Há dias que mudam a vida da gente para sempre. Eu dei uma pausa nessa newsletter enquanto meu corpo me rearranja para ser mãe, e há dias em que a náusea e o cansaço não deixam espaço para nada mais. Essa é uma mudança para sempre. Desde sábado, eu mal consigo dormir. Tenho insônia porque estou triste e ansiosa e com raiva, mas principalmente porque estou me rearranjando por dentro. Outra mudança para sempre.
Sou uma pessoa que ama os livros e o conhecimento. Amo as ideias. Amo o debate. Amo os autores e as citações e a escrita elegante e os argumentos cheios de nuances. Mas, acima de tudo, amo as pessoas. Acima de tudo, quero ser uma pessoa decente. Posso não mais escrever e não ler e nunca mais tentar compor um ensaio bonito; posso só pensar estas ideias lacrimejantes e escrever estas palavras melosas, e ainda assim vou estar satisfeita se amar as pessoas, se for um ser humano decente.
Foram dias muito difíceis para ser judia. A dor horrível do luto veio com a dor horrível da decepção. Eu nunca vi tanta gente supostamente culta e estudada usando ideias como se fossem mais importantes que as pessoas. Eu vi tanta citação de Fanon e Mbembe e Malcolm X pra mascarar desumanidade que o nojo me faz querer nunca mais cruzar com uma ideia. Se as suas ideias estão acima das pessoas, você está abaixo de ser uma pessoa. Você precisa recuperar o potencial de ser uma pessoa.
Conto em uma mão os amigos escritores e intelectuais, os amigos de texto e ideias, que me procuraram para demonstrar empatia com a dor do povo judeu. A eles, a dor do judeu não choca. Tenho a sorte de precisar de muito mais dedos para contar os outros amigos que mandaram palavras de amor e preocupação. Nessa hora, reavalio o meu lugar no mundo e o lugar onde investir meu coração. Nessa hora, em que o terrorismo é justificado, contextualizado, racionalizado, entendo como o nazismo teve adesão tão maciça entre os intelectuais alemães. O cérebro é uma realidade química; o coração é uma metáfora batida. Talvez a gente precise ser simples e pequenino para acreditar no que está por trás das metáforas batidas.
Aos leitores judeus: eu nunca tive mais amor por esse povo, mais orgulho de ser uma entre vocês. Que os filhos de Jacó, renomeado Israel, vivam eternamente. Am Yisrael Chai.
Em tempo, pois não é hora de meias palavras: criticar o Estado de Israel é normal; inclusive, entre os judeus, é o que mais há. Sou brasileira e, como todo brasileiro, critico o Estado do Brasil. O sionismo é (procure no dicionário) o movimento pela autodeterminação do povo judeu. Se você se denomina antissionista, isso quer dizer que você nega a realidade de que os judeus sejam um povo ou nega o direito de um povo específico a se organizar politicamente de maneira independente e soberana. Em todo o caso, essa é uma posição antissemita. O antissemitismo é (procure no dicionário) a aversão ao povo judeu. A palavra não quer dizer ódio geral aos povos semitas, que são vários; ela tem uma história e significa a aversão específica ao povo judeu. Se eu advogar pela destruição do Estado brasileiro em específico, e da mais nenhum outro Estado, seria justo dizer que sou anti-Brasil e, por extensão óbvia, anti-brasileiros. As palavras que a gente usa criam o mundo. Se você usa as palavras “genocídio”, “apartheid” e “limpeza étnica” livremente, você autoriza qualquer tipo de violência contra esses nomeados genocidas, promotores do apartheid e da limpeza étnica. Tenhamos cuidado com as palavras que colocamos no mundo.
Se você acha que essa newsletter não é para você, o link para cancelar a inscrição está no rodapé. Eu orgulhosamente apoio a existência do Estado de Israel, eu choro a morte de civis sem nenhum “mas” e eu não vou tornar mais palatável quem eu sou para angariar a aceitação de ninguém. O conflito entre Israel e Palestina, os ataques do Hamas, não são para mim notícias que consumo no jornal ou causas que apoio como ativismo a 10 mil quilômetros de distância. Eles significam traumas reais e pessoas reais. Eu conheço os seus rostos.
“Se as suas ideias estão acima das pessoas, você está abaixo de ser uma pessoa. Você precisa recuperar o potencial de ser uma pessoa.”
Resumiu lindamente, Ariela ❤️
SIM. MIL VEZES SIM.
(no momento, só tenho forças para escrever isso; em breve conversamos)