Poucos compreendem que a procrastinação é nossa defesa natural, deixando que as coisas cuidem de si mesmas e exerçam sua antifragilidade; ela é resultado de algum nível de sabedoria ecológica ou naturalista, e nem sempre é algo ruim – num nível existencial, ela é meu corpo se insurgindo contra seu aprisionamento. É minha alma lutando contra o leito de Procusto da modernidade.
Nassim Nicholas Taleb
Na minha última visita a São Paulo, tive a alegria de encontrar a
para um sorvete. Na empolgação, eu disse algo que nem percebi que tinha concluído até que a frase escapou da minha boca: minha rabugice literária vinha da insistência em terminar os livros que eu havia começado.As virtudes da perseverança já são suficientemente celebradas. Vamos cantar as glórias da desistência. Embora terminar um livro dê uma sensação de missão cumprida, abandoná-lo pela metade tem suas vantagens. Você deixa as ideias maturarem no fundo do cérebro, dando oportunidade para que novas conexões se formem no escuro, silenciosas. Você abre caminhos que depois pode reencontrar já semi-explorados. Você pára de insistir em algo que não está funcionando e, quem sabe, depois pode entender melhor a raiz do desconforto. Aqui estão alguns livros e rascunhos que, com essa edição, vou colocar para descansar no limbo das ideias. (Vou enterrá-los num lugar que eu saiba onde achar, caso volte a me interessar por eles no futuro.)
Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed, por James C. Scott - abandonado após 21% da leitura
Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal, por Hannah Arendt - abandonado faltando apenas a leitura do epílogo
Seeing Like a State é objetivamente um livro brilhante, de um cientista político especializado em anarquismo e sociedades agrárias. Eichmann em Jerusalém eu pensei que fosse mais um tratado sobre o mal, mas é uma série de relatos jornalísticos; até aí, culpa da minha ignorância. A questão que me interessa foi colocada por Lou Keep nessa resenha de Seeing Like a State:
A visão pessimista é esta: todo mundo está apenas tentando o seu melhor. Se os horrores da história são resultado de motivações perversas, podemos nos consolar. Nem sempre é possível evitar maus ditadores, mas pelo menos sabemos que a vontade humana tem algum poder. Uma pessoa má ser capaz de executar suas maquinações perversas implica em talvez uma pessoa boa conseguir realizar com sucesso um bom plano. Stálin pode ter sido mau e vil, mas se apenas colocarmos as pessoas certas lá (leia-se: eu), então certamente o Bem prevalecerá. Mas se todos estão apenas tentando o seu melhor, nada disso é garantido. De fato – algo está tão quebrado que nossas melhores intenções ainda produzem miséria.
Seeing Like a State traz estudos de caso sobre a falência das nossas melhores intenções. Como um mecanismo racional de gerenciamento de florestas na verdade levou à destruição? Como os planos para a cidade perfeita deram origem a Brasília? Como a revolução socialista desembocou no Holodomor e nos expurgos de Stálin? Se os desastres foram comandados por sádicos, se as coisas ruins acontecem porque as pessoas são más, temos mais esperança de pará-los. Mas se a gente faz o mal querendo fazer o bem, e se as pessoas que temos como más estão na verdade perseguindo a versão delas do que é bom… o que isso muda nosso modo de enxergar o mundo?
Não é incomum carregarmos para a vida adulta modelos de histórias que encontramos na infância; às vezes damos um verniz de ciência ou psicologia, mas a estrutura permanece a mesma. Em vez de vilões, pensamos em psicopatas. O mal absoluto: a ruindade feita por quem quer ver sofrimento. Essas pessoas podem existir, mas fica cada vez mais difícil encontrá-las quando olhamos caso a caso; sob o microscópio, elas se revelam surpreendentemente comuns. Como pessoas normais, elas pensam em si mesmas como boas, quando não como idealistas, moralistas. Erik Hoel escreveu que há uma verdade que parecemos periodicamente esquecer e redescobrir: no nível psicológico, bem e mal se intersectam. O mal é a corrupção do bem. Os demônios são anjos caídos.
Nesse ponto, Hoel joga a carta óbvia, mas que é também um bom stress test para qualquer estudo sobre o Mal: o nazismo. Se o argumento faz sentido, ele tem que sobreviver quando aplicado a um dos casos mais extremos da História recente. Também de maneira óbvia, do meu lado, eu peguei para ler um dos livros mais famosos de Hannah Arendt.
Em Eichmann em Jerusalém, Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, da qual depois se arrependeu. Mencionada uma única vez no finalzinho do livro, a expressão encerrou em grande estilo a sua série de relatos; como uma pessoa que sabe a dificuldade dos encerramentos, quase sinto a empolgação de Arendt quando ela teve a sacada necessária para fechar o texto. Mas a expressão ganhou vida própria e foi lida como uma tese sobre a natureza no mal, e não como uma observação específica sobre a personalidade de Eichmann.
Adolf Eichmann foi um dos principais organizadores do Holocausto. Como outros nazistas que escaparam dos Julgamentos de Nuremberg, ele assumiu uma nova identidade e vivia escondido na Argentina até 1960. Apesar das tentativas da própria Alemanha de levar os criminosos a julgamento, Juan Perón negou a extradição de diversos oficiais nazistas. O recém-formado Estado de Israel decidiu então por uma abordagem diferente: pedir desculpas em vez de autorização. De posse das coordenadas de Eichmann, o serviço secreto isrelense foi até a Argentina, sequestrou-o e resolveu o problema diplomático com Perón depois que Eichmann já estava em Jerusalém aguardando julgamento. Hannah Arendt cobriu o julgamento pela revista New Yorker; Eichmann em Jerusalém é o resultado de suas reportagens.
O retrato de Eichmann que emerge dos escritos de Arendt é de um burocrata carreirista e burro. Eichmann era um mero cumpridor de ordens. Eichmann estava apenas em busca da próxima promoção. Eichmann era incapaz de um pensamento original e só repetia clichês. Mas há outro retrato que se esconde sob a leitura usual, e ele combina com as impressões de Hoel. Eichmann era um idealista. Eichmann queria fazer parte de algo maior que ele. Eichmann queria dedicar sua vida ao bem da Alemanha. Essa é a visão pessimista: Eichmann estava fazendo o seu melhor.
Arendt escreve sobre o fascínio de Eichmann com o sionismo:
A razão pela qual ele ficou tão fascinado pela "questão judaica", explicou, foi seu próprio "idealismo"; esses judeus, ao contrário dos assimilacionistas, a quem ele sempre desprezou, e ao contrário dos judeus religiosos, que o entediavam, eram "idealistas" como ele. Um "idealista", de acordo com as noções de Eichmann, não era apenas um homem que acreditava em uma "ideia" ou alguém que não roubava ou aceitava subornos, embora essas qualificações fossem indispensáveis. Um "idealista" era um homem que vivia para sua ideia - portanto não poderia ser um empresário - e que estava disposto a sacrificar por sua ideia tudo e, principalmente, todos. Quando ele disse no interrogatório policial que teria mandado o próprio pai à morte se isso fosse exigido, ele não pretendia apenas enfatizar até que ponto estava sob ordens e pronto para obedecê-las; ele também pretendia mostrar o quão "idealista" ele sempre foi. O "idealista" perfeito tinha, como todo mundo, seus sentimentos e emoções pessoais, mas nunca permitiria que eles interferissem em suas ações se entrassem em conflito com sua "ideia".
Eichmann se sentia preso a um emprego sem significado - o mesmo do protagonista d’A Metamorfose, de Kafka - e achou no movimento nazista um meio de fazer parte da História:
O que Eichmann deixou de dizer ao juiz foi que ele havia sido um jovem ambicioso que estava farto de seu trabalho como caixeiro-viajante antes mesmo da Vacuum Oil Company se cansar dele. De uma vida sem sentido e sem consequências, o vento soprou-o para a História, tal como a entendia, ou seja, para um Movimento dinâmico no qual alguém como ele - já um fracasso aos olhos da sua classe social, dos seus família e, portanto, também aos seus próprios olhos - poderia começar do zero e ainda fazer uma carreira.
O nazista perfeito, de acordo com Arendt, não era um sádico. O nazista ideal era o que o rabino Jonathan Sacks chamou, em outro contexto, de altruísta perverso. É um moralista que sacrifica suas sensibilidades pessoais em nome da nação, de um sonho maior, da Grande Alemanha:
O que ficou na cabeça desses homens que se tornaram assassinos foi simplesmente a ideia de estarem envolvidos em algo histórico, grandioso, único ("uma grande tarefa que ocorre uma vez a cada dois mil anos"), que deve, portanto, ser difícil de suportar. Isso era importante porque os assassinos não eram sádicos ou matadores por natureza; pelo contrário, foi feito um esforço sistemático para eliminar todos aqueles que extraíam prazer físico do que faziam.
A noção do mal como o bem corrompido parece passar no teste do nazismo. Vamos agora deixar a Alemanha de canto - não é de bom tom ficar presa na armadilha da Lei de Godwin. Que história brasileira podemos contar com esse insight? Uma história de grandeza de aspirações e idealismo torto, apaixonado, certo da moralidade de seus propósitos?
No verso de outro livro que não terminei, rascunhei uma ideia. O cenário é a Sorocaba em que cresci - apenas 100 quilômetros da capital, mas com os ares parados de um fim de mundo. A livraria mais movimentada é a Saraiva do Shopping Esplanada, pequenininha entre o McDonald’s e o Cinemark. Num colégio técnico, há um moço jovem e inteligente, com a sensação de que vai enterrar seus sonhos numa carreira de técnico de informática. Ele baixa os livros que pode, meio a esmo. Sabe que não haverá dinheiro para a faculdade. Lê os jornais e se pensa muito superior aos colunistas, suas ideias muito mais ousadas - se apenas tivesse nascido com o sobrenome certo, soubesse citar os autores corretos... Pelos meandros da internet - era o tempo dos blogs - nosso herói cai em um site com lema em latim: sapientiam autem non vincit malitia. O deserto cultural floresce sob seus olhos. De repente, ele pode não só salvar o Brasil, como a civilização ocidental. Nosso protagonista mais tarde vai adotar o próprio lema latino, como um cruzado digital: Deus Vult. O fim da história pode soar familiar. O jovem ambicioso se consagra entre os seus como o melhor aluno de Olavo de Carvalho. Em 2018, é nomeado para o governo de transição. Em 2019, é empossado aos trinta e poucos anos como assessor especial da presidência.
Esta newsletter está se preparando para uma pausa, ou uma aterrissagem suave. Tenho um projeto de escrita um pouco mais longo, ao qual quero dedicar a maior parte do meu espaço mental. Um dos preparativos para essa pausa é deixar outras ideias descansando. Estou fechando, sem dó, vários livros pela metade; estou escrevendo umas ideias ainda com as pontas soltas, só para poder achar o caminho de volta. Acho que o que faço aqui são ensaios, então posso dizer que o que vai aparecer nas próximas semanas são provas mais inacabadas, que ainda não indicam um caminho final. Talvez eu nem pare, se não precisar. Daí construímos juntos a minha antibiblioteca de livros abandonados.
Umberto Eco sobre bibliotecas e livros não lidos:
Tenho muitas experiências que são, penso eu, comuns a todos os que possuem muitos livros (tenho agora cerca de quarenta mil volumes, entre Milão e as minhas outras casas) e a todos os que consideram uma biblioteca não apenas um local para guardar livros já lidos, mas principalmente um depósito para livros a serem lidos em algum momento futuro, quando sentir necessidade de lê-los. Muitas vezes acontece que nossos olhos caem sobre algum livro que ainda não lemos e nos enchemos de remorso.
Mas então chega o dia em que, para aprender algo sobre um determinado tópico, você decide finalmente abrir um dos muitos livros não lidos, apenas para perceber que já o conhece. O que aconteceu? Existe a explicação místico-biológica, segundo a qual com o passar do tempo, e à força de mover os livros, espaná-los e depois colocá-los de volta, pelo contato com a ponta dos dedos, a essência do livro foi gradualmente penetrando em nossa mente. Há também a explicação da leitura casual, mas contínua: com o passar do tempo, e a manipulação e roerdenação de vários volumes, não é o caso de um livro nunca ter sido lido; mesmo simplesmente movendo-o, você deu uma olhada em algumas páginas, uma hoje, outra no próximo mês e assim por diante, até acabar lendo a maior parte, apenas não de maneira linear. Mas a verdadeira explicação é que entre o momento em que o livro chega até nós e o momento em que o abrimos, lemos outros livros nos quais havia algo que foi dito por aquele primeiro livro, e assim, no final desta longa jornada intertextual, você percebe que mesmo aquele livro que você ainda não leu já faz parte de sua herança mental e talvez o tenha influenciado profundamente.
Nas últimas semanas, parece que todo mundo assistiu Aftersun. Bom, fui maria-vai-com-as-outras e também assisti Aftersun. Achei bonito, mas ao mesmo tempo acho que não era para mim? O Michael escreveu sobre a experiência de ver o filme na nossa date night:
Até a próxima!
Antibiblioteca dos livros abandonados #1
Adorei essa ideia! Eu, particularmente, fico muito incomodado quando deixo um livro lido pela metade no caminho, fico sempre com a ideia de querer voltar, mas você tem razão, desistir ajuda a entender melhor a raiz do desconforto.
E quanto a Aftersun: achei ok, mas também não me disse muita coisa.
Valorizar o nosso tempo é tudo, então abandonar livros me parece algo bem maduro nessa linha. Eu ainda tenho dificuldade de praticar o desapego - leio meio acelerado pra chegar no final, meio pra matar a curiosidade do final, mas é deprimente cumprir tabela assim. Acho mais fácil desistir de séries.
E boa sorte no seu período de pausa! Curta muito o processo e as entrelinhas que certamente vão surgir 💞