Oi! Essa é “A Diletante”, uma newsletter de ensaios. Você está numa edição do ciclo bíblico, um projeto de análise textual e reflexão pessoal na fronteira entre o secular e o sagrado. Minha perspectiva é judaica e não-religiosa. Pelo uso da lente judaica, eu me coloco como herdeira de um legado de midrash - uma linhagem ininterrupta de interpretação e confronto com o texto. Pela perspectiva não-religiosa, quero dizer que a minha lealdade ao texto não implica lealdade a crenças, dogmas ou doutrinas. Cada edição é independente e não assume conhecimento prévio. O trecho a que se refere essa edição é Tazria ("Ela carrega semente”, Levítico 12:1-13:59).
Nossa ideia do belo é uma noção limitada, que não se pode aplicar ao submundo metamórfico da terra, um domínio cataclísmico de violência ctônica. Preferimos não ver essa violência em nossos passeios diários. Toda vez que dizemos que a natureza é bela, estamos fazendo uma prece, dedilhando o rosário de nossas preocupações.
Camille Paglia, em Personas sexuais: arte e decadência de Nefertiti a Emily Dickinson
A vazão da água havia mudado completamente. Apenas um dia antes, entre a fila de turistas, as cataratas do Iguaçu tinham o vigor de uma fera de zoológico. As pessoas paravam para tirar fotos nas plataformas de observação; de costas para a água, em segurança. Aqui e ali, um guia dava explicações ou distribuía capas impermeáveis.
No dia seguinte, a água era outra. Numa pequena extravagância, reservamos um pernoite no hotel chique que fica dentro do Parque das Cataratas. Com a trilha fechada para o público, refizemos os passos do dia anterior. O plano era assistirmos ao pôr do sol sobre as cataratas, mas a cada poucos metros eu me perguntava se aquela tinha sido uma boa ideia. E se anoitecesse antes de conseguirmos voltar para o hotel? Os lagartos atravessavam nosso caminho, silenciosos. E se precisássemos de ajuda, onde estavam as outras pessoas? Os insetos zumbiam cada vez mais alto. Isso não é mesmo perigoso? Não se preocupe, já estamos quase lá. E a catarata final de fato se abriu sobre nós, a mais próxima, majestosa, selvagem. O barulho de água sobre pedra falava de histórias antigas, do terror dos que um dia navegaram em tranquilidade até que o som distante anunciasse a perspectiva da queda. Daquela vez, não tiramos foto. Não convinha dar as costas para a água.
Coletivamente, esquecemos o medo da natureza, o terror primitivo diante de sua demonstração de força. Ainda temos medo do natural em nós - o parto, a doença, a morte - mas controlamos o terror da natureza como coisa externa; nos colocamos, na verdade, na posição de destruí-la ou protegê-la. Há um erro de ótica no discurso comum sobre ecologia ou mudança climática - ainda percebido como abraça-árvore, como salvador dos animais. Não precisamos salvar a natureza. Precisamos nos salvar dela. O risco não é acabarmos com as águas ou os solos ou todas as minúsculas células vivas. O risco é acabarmos nós, e eles continuarem, inabaláveis.
A humanidade não é a filha favorita da natureza, escreveu Camille Paglia. Somos exemplares de uma espécie frágil. Um terremoto, uma epidemia ou alguns graus celsius para mais ou para menos e somos ceifados aos milhares. Em Personas sexuais, Paglia fala que a origem da arte e da religião, esses irmãos gêmeos, está nessa experiência de terror:
A vida humana teve início na fuga e no medo. A religião surgiu de rituais de expiação, feitiços para aplacar a violência dos elementos. Até hoje, são poucas as comunidades nas regiões chamuscadas pelo calor ou agrilhoadas pelo gelo. O homem civilizado esconde de si mesmo a extensão de sua subordinação à natureza. A grandiosidade da cultura e o consolo da religião absorvem suas atenções e conquistam sua fé. Mas basta a natureza dar de ombros e tudo cai em ruínas. Incêndios, inundações, raios, tufões, furacões, vulcões, terremotos - em qualquer parte, a qualquer hora. A tragédia abate-se sobre os bons e os maus. A vida civilizada exige um estado de ilusão. A ideia da benevolência última da natureza e de Deus é o mais poderoso dos mecanismos de sobrevivência do homem. Sem ela, a cultura reverteria ao medo e ao desespero.
De acordo com a autora, Oriente e Ocidente responderam de formas diferentes ao dilema oferecido pela natureza. (Recomenda-se cautela com generalizações desse tipo, mas não se escreve um livro panorâmico como Personas sexuais sem soterrar algumas nuances.) Enquanto o Oriente adotou a resignação e o não-confronto, o Ocidente partiu para a luta. Em certas trincheiras, ainda estamos lutando. Quando se diferencia sexo de gênero, quando se revolta contra o aprisionamento do gênero em nossos corpos naturais, quando falamos de fluidez e não-binariedade, aí está a cultura ocidental peitando a natureza novamente.
Mas estamos numa edição bíblica. O que, afinal, isso tudo tem a ver com a Bíblia? Meu argumento é que, nesse texto de três mil anos, quando você silencia a multidão de comentaristas, a gritaria dos dogmáticos e a sua própria voz contemporânea, você acha um núcleo de assombro - as cataratas que se revelam na ausência de guias ou turistas. O Levítico é um livro que guarda os resquícios do medo e os meandros da luta contra a natureza, com a plena consciência de que essa também é uma batalha interna: somos todos personagens do drama natural.
Na porção Tazria, o Levítico descreve duas fontes de impureza ritual: o parto e as doenças dermatológicas. No capítulo 12, são dedicados 8 versículos para descrever as condições para que uma mulher que deu à luz volte a frequentar o templo: um afastamento de 40 dias para o nascimento de meninos e 80 dias para o de meninas. A memória do sangue tem que se apagar antes que a puérpera volte ao convívio ritual. No capítulo 13, inacreditáveis 59 versículos são dedicados às doenças da pele. A condição é usualmente traduzida como “lepra”, embora os sintomas descritos no Levítico não correspondam ao que conhecemos hoje como hanseníase; o absurdo da tradução fica visível ao fim do capítulo, quando o Levítico fala de “lepra dos tecidos”. O texto opera por analogias. Tanto nas roupas quanto na pele, o Levítico se incomoda com a erupção da superfícies, as inflamações contagiosas, o risco de decomposição.
Tanto a puérpera quanto o doente são afastados temporariamente dos rituais no templo. A sua impureza não é de ordem moral, mas técnica - impuro é aquele que não está apto a participar do culto. Há candidatos fáceis para uma explicação racionalista: nas primeiras semanas de vida do bebê; dispensa-se a puérpera de certas obrigações rituais; na fase contagiosa, isola-se o doente da comunidade. Passada pelo filtro da razão, o Levítico perde sua estranheza característica. Domamos o livro com as ferramentas que temos à mão. Afastamos as imagens desagradáveis que ele evocou - o sangue do parto, as escamações da pele - e encontramos conforto numa explicação. O Levítico, porém, não nos julgaria por isso, pois o impulso de domesticação não lhe é estranho. Domar o sexo, domar os apetites do corpo, domar a morte: todo o projeto do Levítico aponta para o domínio sobre o natural.
A construção textual do Levítico funciona por acúmulo. De acordo com a antropóloga Mary Douglas, parte do nosso choque com Levítico vem justamente da estranheza dessa construção. Estamos acostumados a uma lógica causal ou argumentativa: estabelecemos premissas, delineamos causas e chegamos a conclusões; pensamos em arco. O Levítico, por sua vez, é um livro de instruções rituais em que nenhuma instrução é associada a um motivo ou disposta em ordem; regra é empilhada sobre regra sem nenhuma hierarquia, transição ou nexo causal. No entanto, um padrão emerge. Talvez nem mesmo uma padrão, mas uma sensibilidade. O Levítico abre com o sacrifício ritual e emenda nas regras de alimentação - a violência ritualizada seguida pelo controle do apetite. O texto então coloca lado a lado a impureza vinda do parto e da doença pele, duas condições em que o corpo se abre e se rompe a barreira entre interior e exterior. No Gênesis, “frutificai e multiplicai-vos” aparece quase como um refrão. No Levítico, porém, a composição com a doença de pele indica que a reprodução não é um processo livre de tensão; o status da puérpera como impura ritualmente associa o processo natural a uma mácula, uma erupção violenta.
A ritualização é uma tentativa de controle, uma afirmação de domínio sobre o terror do mundo. Camille Paglia fala que somos herdeiros de Rousseau, um filho da civilização que romantizou nossa relação com a natureza. De acordo com Rousseau, nascemos puros e pacíficos, mas a sociedade nos corrompe. Quanto mais se volta no tempo, no entanto, mais forte é a lembrança de que nascemos entre gritos e sangue. Natureza é violência. Para o redator do Levítico, e para a tradição antes dele, a natureza é o problema a ser resolvido. Como ser duas coisas ao mesmo tempo, uma imagem do divino e um corpo animal? Uma pessoa e um bicho? Que parte de você pode entrar no templo? O rito cria barreiras, acalma ansiedades. A observância religiosa abre trilhas seguras, que dividimos com tantos outros viajantes. Podemos olhar para o lado e contemplar a beleza da paisagem. Confiantes, podemos dar as costas ao mundo natural, pensar que o visitamos como turistas; por baixo das superfícies, através dos orifícios, está a torrente prestes a romper nossas defesas.
Eu sempre fico na dúvida de quem é o público para esses meus textos heterodoxos sobre a Bíblia. Ainda não descobri, mas fico feliz de achar leitores tão bacanas. Se você souber de mais alguém que possa se interessar por essa linha editorial estranha, que tal compartilhar?
Esses dias encontrei a
, que por coincidência também está pensando em temas relacionados à natureza. Vale acompanhar!
Fico sempre arrepiada com seus textos, bom demais me deparar com sua heterodoxia.
Ariela! Li agora tudo. Obrigada pela indicação. Foi muito bonito te encontrar em pessoa, espero que outras pessoas que acompanham a newsletter tenham essa oportunidade! Foi muito bom te ler, uma ótima semana <3