século, em se tornarem outra coisa; e que neste ponto de transformação, as antigas diferenças internas entre eles - de cidadania e classe social, para não mencionar de idioma e grau de observância religiosa - tornaram-se por um breve momento mais palpáveis do que nunca, dando um último suspiro de agonia. (The Netanyahus, de Joshua Cohen)
Não dá para notar pelo trecho acima, mas Os Netanyahus é um livro engraçado. Vencedor do Pulitzer de 2022, o livro recicla uma anedota de Harold Bloom: no fim dos anos 1950, Bloom foi encarregado de ciceronear um acadêmico desconhecido durante uma visita à Universidade de Yale. O acadêmico era Benzion Netanyahu, pai do atual primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, e ele apareceu com a turma toda - esposa grosseirona e os três filhos encapetados, num carro caindo aos pedaços.
Os Netanyahus é uma sátira política sobre identidades em conflito: o judeu americano Ruben Blum (ficcionalização de Harold Bloom), com tema de pesquisa inofensivo, versus Benzion Netanyahu, judeu israelense, cujos interesses acadêmicos mal disfarçam seu ativismo político; Edith Blum, ansiosa para agradar, versus Zila Netanyahu, interessada em se fazer ouvir; os pais de Ruben, da classe remediada do Bronx, versus os pais de Edith, os judeus sofisticados de Manhattan; Ruben e Edith versus a filha, por motivos de conflito geracional e adolescência. Os diálogos que saem desses confrontos são impagáveis.
O principal embate, porém, tem a ver com poder. Ruben Blum é um homem da diáspora. Apesar de seu sucesso relativo - professor universitário, primeiro judeu do campus -, ele coleciona pequenas indignidades. O clube de campo sempre perde sua ficha de inscrição. Seu chefe o escolhe como guia para Netanyahu, apesar da incompatibilidade das linhas de pesquisa, apenas porque ambos são judeus. Seu pertencimento ao mundo que o cerca é condicional; embora as migalhas que lhe caibam sejam de um banquete americano, seu status ainda é de um sofisticado pedinte. Benzion Netanyahu, por sua vez, está menos disposto a jogar o jogo humilhante da ascensão social. Embora ele de fato chegue na universidade como pedinte - ele está passando pelos rituais de procurar emprego -, sua habilidade para a acomodação é baixa. Benzion parece ter vindo de fábrica sem o entendimento do que é necessário para agradar ao mundo externo. Quando a comissão de recrutamento lhe pede uma palestra sobre religião, Benzion até concorda, mas o conteúdo da aula deixa claro o seu desgosto pelo tema e a sua revolta por ter sido associado a ele pelo simples fato de ser um historiador judeu. Benzion Netanyahu faz parte da primeira geração em dois mil anos que vive como maioria entre os seus, com exército próprio e poder político. Em Israel, na aridez do deserto, os judeus estão se reinventando nos moldes da identidade sabra.
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Como toda obra imaginativa, o sabra é simultaneamente realidade e ficção. Pois é o mito fundador do país, o sabra é uma versão idealizada do israelense, sem correspondente perfeito em carne e osso. Porque foi o molde contra o qual se forjaram, mesmo que de forma defeituosa, as primeiras gerações da nação, o sabra viveu aos milhões. As coisas construídas tornam-se realidade. Somos todos, em alguma medida, as histórias que decidimos contar sobre nós mesmos.
Entre 1880 e 1930, as ondas migratórias para a Palestina foram sobretudo idealistas. O antissemitismo aumentava na Europa, mas a escolha mais óbvia para as as famílias que fugiam das perseguições era a América, e não as dunas e pântanos do Império Otomano. Israel foi um projeto da juventude. Sob forte inspiração socialista, o judeu que chegava na Palestina era um pioneiro que se definia, como é inevitável, em contraposição aos pais que deixava para trás, na diáspora. Diferente do judeu errante, do judeu expulso de país em país, do judeu fraco, a mensagem da juventude era: na nossa terra ancestral, se levanta uma nova nação hebraica. O símbolo do novo judeu, fruto nativo, era uma espécie de cacto conhecida como “sabra”.
Sabra, a planta, é doce por dentro e espinhosa por fora. Sabra, a pessoa, carrega numa mão um fuzil e na outra uma enxada. A nova geração trabalha a terra, usa bermuda e chinelo e não vai se deixar matar sem oposição à bala. Suas palavras são simples e diretas; ela fala o que pensa mesmo que não agrade. A linguagem sabra transparece em todos os cantos do espectro político. Golda Meir, primeira-ministra de esquerda: “Se tivermos que escolher entre estar mortos e sermos dignos pena, e estarmos vivos mas termos uma imagem ruim, preferimos estar vivos e ter a imagem ruim.” Menachem Begin, primeiro-ministro de direita: “Eu não sou um judeu de joelhos trêmulos. Eu sou um judeu orgulhoso com 3.700 anos de história civilizada. Ninguém veio em nosso auxílio quando estávamos morrendo nos fornos e nas câmaras de gás. Ninguém veio em nosso auxílio quando estávamos lutando para criar nosso país. Nós pagamos por isso. Nós lutamos por isso. Nós morremos por isso. Nós vamos permanecer fiéis aos nossos princípios. Nós os defenderemos. E, quando necessário, nós morreremos por eles novamente, com ou sem o seu auxílio.”
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Adi Schwartz e Einat Wilf escrevem como sabras. A guerra do retorno é direto, reto e desinteressado em existir pelas beiradas. O livro se propõe a responder duas questões práticas: porque os processos de paz entre Israel e Palestina falharam e o que fazer a partir dessa resposta.
Einat Wilf é uma filha do trabalhismo israelense. De família socialista e antirreligiosa, Wilf serviu no Congresso depois de terminar o doutorado em Ciências Políticas, em Cambridge. Ela trabalhou para os arquitetos dos Acordos de Oslo, que tentaram construir um caminho para a paz nos anos 1990. Schwartz fez carreira como jornalista no Haaretz, o jornal mais antigo de Israel, conhecido pelo viés de esquerda. A marca do sabra está no desinteresse por questões teóricas: o processo de paz é uma necessidade existencial, e não um tópico de discussão geopolítica. Na introdução, Wilf e Schwartz lembram o leitor que eles criam família em Israel, que mandam os filhos para o alistamento obrigatório do Exército de Israel, que cada dia é um dia em que uma pessoa querida pode ser morta ou ferida por conta do conflito em Israel.
Há também um outro aspecto prático no interesse dos autores pelas negociações de paz: o descrédito da esquerda israelense andou de mãos dadas com o fracasso em obter acordos com os palestinos. Até a ascensão de Benjamin Netanyahu, excetuados alguns períodos de transição, o governo israelense passou por 50 anos de hegemonia do partido trabalhista. A esquerda israelense correu riscos pela paz e pagou caro por eles. Entre 1993 e 1995, Yitzhak Rabin negociou os Acordos de Oslo, preliminares para o estabelecimento de um estado palestino, com Yasser Arafat, líder com histórico de associação ao terrorismo. A direita radical denunciava Rabin como traidor e literalmente pedia sua cabeça. O Hamas denunciava Arafat como traidor e fazia uma campanha de atentados suicidas. Em novembro de 1995, na saída de um comício em defesa dos Acordos de Oslo, Yitzhak Rabin foi assassinado por um extremista israelense. Cinco anos depois, a esquerda israelense tentava salvar o processo de paz. Em uma série de encontros mediados por Bill Clinton, foi a vez de Ehud Barak apertar as mãos de Yasser Arafat, num processo conhecido como a Cúpula de Paz de Camp David. Estava na mesa um acordo que estabelecia um Estado palestino em 95% da Cisjordânia e 100% da Faixa de Gaza, com capital compartilhada em Jerusalém. A liderança palestina não aceitou o acordo, se levantou das mesas de negociação e meses depois começou a Segunda Intifada, um ciclo de 4 anos de atentados terroristas contra alvos civis e militares israelenses. Schwartz e Wilf perguntam: por que? Em 2008, quando a eleição de Netanyahu parecia inevitável, Ehud Olmert usou o fim do seu mandato para oferecer um novo acordo de paz: o equivalente territorial a 100% da Cisjordânia, 100% da Faixa de Gaza, capital compartilhada em Jerusalém. Após uma série de tratativas, a Autoridade Palestina cancelou a rodada seguinte de negociações. Nunca houve sequer um “não” formal. Schwartz e Wilf perguntam: por que?
Se alguém fosse planejar o incineramento do campo pacifista em Israel, seria difícil arquitetar algo mais eficiente do que a rejeição aos acordos de Barak-Olmert e a Segunda Intifada. Depois deles, os trabalhistas desapareceram como força política. Em alguns bolsões do país, sobrevivia ainda um apoio minoritário ao Meretz, um parente israelense do PSOL. O Meretz é um partido socialista e secular, com eleitores nos kibbutzim das franjas de Israel. A base do partido é composta, entre outros, por ativistas pela paz que optam por morar perto das fronteiras palestinas, querem coexistir com seus vizinhos e lideram ações humanitárias. Em 7 de Outubro de 2023, os kibbutzim atacados pelo Hamas eram bolsões de eleitores do Meretz. Famílias inteiras foram executadas dentro de suas casas, com adesivos de “paz agora” nas janelas quebradas.
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A guerra do retorno tem uma tese simples: as lideranças palestinas rejeitaram acordos de paz para Soluções de Dois Estados (um Estado judeu e um palestino) porque não estão prontas para reconhecer a existência do Estado judeu. Enquanto os processos de paz focaram em questões práticas como delimitação de fronteiras, retirada de assentamentos e garantias de segurança, eles sempre encontraram um obstáculo no “direito ao retorno”, que sintetiza a raiz ideológica do conflito.
Entre os palestinos, o “direito ao retorno” significa a garantia de volta dos refugiados da guerra de 1948, da qual Israel emerge como Estado independente, às suas cidades de origem. Porque a ONU registra como refugiados de 1948 todos os descendentes das pessoas originalmente atingidas pela guerra, o número de refugiados palestinos hoje é oito vezes maior do que era quando Israel foi fundada. Quando a poeira da guerra baixou, a ONU registrou 726 mil refugiados do conflito armado. Após algumas gerações, hoje há quase 6 milhões de palestinos com status de refugiados vivendo na Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jordânia, Líbano e Síria.
O ״retorno” de 6 milhões de palestinos às fronteiras de Israel devolveria os judeus à condição de minoria, desfazendo portanto a existência de Israel como Estado soberano para o povo judeu. Schwartz e Wilf falam que, aos ouvidos ocidentais, o “direito ao retorno” sempre soou como uma estratégia de negociação, uma ferramenta para obter concessões em outros tópicos de maior relevância. Afinal, três gerações após a guerra, 6 milhões de pessoas não querem voltar para um território no qual elas nunca pisaram, correto? Bastaria oferecer uma cota simbólica de absorção de 25 mil palestinos em Israel, em troca de um assentamento a menos na Cisjordânia ou uma compensação monetária a mais, e o problema desapareceria, certo? Errado. Os refugiados são a raiz do problema, e a noção de um retorno a um mundo pré-1948 é o ânimo central da causa palestina.
Uma solução de dois Estados foi historicamente lida como uma vitória sionista, pois ela sedimentaria a existência do Estado judeu; o único caminho justo seria uma Palestina de maioria árabe do rio Jordão ao mar Mediterrâneo. Os autores dedicam a maior parte do livro a provar a tese de que o retorno é a chave para as pretensões eliminacionistas das lideranças palestinas. Até a década de 1970, eles mapeiam as declarações literais que associam o retorno à destruição de Israel por dentro - uma quinta coluna a ser formada dentro da sociedade israelense. Após a segunda derrota militar, na guerra de 1967, sedimenta-se na consciência palestina uma outra linguagem para comunicar as aspirações ao retorno. É uma linguagem mais palatável à audiência ocidental: sem modificar o objetivo de eliminar a soberania judaica, o modo de articulá-lo torna-se mais digerível. Yasser Arafat aceita a abordagem de dois Estados, mas nunca enuncia que um deles seria o Estado judeu; afinal, com o “direito ao retorno”, mantinha-se aberta a fresta para dois Estados de maioria árabe. Como alternativa, também surge a ideia de um Estado “secular e democrático” para ambos os povos, embora os territórios palestinos até hoje nunca tenham sido nem uma coisa, nem outra. Tal Estado, naturalmente, seria de maioria árabe: o velho sonho da Palestina do rio ao mar.
Schwartz e Wilf falam que o fracasso do processo de paz está na escuta seletiva dos negociadores, que se apegaram a ambiguidades reconfortantes para mascarar verdades duras. Não adianta negociar mapas e questões logísticas para uma solução que um dos lados, a priori, está investido na ideia de que não funcione. Para os autores, o apego às palavras bonitas e ouvidos surdos custou muito caro. Custou milhares de vidas de ambos os lados, em guerras que poderiam ter sido evitadas. A solução seria a clareza cortante: não há no direito internacional uma garantia ao retorno, 1948 foi uma guerra lutada e vencida há quase 80 anos e todo tratado de paz é uma concessão a noções absolutas de justiça.
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Na minha vida inteira, estive em Israel por 10 dias. Tinha uns 18 anos, era uma viagem de grupo e minha memória mais viva é estar sentada num ônibus de excursão. De carro, você cruza Israel de leste a oeste em duas horas. De norte a sul, em seis horas. Se minha memória é confiável, atravessei o país de ônibus umas 32 vezes.
Na preparação para a viagem, tentei aprender um pouco de hebraico. Estava nos com licença, por favor e obrigada. Minha mãe desdenhou: não precisa disso, não, israelense não pede passagem.
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No livro Judeus não contam, David Baddiel brinca que não reconhece o israelense como um judeu igual a ele: “Os israelenses não são muito judeus, no que diz respeito a minha relação com ser judeu. Eles são muito macho, muito musculosos e agressivos e confiantes. (...) Judeus sem angústia, sem culpa. Portanto não realmente judeus.” O judeu de Baddiel é o judeu diaspórico, cerebral, de sabor americano: de Groucho Marx a Woody Allen, de Philip Roth a Sarah Silverman, do latkes ao bagel com lox. Adi Schwartz e Einat Wilf não são o seu judeu. Há algum constrangimento num livro tão em linha reta como A guerra do retorno - tão sem sutileza, tão sem meias palavras. Olho para o meu próprio texto, que sempre abre por uma porta lateral e caminha em círculos, rodeando o assunto, nunca explicitamente chegando lá. Lembro da epígrafe d’Os Netanyahus, uma citação de Vladimir Jabotinsky: “elimine a diáspora, ou ela vai te eliminar”.
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Se A guerra do retorno puder ser resumido em uma frase de delicadeza característica, uma boa candidata seria “o século 20 aconteceu para todo mundo, supere”. Schwartz e Wilf falam que não há nada de excepcional no destino dos palestinos, exceto a vontade de relitigar as consequências da Segunda Guerra Mundial.
Com o fim da Segunda Guerra e a dissolução dos poderes coloniais, conflitos étnicos e intra-grupos eclodiram no mundo todo, como pus de feridas mal cicatrizadas. A solução para esses conflitos, via de regra, foi dividir os territórios e separar as populações em conflito. Da guerra que dividiu a Coréia, meio milhão de pessoas morreram e 3 milhões saíram refugiadas. Da guerra que segregou o Paquistão da Índia, mais de 14 milhões de pessoas trocaram de fronteiras e perderam suas casas. Dez milhões de alemães étnicos, cujas famílias moraram por gerações em países da Europa Oriental, foram expulsos por seus vizinhos. Para sedimentar a paz entre Turquia e Grécia, houve uma troca populacional forçada de 1,2 milhão de gregos com cidadania turca por 600 mil turcos com cidadania grega. No século 20, a barbárie foi a regra, não a exceção. Em 1947, para lidar com a guerra civil entre judeus e árabes, e com a existência de centenas de milagres de sobreviventes do Holocausto que país nenhum queria receber, a Assembleia Geral da ONU aprovou a partição da Palestina, contra a vontade dos países árabes. A Liga Árabe atacou Israel para frustrar a declaração de independência. Perdeu. Uns 700 mil palestinos foram expulsos do Estado recém formado. Os países árabes expulsaram quase todos os judeus que tinham, também uns 700 mil, em retribuição. C’est la vie. So it goes. Exceto na Palestina, onde foi cultivada uma infraestrutura para perpetuar o conflito.
Enquanto Israel absorveu os refugiados judeus, tanto os expulsos da Europa quando os removidos dos países árabes, a Liga Árabe se recusou a conceder cidadania aos refugiados palestinos. Até a guerra de 1967, quando a Jordânia perdeu o controle da Cisjordânia e o Egito da Faixa de Gaza, ambos os países também não haviam cedido os territórios para auto-governo palestino. Por pressão dos membros árabes, a ONU estabeleceu a UNRWA (United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees), entidade específica para os palestinos, com uma missão diferente da Agência da ONU para Refugiados (UNHCR), que cuida de todos os demais conflitos. Enquanto a missão da UNHCR é absorver refugiados em novos locais e portanto criar um caminho de saída para o status emergencial, a UNRWA registra geração após geração de palestinos como refugiados de uma guerra na qual eles sequer estavam vivos. O tratamento desigual, argumentam Schwartz e Wilf, dá margem à interpretação palestina de que a independência de Israel é um fato reversível, pois as consequências de 1948 ainda estão em litígio. Quando cláusulas de “direito ao retorno” voltam à baila em negociações de paz, elas são na verdade a própria negação do processo de paz. A reabsorção de 6 milhões de palestinos seria o fim do Estado judeu na prática, um projeto eliminacionista que só pode ser imposto à força.
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Jabotinsky, padrinho ideológico do Likud, partido de Benjamin Netanyahu:
“Não temos que pedir desculpas por nada. Somos um povo como todos os outros povos; não temos nenhuma intenção de sermos melhores que o resto. Como uma das primeiras condições para a igualdade, exigimos o direito de ter os nossos próprios vilões, exatamente como os outros povos os têm. Não temos que prestar contas a ninguém, não devemos nos submeter a exame de ninguém e ninguém é velho o suficiente para nos convocar a dar respostas. Viemos antes deles e partiremos depois deles. Somos o que somos, bastamos a nós mesmos, não mudaremos e nem queremos mudar.”
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Os Netanyahus é um livro sobre pessoas desprezíveis em situações ridículas. Lendo a sátira política que é o livro, é impossível não ter certeza que Joshua Cohen despreza os Netanyahus, que também servem de símbolo para a estranheza em relação ao judeu israelense. Mas Os Netanyahus é um livro grande porque, das frestas do projeto do romance, narrado pela voz de Blum, surge a dúvida: desprezível também não sou eu? Ou, como um amigo e co-leitor me perguntou: você acha que o livro demonstra qualquer tipo de respeito, ainda que seja o respeito amargo que a gente sente por uma pessoa desprezível mas provida de qualidades que nos faltam, por Benzion Netanyahu?
Em 7 de Outubro de 2023, eu estava grávida. Eu sou Blum. Meus amigos são Blum. Quando os relatos começaram a emergir do Festival Nova, do kibbutz Be’eri e do kibbutz Nir Oz, um choque de horror paralisou a diáspora. O mundo de alguém acaba todos os dias e o nosso mundo acabou um pouco ali. Enquanto os corpos ainda caiam - o ataque durou mais de 12 horas - enquanto a gente mandava mensagem para os conhecidos - o Exército demorou para chegar - enquanto a gente se rasgava por dentro - as calças ensanguentadas de Naama Levy, o cadáver semi-nu de Shani Louk - quem sofreu do nosso lado e quem, se os nossos bisavós tivessem fugido para Israel e não para o Brasil, hoje justificaria a nossa morte?
David Grossman fala que Israel é o único país cuja existência parece estar sempre em questão. A excepcionalidade judaica: nenhum outro país fica argumentando pelo seu direito de existir. Na diáspora, herdamos o reflexo do pedido de perdão. Nos dias seguintes ao 7 de Outubro, me engajei na arte da discreta genuflexão, e minha única desculpa é que desprezíveis somos todos. Porque a partilha de 1948. Porque os acordos de Oslo. Porque Theodor Herzl e David Ben Gurion e Benjamin Netanyahu. Porque a ocupação da Cisjordânia e a desocupação de Gaza em 2005. Porque a eleição do Hamas. Porque veja bem, tenho aqui todos os motivos pelos quais a Naama Levy não deveria ter sido estuprada e a Shani Louk não deveria estar a morta e talvez com todos as razões assim explicadinhas talvez eu possa mendigar umas migalhas da sua compaixão.
David Baddiel estava certo: o israelense é um outro tipo de judeu. Você os ataca, e eles declaram guerra: nem melhores, nem piores do que os outros. Eu tenho 16 referências bibliográficas, algum desespero e nenhum abrigo anti-aéreo no meu prédio. No 7 de Outubro, eu estava grávida e chorei pelo passado, pelo futuro, por mim, pela minha bebê, pela Naama, pela Shani, por todas nós. Se minha memória não me falha, eu postei algo no Instagram. Entre as fotos, vi os israelenses já de farda.
Mandei uma mensagem longa e angustiada para o meu primo. Não somos próximos. Ele é Benzion Netanyahu. Quando saiu do abrigo com as 3 crianças, em 7 de Outubro, num subúrbio de Tel Aviv, ele me respondeu numa linha em inglês, pois não compartilhamos um idioma: we will win.
Pergunte para um país com exército se ele tem o direito de existir no formato que bem entender, e talvez ele vá puxar uma arma.
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Israel constrange a diáspora. As demonstrações inequívocas de força, o ethos fuck you very very much, a Zila Netanyahu que grita uma instrução para Edith Blum da cozinha, enquanto os filhos estão limpando no sofá os dedos engordurados. Acima de tudo, a diáspora precisa ser aceita. O judeu que vive como minoria acachapante ou entra na linha, ou cai no ostracismo. A sua aceitação é condicional ao bom comportamento. Desagradar é anátema.
Haviv Rettig Gur é um jornalista israelense que explora as diferenças entre os sabras e a diáspora. Ele conta uma anedota que ocorreu entre um grupo de judeus progressistas dos Estados Unidos e ministros israelenses. O representante da J Street falou: “o meu medo é que, se Israel não for um país moral, ele perderá sua legitimidade. Ele perderá seu direito a existir. Eu estou lutando por Israel quando luto pela moralidade do país”. Ao que o ministro do Likud respondeu: fuck you.
As palavras eram crassas mas, Haviv Rettig Gur fala, elas encapsulam formações de identidade complexas. Para o judeu americano, a questão é se provar merecedor da aceitação. Para o israelense, ser o judeu que não pede permissão, que não senta a julgamento do mundo, é tudo o que ele é, é o motivo pelo qual ele não vai ser minoria sob o jugo dos outros. Haviv Gur: ״Não se pede permissão para viver. Porque, se você pedir, sempre vai achar alguém que vai te dar um não como resposta”.
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Se A guerra do retorno é um livro pragmático, qual então é a solução? Os autores defendem que se desmantele a infraestrutura internacional criada para perpetuar o conflito, e que em seu lugar canalize-se recursos para um projeto de formação nacional. Enquanto a ONU continuar a registrar todo o palestino como refugiado de 1948, a mensagem é clara: a guerra de 1948 é um processo que não se encerrou. Um palestino que nasce hoje na Cisjordânia deveria ser um palestino em sua terra natal, e não um refugiado de 1948. Enquanto a ONU continuar a diretamente administrar as escolas palestinas, em vez de dar os recursos para que o governo palestino as administre, a mensagem é clara: a tarefa política das lideranças palestinas é outra, que não a gestão da vida local. Enquanto a comunidade internacional continuar a validar uma narrativa de excepcionalidade, a partição de um território do tamanho de Sergipe continuará a ser um problema insondável e insolúvel, e não um processo que já foi tentado e encerrado em outras partes do mundo.
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Angela Davis: “A Palestina é o teste moral do mundo”.
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Alguns meses atrás, eu troquei algumas mensagens com uma intelectual judia, brasileira, cuja vida acadêmica é dedicada a pensar o racismo contra negros. Uma reputação progressista ilibada, uma vida de luta social e todas as palavras certas sobre Israel: genocídio, apartheid e colonialismo. Ainda assim, sua caixa de entrada estava lotada de mensagens de ódio e pedidos de posicionamento. A única coisa que ela não fazia: pedir pelo fim de Israel, onde tem família. Quando a Folha de São Paulo precisava de uma manifestação da diáspora, essa intelectual era chamada a ser a boa judia. Mas as mensagens não paravam. Ela fez uma postagem sobre Lula também ser a favor de uma solução de dois Estados. Apagou. Depois de um tempo, escondeu as postagens políticas. Escolheu o silêncio. Quando o projeto é de eliminação, quanto mais você se curva, mais querem que você se submeta. A intelectual havia sido reprovada no teste moral do mundo.
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Nos últimos quase 2 anos, eu também fui feita de muitos silêncios. Eu sou brasileira e nunca fui chamada a responder pessoalmente por essa ou aquela política de Lula ou Bolsonaro. Independente do que estiver acontecendo em Brasília, que eu saiba, não tem festa brasileira ao redor do mundo com segurança armada na porta. Eu comentei com um ex-amigo que a sinagoga em que a minha filha vai para a aulinha de música agora tem viatura na entrada. Ele me falou que entende, porque, veja bem, Israel e Benjamin Netanyahu. Eu poderia ter explicado porque não é compreensível que a minha bebê seja atacada, mas preferi mandá-lo para aquele lugar, ele e Benjamin Netanyahu.
Certas dores unem mesmo famílias afastadas.
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O sabra é uma mentira. Depois de umas gotinhas de imigração ideológica e sonhadora, as torrentes judaicas que confluíram para o Oriente Médio foram a massa de desesperados. O israelense é o judeu que não foi salvo. Nos anos 1930, todas as fronteiras se fecharam. Nos anos 1940, ele aprendeu que ninguém gosta de verdade de vítimas - algumas pessoas gostam do quentinho que dá quando elas se sentem “do lado certo da História”. O sabra é o judeu que, num mundo em que ele não pode confiar, se reinventou como forte.



Depois de quase dois anos de Guerra.
E centenas de leituras e reflexões madrugada adentro.
Isso foi mais do que terapia. Foi revelação.
Parabéns pela clareza e lucidez Ariela!
Eu nem li ainda, mas já curti porque curto tudo o que você escreve