Admito que não gostei de David Foster Wallace no primeiro contato. Eu tinha voltado de uma viagem na qual contraíra uma paixonite por um cara cujo livro favorito era “Graça Infinita” - anos depois, meu marido me diria que “Graça Infinita” é exatamente o tipo de livro que um homem de vinte e tantos anos tem na mesa de cabeceira desde a universidade, ainda não terminou mas sai por aí dizendo que é o seu favorito - quando encontrei na livraria uma coletânea de ensaios. Na introdução, Daniel Galera falava que os ensaios eram os trabalhos mais acessíveis de Wallace. Comprei. A paixonite morreu antes que eu tivesse a chance de ler o livro, que amargou alguns anos de sono profundo na estante.
Acordei o volume de seu repouso apenas para cobri-lo de notas desgostosas, que agora releio com certa vergonha. Wallace me pareceu um adolescente crescido que se sentia cool e genial demais para o mundo a sua volta, e que escrevia para um público que se imaginava igualmente superior aos outros mortais - e depois ainda reclamava de solidão. No primeiro ensaio, encomendado pela Harper’s (acho que o equivalente brasileiro mais próximo seria a revista Piauí), Wallace visita uma feira regional do Meio-Oeste, sua terra natal. A pauta parecia ser algo como “misture-se aos caipiras, com o atenuante de ter nascido entre eles, e nos entregue alguns comentários irônicos sobre a vida americana”. Alguns anos depois, a Harper’s repetiu a dose. Wallace foi o enviado especial para um cruzeiro de luxo no Caribe, o tipo de férias que o leitor da Harper’s sabe que deve desprezar, com o tipo de americano que ele olha como curiosidade antropológica.
É fácil dispensar David Foster Wallace. Na verdade, nunca foi tão fácil fazer argumento ad hominem passar por crítica: você desqualifica o emissor do discurso, de modo que a obra se torna indigna de análise. Minhas notas desgostosas são testemunha de como, numa primeiro leitura, minha aversão me cegou à mágica do texto - Wallace vira a ironia sobre si mesma, e o leitor que começa o texto rindo do outro, do americano com dedos lambuzados de fritura ou corpo besuntado de protetor solar, termina a leitura com um sorriso amargo sobre si mesmo, sobre sua incapacidade de comunhão com o outro, sobre o deboche usado como mecanismo de proteção. Na introdução ao livro, Daniel Galera fala que o poder destrutivo da ironia era um dos temas centrais de Wallace. A ironia liberta sem dizer muito bem para quê. Ele cita Wallace: “A ironia, embora prazerosa, tem uma função quase exclusivamente negativa. É crítica e destrutiva, boa para limpar o terreno. Com certeza era assim que nossos pais pós-modernos a viam. Mas é particularmente inútil quando se trata de construir alguma coisa para pôr no lugar das hipocrisias que expõe."
Foi pensando em David Foster Wallace que, na ausência de uma revista renomada que o fizesse, eu encomendei a mim mesma este texto. Meu ensaio também envolveria uma pequena excursão, dentro das limitações dessa newsletter: eu pegaria o metrô C até a Penn Station e andaria até o Shed, o mais novo centro de artes do mais novo empreendimento imobiliário de Nova York. Assim como Wallace, recebi - no meu caso, de mim mesma - uma pauta problematizadora. Neste prédio reluzindo a dinheiro e poder, com o nome dos doadores literalmente cravados nas paredes, está instalada a exposição “A luta yanomami: arte e ativismo na Amazônia”. Escrevendo dos anos 1990, Wallace identificou que o contágio da ironia destrutiva na cultura americana havia se dado pela televisão. Nos anos 2020, escrevemos todos sob efeito da internet, cuja moeda corrente é a problematização. Paga-se as mídias sociais com o custo espiritual dos nossos hot takes alçados à condição de visão de mundo. Aqui, tenho que parar e contemplar o gênio de Wallace: como é difícil fazer a problematização virar sobre si mesma.
O Shed é uma grande estrutura de aço e vidro que fica no Hudson Yards. Exceto pelo lado com vista para o rio Hudson, o espaço é cercado pelo que há de melhor que os promotores imobiliários conseguiram conceber: torres tinindo para sede de empresas, condomínios residenciais com apartamentos de um quarto sendo alugados a $7.000 dólares por mês, um novo shopping e o Vessel, uma escultura-atração-turística que teve que ser fechada porque se tornou destino para suicidas. O Hudson Yards é um marco na renovação da cidade. Saindo da Penn Station, indo de leste a oeste, você sai do cenário desolador de Midtown - galpões abandonados, população de rua - até encontrá-lo como monumento da engenhosidade humana. Vindo da região sul da cidade, o Shed aparece como a apoteose do mundo da arte. Em um dos extremos do High Line, o Shed é a primeira ou a última das galerias do Chelsea, uma área de mais ou menos dez quadras que dá o tom da arte contemporânea em Manhattan.
Naquele contexto, naquele prédio, “A luta yanomami” pedia para ser lida como arte - embora com os qualificadores de arte-ativista ou arte-denúncia. Essas exposições são organizadas com muita antecedência, de modo que os institutos Cartier e Moreira Salles não poderiam conceber sua sorte ou seu azar: a abertura da exposição foi quase concomitante à divulgação das fotos de crianças yanomamis, em todos os jornais, em tal estado cadavérico que até as mentes menos dadas a analogias não puderam ignorar a associação com o Holocausto. Enquanto os yanomamis morriam de fome e doença, a força institucional da Cartier e dos Moreira Salles era colocada a serviço da celebração de sua cultura pelo viés da arte. Lembro da frase de Sally Rooney: “Eu quero viver em uma cultura onde as pessoas estão fazendo arte, mesmo quando tudo o mais desmorona”. Será que queremos mesmo?
A exposição era uma versão sombria do MASP, com as obras flutuando em cavaletes transparentes ou presas ao teto por fios disfarçados. As paredes eram escuras; estávamos à meia-luz. Do fundo da sala, vinham os sons de algum vídeo. Um ritual xamânico? Os organizadores são fluentes em zeitgeist e justificam a exposição sob a perspectiva dos retratados. As palavras que marcam as paredes são de David Kopenawa, líder espiritual e político yanomami, não dos galeristas. Ele também participou da divulgação da mostra, de modo que há um componente tranquilizador: esse retrato é consentido. Ele se justifica pela conscientização, pela demanda por visibilidade. Mas não consigo afastar, talvez sob efeito de Wallace, um desconforto. Há uma troca implícita: eu me dou a você em forma de arte, de cultura; em contrapartida, você consegue me reconhecer como humano, digno de proteção.
Produzo cultura, portanto existo como humano: é este o segredo por trás de "Não me abandone jamais”, de Kazuo Ishiguro. Explicitar a trama não faz justiça ao livro, tão cuidadoso em sua construção. Mas vamos lá. Três amigos crescem em um colégio interno inglês, no melhor estilo Hogwarts. Por motivos misteriosos, a hierarquia da escola gira em torno da produção de arte. Os alunos com maior status social são os melhores artistas. Há um esquema de troca de obras que movimenta o escambo estudantil. A maior honraria é ter um trabalho selecionado para a galeria de arte da Madame, a figura de autoridade que aparece eventualmente na escola. Seguimos esses estudantes enquanto eles crescem, amam, sofrem. A trama revela a conta-gotas que eles são clones, criados pelo governo para que seus órgãos sejam colhidos para transplante. Cada estudante sai do colégio primeiro para se tornar um cuidador de outros “doadores”, e depois para fazer doações sucessivas até que sua vida se “complete” - o que ocorre em geral após a quarta doação. Circula entre os clones o boato de que, caso um casal consiga provar que se ama, a Madame seria capaz de proporcionar uma postergação de três anos no cronograma de doações. Tommy e Kathy procuram a Madame às vésperas da quarta doação do garoto. Ela então revela que nunca houve um plano para corroborar a humanidade dos clones - e portanto lhes conceder alguns anos a mais de vida - com base na capacidade de amar. O que havia, muitos anos antes, quando ela e seus amigos ativistas eram jovens, era a ideia de montar um colégio focado em artes, para que a capacidade criativa dos clones mostrasse ao governo e à opinião pública que eles não eram descartáveis. Eles faziam arte, portanto tinham algo de humano.
Nas galerias do Shed, “A luta yanomami” era composta por dois registros: as fotografias de Claudia Andujar e os desenhos em canetinha de artistas yanomamis. As fotografias eram profissionais, técnicas, expostas com qualidade de museu. Andujar é uma sobrevivente do Holocausto que dedicou a sua vida aos povos indígenas, sob imenso risco pessoal. David Kopenawa a considera uma verdadeira amiga. O seu olhar, amistoso mas inevitavelmente de uma forasteira, carrega a bagagem da cultura ocidental. Fluente em quatro idiomas europeus, ex-estudante de Humanidades no Hunter College em Nova York, bolsista da prestigiosa Fundação Guggenheim, com fotografias vendidas para revistas nacionais e internacionais - a lista de credenciais poderia prosseguir por algum tempo. Quando as suas fotografias vão parar no Shed, elas estão em casa. Quando o espectador da mostra mira suas imagens, são Andujar e ele que estão atrás das lentes - suas sensibilidades são similares. Claudia Andujar prescinde de demonstrações de humanidade.
Os desenhos indígenas, as plaquinhas explicativas me diziam, pertenciam quase todos à Fundação Cartier. As galerias do Chelsea podem ser criativas, mas era a primeira vez que via obras em canetinha hidrográfica - um material associado a crianças, muito embora os desenhistas fossem adultos. Eu não estava diante de uma coleção comum: aquela era uma versão da coleção de Madame. Décadas atrás, alguns ativistas bem intencionados apareceram entre os yanomamis com canetinhas e uma sede de expressão artística que lhes era estranha. Os yanomamis não tem tradição pictórica. Eles pintam o corpo, dançam, fazem música - artes passageiras, que somem uma vez esgotado o momento. Entre os indígenas, a arte e a sabedoria são algo vivido, não registrado. Mas os ativistas precisavam de um testemunho daquelas vidas, e a Fundação Cartier adquiriu aquelas evidências de boa vontade.
Para provar que naquelas vidas há valor intrínseco, até os mais bem intencionados procuram por algum valor artístico, algum produto cultural de valor reconhecível. Numa outra newsletter, que fez uma edição bonita sobre refugiados, vi a seguinte citação: “Einstein, Picasso e Alberti foram resgatados de sua condição de refugiados e sobreviveram para oferecer ao mundo sua genialidade. Se tivessem nascido hoje, provavelmente estariam fazendo fila para receber um saco de comida ou esperando para serem mandados de volta para o lugar de onde vieram”. A citação contrasta os refugiados famosos da Segunda Guerra Mundial com os atuais refugiados sírios, a multidão de anônimos e despossuídos que cruza o Mediterrâneo. Ela me parece equivocada em dois níveis. No nível moral, ela atrela o valor do resgate ao potencial da “carga” - as pessoas viram “capital humano”, e a sua perda é lamentável não em si, mas pela genialidade que deixam de oferecer ao mundo. No nível histórico, ela falseia o passado. Einstein, Picasso e Alberti não foram refugiados anônimos que floresceram depois de resgatados. Eles já eram famosos antes que chegasse a salvação. Mais do que isso: eles foram resgatados porque eram famosos, porque as suas vidas eram testemunho do potencial cultural da Europa, porque a sua sobrevivência valia mais do que a das pessoas que foram abandonadas para o abate.
Entre 1940 e 1941, quando o cerco nazista se fechava sobre a Europa, os Estados Unidos criaram o Comitê de Resgate Emergencial. Com operações em Marselha, o comitê distribuía vistos americanos para artistas e intelectuais em risco, seja por serem judeus, seja pelo caráter transgressor de suas obras. Os vistos eram destinados a indivíduos com notórias realizações culturais. Formavam-se filas em Marselha, embora a maior parte das pessoas fosse rejeitada. A lista de resgatados evidencia o rigor do processo seletivo: Hannah Arendt, Marc Chagall, Marcel Duchamp, Max Ernst, Claude Lévi-Strauss e André Breton, entre outros. Nunca o caráter salvador da arte foi tão literal. Os judeus salvos foram aqueles com quem os americanos poderiam se identificar, com quem compartilhavam uma noção de humanidade. Para cada refugiado intelectual, estima-se que três mil pessoas morreram nos campos de extermínio - seis milhões de anônimos, de vidas ordinárias, irresgatáveis. Dentre eles, milhões de judeus não secularizados, não imediatamente reconhecidos nos ambientes intelectuais por seus méritos artísticos. Dara Horn escreve, em “People love dead Jews”:
É fácil esquecer que existem outros valores que uma cultura pode manter, outras pessoas que seriam consideradas guardiãs da civilização em vez de artistas e intelectuais - e que grande parte das pessoas que foram assassinadas no Holocausto aderiam a uma dessas alternativas . (...) Mas ninguém tentou salvar a cultura dos Hassidim, por exemplo, com sua devoção à santidade comum e cotidiana - ou os Mitnagdim, o movimento religioso oposto dentro do judaísmo tradicional da Europa Oriental, cuja energia nos anos anteriores à guerra foi canalizado para o estudo rigoroso do musar, ou ética.
A fotógrafa sobrevivente do Holocausto, os yanonami com canetinha hidrográfica, a Madame e os judeus indignos de salvação: qual o fio comum? Saio do Shed pela livraria, onde folheio alguns livros que depois vou comprar pela internet. Não sei se a problematização virou contra si mesma, não sei se transformei minha intenção inicial em algo redentor - sei que saí um pouco confusa, talvez um pouco triste. Nos ensaios de David Foster Wallace, a compaixão vai se infiltrando pelas palavras, até que a ironia perde o atrativo. Wallace não quer mais fazer graça daquelas pessoas - ele não busca mais o olhar do leitor para, cúmplices, rirem dos outros. Ele gostaria de romper o abismo que o separa das pessoas. Você tem pena de Wallace. Você tem pena de si mesmo, que riu com Wallace. Compro um chai latte, que também me aquece as mãos. Subo as escadas até o High Line. No caminho, perdi qualquer pulsão negativa. É bom encontrar turistas com sua alegria fácil. Eles riem em grupos e param para tirar fotos nos lugares óbvios. As fotos não devem ser especialmente boas. Se confrontados com canetinhas, talvez ainda desenhem como crianças. Mas são pessoas, por enquanto estão vivas, e isso deveria ser o suficiente.
Muito bon. Linda. I too ( it being me, the husband) was at the Shed and something about a people's most sacred practices put up for display in a steel monument to "capitalism making a difference for the arts" felt icky. But also necessary for a people in an ongoing genocide to rally whatever support they could to their cause. Very difficult to reckon with, and you did well. If DFW were with us, I think he'd also give this post a "like" and a short comment of support.
Ariela, que texto ótimo! Posso fazer um cross-post? Como sempre, você é excelente em articular os temas. Gostei de ler especialmente considerando uma bagagem da pesquisa dos textos judaicos. A pergunta do lugar da arte na humilanidade é essencial, mas gostei muito também do olhar ao Hudon Yards, já tinha ouvido algumas críticas, mas gostei de reviver. Fora, claro de me sentir viajando por NY com olhar crítico. Muito bom!